Adeus à floresta
Enquanto, na "corrida para oeste", avançava a frente de construção da nova capital da República e da primeira estrada ligando por terra o Brasil à Amazônia, da capital da Amazônia partia uma frente científica na direção da área que seria atravessada pela rodovia Belém-Brasília, na metade da década de 50 do século passado. Enquanto o engenheiro Bernardo Sayão comandava um exército de máquinas pesadas e milhares de trabalhadores braçais, que abririam uma linha com dois mil quilômetros de extensão e 30 metros de largura entre o Planalto Central e a foz do rio Amazonas, técnicos do programa de pesquisa da FAO (a agência da ONU para agricultura e alimentação) e da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, primeira agência de planejamento regional do país), tentavam inventariar a riqueza florestal que havia ao longo do traçado da primeira via de incorporação da Amazônia à economia nacional.
Era uma floresta com elevada densidade de árvores, com mais de 300 espécies identificadas por hectare, algumas de alto valor comercial, como o mogno e o cedro. Em um quarto da sua extensão, ao longo de 500 quilômetros no Pará, a Belém-Brasília atravessava uma compacta massa vegetal, que ocupava os dois lados da pista, sem qualquer clareira.
Parecia que estariam disponíveis ali os elementos para uma ocupação racional da nova fronteira que o Brasil estava incorporando ao se mover dentro do seu próprio território: uma evidente riqueza natural, a floresta, razoavelmente identificada por cientistas, que haviam se antecipado aos agentes produtivos na avaliação do recurso, produto que se tornaria acessível ao mercado através de uma estrada-tronco.
Quando o primeiro grande núcleo urbano se formou, porém, o que o colonizador queria era colocar abaixo a floresta e limpar o terreno para a formação de campos de pastagem e, secundariamente, de agricultura. A cada novo verão, dezenas de milhares de árvores eram atiradas ao fogo. Com tanta oferta, logo começaram a se instalar serrarias. Nos primeiros negócios, o madeireiro tinha apenas o trabalho de arrastar as enormes toras até o pátio da serraria, bem perto da mata, no curto espaço de tempo que o fazendeiro lhe concedia para livrar a futura pastagem do estorvo das árvores, sem pagar um tostão. Findo o prazo e havendo ainda madeira no terreno, o fogo completava o serviço.
O que interessava ao pioneiro era o gado, que amansaria a terra e incrementaria o desenvolvimento. A terra era muito barata e, além disso, havia o dinheiro do governo para financiar, praticamente a custo zero, os chamados "projetos agropecuários". Tudo era, então, lucro - rápido, volumoso, certo. O futuro seria entregue aos cuidados de Deus, brasileiro por delegação dos seus conterrâneos compulsórios.
Logo os pastos começaram a ser invadidos por ervas daninhas e o solo foi-se compactando. Para manter a alimentação do rebanho, o fazendeiro já precisava de novos tratos culturais. O dinheiro dos incentivos fiscais oficiais havia sido queimado no avanço pela floresta através da pata do boi. A madeira começou a ser vendida às serrarias para financiar a melhoria dos pastos ou sua expansão. Ainda havia muita madeira, tanta que o município de Paragominas, o mais dinâmico da região, chegou a ter mais de 400 serrarias em sua jurisdição, recorde mundial.
Quem chegava à sede municipal nessa época ficava abalado pela quantidade de fumaça no ar, lançada à atmosfera (e sobre as pessoas) por rústicos fornos (de "rabo quente"), que queimavam pó e sobras de madeira. Parecia a Inglaterra do início da industrialização, vista por Charles Dickens. No auge do verão, o céu sumia atrás de uma massa de ar saturado pela fumaça escura e densa, partículas resistentes do lenho fazendo volutas de piromania.
"Caminho das onças"
Quarenta anos depois de ser inaugurada por Juscelino Kubitscheck, em 31 de janeiro de 1961, num dos últimos atos de JK antes de passar a faixa presidencial a Jânio Quadros (que batizaria a grandiosa obra do Plano de Metas do antecessor de "caminho das onças"), a Belém-Brasília oferece a quem a percorre atualmente uma paisagem diametralmente oposta.
Não há mais floresta virgem ao longo de todo o percurso. Não é visível a olho nu o mais tênue remanescente daquela mata de alta densidade que a Missão FAO/SPVEA inventariou. Ainda há mais de 250 serrarias em atividade em Paragominas (um número que continua a ser impressionante), mas elas têm que ir buscar madeira para suas necessidades a uma distância mínima de 200 quilômetros, freqüentemente no vizinho Maranhão. Milhares de hectares de pastos foram abandonados, imprestáveis. A compactação do solo em determinadas áreas inviabilizou a agricultura. Poucos dos verdadeiros pioneiros subsistiram.
Alguns têm esperança em tempos melhores. Uma das três únicas empresas florestais que possuem selo verde no Pará está instalada às proximidades da Belém-Brasília. Os fazendeiros aprenderam a consorciar culturas e a dar um uso mais inteligente às suas terras. Bosques formados a partir dessa nova visão começam a se multiplicar. Mas é enorme o desafio que se impõe aos produtores empenhados na recuperação de uma vasta área degradada pela imperícia e o descaso para com a natureza. O balanço do custo/benefício ainda é altamente deficitário. Há os que prevêem o restabelecimento da atividade florestal da área, mas muitos são céticos a esse respeito. Torcem o nariz quando lhes é apresentada uma dessas alternativas, o cultivo de soja.
O exemplo da colonização da Belém-Brasília é um testemunho perturbador contra a vocação florestal da Amazônia. A vocação é evidente numa região que concentra um terço das florestas tropicais do planeta e que pode exibir números de peso. A renda da atividade madeireira no Pará, o principal produtor da Amazônia, foi de mais de cinco bilhões de reais no ano passado, equivalente a 20% do PIB estadual, gerada por 2.300 empresas, 93% delas de micro a médio porte, das quais dependem meio milhão de pessoas.
Mas essas grandezas desaparecem no cenário da economia internacional. O Pará, que é responsável pela maior parte de toda a madeira tropical consumida no Brasil, produz menos de 30 milhões de metros cúbicos anuais. O consumo mundial de madeira é de quase 3,5 bilhões de metros cúbicos. Ou seja: a participação paraense é inferior a 1%. Como 80% da madeira produzida no Pará é ilegal, isso significa que a floresta é desfalcada das suas melhores espécies ou inteiramente posta abaixo sem renovação do estoque. A produção com certificação de qualidade ambiental não vai além de 1% do total. Assim, no dia em que a curva do manejo sustentado dos recursos florestais coincidir com a curva da produção talvez não haja mais mata nativa, só reflorestada ou manejada. Se as duas curvas não estiverem condenadas a ser criaturas paralelas, com ponto de encontro no infinito.
Ritmo veloz
A inserção florestal amazônica é mais veloz no quadro dos problemas e dos danos do que no âmbito das soluções e dos ganhos. Se o que a região produz é um traço no gráfico da produção, o que destrói tem expressão planetária: o desmatamento na Amazônia tem correspondido, nas últimas três décadas, em média, a um quinto de todo o desmatamento no mundo tropical.
O panorama é grave pela restrita ótica dominante, a da atividade florestal que resulta em madeira sólida. Mas adquire a conformação de verdadeira tragédia quando se amplia a visão para o uso múltiplo da floresta. Mesmo ocupando apenas 9% da superfície da Terra, as florestas tropicais concentram metade da biodiversidade do planeta.
Ao ritmo de destruição das décadas de fogo da história recente da Amazônia, o que já se perdeu de informação é assustador, mesmo tendo se tornado praticamente impossível saber o quanto (ou justamente por isso). A bioprospecção, descambando para a biopirataria, é o esforço, freqüentemente ilegal e nocivo ao interesse do Brasil, de montar um cadastro da realidade física da Amazônia e preservar seus testemunhos antes que o operador da motosserra apareça. O estudo das línguas e da cultura dos índios é a recuperação, por via indireta, do conhecimento preste a desaparecer.
Por que essa selvageria predatória ainda prevalece sobre a engatinhante - mas já firme - racionalidade, impedindo que a vocação florestal da Amazônia, livre da camisa-de-força da monocultura madeireira, se afirme no plano das realidades fáticas da sociedade humana na região? As explicações são tão convincentes quanto a força do potencial de biodiversidade da floresta amazônica. Muitas foram apresentadas durante o 32º Congresso Brasileiro de Estudantes de Engenharia Florestal, que reuniu na semana passada em Belém quase 500 participantes. Explica-se, porém não se muda a realidade. Ou muda-se, mas a mudança é muito mais lenta do que a permanência das práticas irracionais, e até sua expansão.
O triste balanço entre o que Paragominas podia ser e o que se tornou há de ser creditado ao custo de aprender a lidar com uma situação tão original quanto a Amazônia através de uma metodologia tão onerosa quanto o ensaio e erro. Depois desse desvio, porém, a região já vivenciou outros capítulos semelhantes, que fizeram o sertão ocupar quase todo o vale do Araguaia-Tocantins, onde também a hiléia patenteara seus domínios, e Rondônia chegar a um grau tal de devastação que hoje os líderes das frentes pioneiras querem uma inversão radical da regra em vigor nas áreas de floresta da Amazônia: a reserva legal deixaria de ser de 80% e passaria a ficar confinada em 20% da área dos imóveis rurais. Rondônia se despojaria de vez de sua condição de área amazônica e se incorporaria ao Planalto Central, abandonando as veleidades ecológicas. Resultado malfadado de uma algaravia de apenas quatro décadas do mais intenso desmatamento em possessão amazônica. Ou ex-amazônica.
Em encontros como a ruidosa confraternização de futuros engenheiros florestais brasileiros, fica cada vez mais tristemente tentador repetir o título de um dos livros recentes sobre a região: Amazônia, adeus.
Fonte: Lúcio Flávio Pinto