"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Conselho Nacional do Meio Ambiente é reformulado e sociedade civil perde espaço


'Decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro aumentou o número de representantes do governo federal e reduziu a participação da sociedade civil no conselho ligado ao Ministério do Meio Ambiente; entidades como o Instituto Chico Mendes de Conservação a Biodiversidade (ICMBio) perderam cadeiras'
Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente (Reprodução)
O órgão no Ministério do Meio Ambiente responsável pelas normas de controle, manutenção da qualidade das ações e por estabelecer critérios para licenciamentos ambientas sofreu mudanças após um decreto publicado nesta quarta-feira (29) no Diário Oficial da União (DOU). O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) deixa de ter 96 cadeiras e passa a contar com 23 conselheiros apenas. A redução de 76% dos membros titulares encolhe a participação de ONGs e entidades públicas.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é o presidente do Conselho. Além dele, mais nove representantes do governo federal estão entre os titulares, incluindo o presidente do Ibama, Eduardo Fortunato, e a secretária-executiva da pasta, Ana Maria Pellini. As ONGs, que tinham 22 assentos, agora só podem indicar quatro representantes. O setor privado só terá direito a duas vagas dentro da entidade e serão indicadas pelas confederações nacionais de cada área.

O Instituto Chico Mendes de Conservação a Biodiversidade (ICMBio), juntamente com a Agência Nacional de Águas (ANA), Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados e Ministério Público (federal e estaduais) perderam cadeiras.

Essa é a primeira grande reformulação no órgão que existe desde 1981.

Contrário a ação do Planalto, o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição no Congresso, deu entrada em um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para suspender o decreto. Segundo ele, a decisão desrespeita a Constituição e enfraquece o conselho.




Previdência: ‘Presidente do STF não deveria participar de pacto que retira direitos’, diz analista

Projeto de "reforma" do governo Bolsonaro prevê desconstitucionalização da Previdência Social, que deveria ser defendida pelo Supremo
"Mais vulneráveis" devem pagar o pacto entre poderes que retira direitos das aposentadorias. (Foto: MARCOS CORRÊA/PR)
São Paulo – O presidente Jair Bolsonaro defendeu um “pacto” entre os três poderes da República para aprovar medidas que, segundo ele, serviriam para destravar a economia. Os presidentes do Senado e da Câmara, David Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia, e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, foram tomar café da manhã no Palácio da Alvorada nesta terça-feira (28). No cardápio, a “reforma” da Previdência. Além de aumentar o tempo de contribuição e reduzir o valor das aposentadorias, o projeto prevê a retirada da Constituição de parâmetros que regulam os benefícios.

Para o cientista político e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Vitor Marchetti, é “muito esquisita” a participação de Toffoli num acordo desse tipo. Inclusive o texto que servirá de base para o nomeado Terceiro Pacto Republicano pela Realização de Macrorreformas Estruturais foi levado pelo próprio ministro do STF.

“Preocupa que o presidente da Casa guardiã da Constituição participe de uma conversa desse tipo”, disse Marchetti aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, nesta quarta (29). “Não é papel dele construir esse tipo de agenda. Que sinal que o Supremo dá para o país ao se dispor a discutir temas que claramente afrontam a Constituição?”, destaca.

Pagar o ‘pacto’

Segundo o analista, quem deve acabar arcando com os custos de um pacto desse tipo é certamente a “população mais vulnerável”, que se ampara na Constituição na esperança de ver concretizados direitos ali os direitos previstos. O professor explica que o STF tem justamente a função de zelar pela legalidade das ações dos poderes Executivo e Legislativo. Ele lembra que a Carta Magna foi resultado de um “enorme pacto” feito pela sociedade, em 1988, que elegeu uma Assembleia Constituinte para elaborar o documento.

“Agora um pacto entre os chefes dos três Poderes, num momento instável, de incertezas, com derretimento de popularidade desses atores, crise de legitimidade e dificuldade de articulação entre esses mesmos poderes, a gente vai fazer um pacto de desconstitucionalização?”, pergunta Marchetti. Segundo ele, esse tipo de movimentação, além de preocupante, tem a finalidade de tentar resgatar a confiança perdida dos “agentes do mercado” que estão “abandonando o barco do governo Bolsonaro”.

Caneta

Outra contradição apontada é que Bolsonaro, ao mesmo tempo em que acena para um “pacto de governabilidade”, a todo momento entra em rota de colisão com os outros dois poderes. O episódio mais marcante foi a convocação do presidente para as manifestações ocorridas no último domingo (26), que tinham o intuito de acuar o Congresso e fazê-lo apoiar as pautas de interesse do governo. No mesmo dia do encontro com os chefes dos poderes, Bolsonaro disse que tem mais poder na caneta que Maia. “De manhã, ele toma café com os demais poderes tentando apaziguar as coisas e, à noite, volta a jogar querosene na fogueira. Não é possível que os agentes de mercado ainda consigam acreditar que essa presidência ainda é capaz de produzir alguma racionalidade”, criticou Marchetti.




Pacto pelo autoritarismo, por Luis Felipe Miguel

De fato, o pacto “responde” às ruas do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de escanteio.

Na manhã de ontem, os presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal se reuniram e decidiram firmar um “pacto” - que a imprensa definiu, alternativamente, como pacto “pelas reformas”, “para retomar o crescimento” ou “em resposta aos protestos”.

Os protestos a serem respondidos, logo ficou claro, eram os do dia 26 de maio, convocados por apoiadores de Jair Bolsonaro. Aqueles do dia 15 foram ignorados, embora tenham sido bem maiores. Nada do que vazou sobre os termos do pacto se refere, ainda que de forma remota, à garantia do financiamento da educação, à defesa da liberdade de cátedra ou à permanência da autonomia universitária. Pelo contrário, o carro-chefe era a aprovação da reforma da Previdência, em prejuízo de trabalhadores e pensionistas.

Aparece também uma reforma tributária indeterminada, que dificilmente aponta em boa direção - afinal, já durante a campanha, Paulo Guedes propunha dar cabo de qualquer progressividade na cobrança de impostos. E ainda a questão da “segurança pública”, o que deve indicar o pacote de ampliação da violência do Estado de Sérgio Moro.

De fato, o pacto “responde” às ruas do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de escanteio. Assim, a coalizão golpista, que chegou ao poder em 2016 e que teve seu sempre frágil equilíbrio interno desorganizado com as eleições de 2018, senta-se para redefinir seu programa comum.

As linhas centrais do programa continuam as mesmas: desmanche da Constituição de 1988, redução do espaço de vigência da democracia, edificação de um modelo de dominação sem qualquer propósito de conciliação com os dominados.

Parceira majoritária da coalizão, a burguesia se fez presente na reunião por meio de Paulo Guedes, mas nem precisava. Seus interesses dominam a agenda. O fim da previdência social promete lucros colossais para o capital financeiro - e estamos falando de “colossais” mesmo para os padrões dos bancos. O setor associado ao capital estrangeiro vibra com a acelerada desnacionalização da economia. O chamado “agronegócio”, com o fim das políticas de proteção ambiental, a agressão aos povos indígenas e a permissão, para não dizer incentivo, à violência contra o movimento camponês. Com o aumento da taxa de exploração do trabalho, lucram todos, mas a verbalização desta agenda cabe hoje sobretudo ao comércio, por meio de figuras tão bizarras quanto Flávio Rocha ou Luciano Hang (”o véio da Havan”).

Chama a atenção o fato de que o STF sente-se à mesa para negociar esse novo pacto - ele, cuja função seria a de guardião do pacto já em vigor, que é a própria Constituição. Até jornalistas de direita foram obrigados a apontar o absurdo que é uma corte participar de um pacto em favor de medidas cuja constitucionalidade ela terá que analisar depois.

Talvez um presidente mais preparado e mais zeloso da imagem da instituição do que Toffoli evitasse tamanha exposição, mas o comprometimento com o retrocesso não vem de hoje. Talvez simplesmente tenha chegado o momento de formalizar o lendário “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. E em termos ainda piores do que aqueles que Jucá sugeria.

Coincidência ou não, logo após a reunião do pacto houve outra, para Guedes e Maia avançarem na Câmara pautas que vão desde a restrição do direito de greve até a possibilidade de redução dos salários dos servidores públicos. De tarde, foi a vez do advogado geral da União pedir ao STF autorização para que a polícia reprima discussões políticas dentro das universidades.

De fato, o projeto de redução brutal de direitos, ampliação das desigualdades e banimento político de todo o campo popular precisa de uma escalada repressiva para se manter de pé. É o complemento necessário.

Confirma-se o que escrevi em 2016: o golpe iniciou um período de transição à ditadura.
 

O clã Bolsonaro, no entanto, tem uma fatura a cobrar por sua aceitação do pacto. Está em julgamento mais um pedido de Flávio para que sejam interrompidas as investigações sobre ele e Queiroz. Não se espere de Jair o altruísmo de sacrificar a prole, os brothers de Rio das Pedras e, no final, a si mesmo para garantir a unidade da classe dominante brasileira.

Por falta de comunicação ou então por sutil estratégia, enquanto os chefes dos poderes tomavam café da manhã, as bancas de jornal vendiam a edição do Valor Econômico com uma entrevista do general Augusto Heleno - o cérebro militar do governo - em que ele praticamente bradava por uma ditadura aberta, sob o comando de Bolsonaro. Em suma, enquanto o presidente contemporizava, seu mentor dobrava a aposta.

No fim do dia, levado uma vez mais por sua masculinidade frágil e sua mentalidade de pré-adolescente no parquinho, Bolsonaro não resistiu a tentar se afirmar diante de Rodrigo Maia: “minha caneta é maior do que a sua”. Não se trata apenas de uma manifestação de despreparo e imaturidade, mas de uma necessidade na relação que ele mantém com sua base militante. O “mito” tem que se mostrar forte, inflexível, avesso à negociação, “alfa”.

Sem essa base, Bolsonaro torna-se descartável. Com ela, sua relação com os outros integrantes da coalizão golpista sempre será tumultuosa.

A despeito destes problemas, eles estão conseguindo levar adiante um ponto central de seu projeto: bloquear qualquer possibilidade de que o campo popular seja aceito como interlocutor político. Somos levados a crer que a política brasileira está resumida a três caminhos: a insanidade prepotente do ex-capitão, o autoritarismo matreiro do vice ou o republicanismo de araque de Rodrigo Maia.

O campo democrático é quase um espectador destes embates. O centro do poder, com o apoio fundamental da mídia, trabalha para transformá-lo - com seus sindicatos e associações, com suas manifestações de rua, com suas bancadas parlamentares, governadores e prefeitos, com seus 47 milhões de votos em 2018 - em pária da política brasileira.

Não é possível aceitar que o único obstáculo ao retrocesso seja a incapacidade de ação unida da coalizão golpista. A bateção de cabeça entre eles permite ganhar tempo, mas esse tempo tem que ser aproveitado para reorganizar forças e interromper o avanço autoritário. As manifestações do 15M mostraram que isso é possível.

(29 de maio de 2018.)




‘Reforma’ da Previdência de Bolsonaro é um ‘desacato aos brasileiros’, afirma professora da UFRJ


Reforma transforma idosos em empecilho ao progresso, apontou Denise Gentil. 'É assim que se sentem 30 milhões de pessoas no país que recebem benefício da Previdência'
Denise: “há no debate muitos mitos e o primeiro mito é esse, o de que temos um rombo fiscal na Previdência". (Foto: REPRODUÇÃO)
São Paulo – O problema da Previdência no país não é fiscal, é de distribuição de renda, defendeu na tarde desta terça-feira (28) a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Denise Gentil, ao participar de audiência pública na comissão especial da Câmara sobre a “reforma” da Previdência. “O discurso do déficit da Previdência é para silenciar os indecisos e aterrorizar a população”, disse ainda a professora em sua crítica ao projeto do governo, que inviabiliza a aposentadoria para os trabalhadores.

Destacando sempre que o problema é de distribuição de renda, Denise disse que “há no debate muitos mitos e o primeiro mito é esse, o de que temos um rombo fiscal na Previdência, de R$ 227 bilhões atualmente, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), e assim deveríamos fazer o ajuste fiscal”.

Mas a professora destacou que está fora do debate o fato de que no período de 2005 a 2015 houve superávit na seguridade social do país. “E esse superávit alcançou o montante de R$ 957 bilhões, a preços de 2016.”

Durante esse período, segundo a professora, os recursos foram desviados dos mais necessitados (Bolsa Família, inválidos, BPC, deficientes físicos, entre outros). “E quando a Previdência começa a ter receita menor do que o gasto, a partir de 2016, nós recebemos a mais dura e cruel reforma da Previdência que já foi proposta”, criticou.

“De fato, é um desacato aos brasileiros transformar os idosos em um empecilho ao progresso, em um entrave ao desenvolvimento. É assim que se sentem 30 milhões de pessoas no país que recebem benefício da Previdência. Sentem-se como fardos da sociedade, mas sempre contribuíram”, afirmou.

Denise também lembrou que o déficit é questionável do ponto de vista das regras constitucionais – artigos 195 e 196 da Constituição. “Lá diz que o Estado deve complementar as receitas”, afirmou, ressaltando que os deputados constituintes, na época da concepção da Carta Magna, criaram um “cinturão protetor” da política social, que não está sendo considerado pelo governo e os que defendem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/2019.




Fiocruz assegura qualidade de pesquisa nacional sobre drogas vetada por órgão do Ministério da Justiça


Levantamento cumpriu o proposto em edital, respeitando rigor metodológico, científico e ético, produzindo informações de extrema importância para o país e a sociedade brasileira’, defende entidade

Fiocruz/Rio de Janeiro. Foto: Divulgação
Jornal GGN – A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou um comunicado defendendo a metodologia do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, pesquisa feita com 16 mil entrevistados envolvendo 500 pesquisadores. A nota é uma resposta ao veto da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), ligada ao Ministério da Justiça.

A Fiocruz explica que ganhou o edital público da Senad para fazer o levantamento, uma espécie de censo do consumo de substâncias lícitas e ilícitas no Brasil, em 2014.

“A pesquisa teve início ainda em 2014 e se estendeu até o final de 2017, quando foi enviado à Senad relatório completo com os resultados previstos em edital de licitação”, destaca. A instituição ressalta ainda que o trabalho foi pago com dinheiro público: foram utilizados cerca de R$ 7 milhões de um total de R$ 8 milhões disponibilizados pelo edital, e a prestação de contas enviada ao órgão financiador em junho do ano passado.

O veto ao 3ª edição do trabalho pegou o meio científico de surpresa. Mas não foi ilegal. Existe uma cláusula no contrato que permite que a Senad barre a publicação. O argumento usado pelo órgão do Ministério da Justiça foi que a pesquisa não teria cumprido exigências do edital, o que a Fiocruz nega.

Para especialistas da área da saúde, a suspeita é porque o levantamento não confirmou a existência de uma epidemia de drogas no país, contrariando o que vem defendendo o ministro da Cidadania, Osmar Terra.

Em entrevista ao jornal “O Globo”, Terra confirmou a suspeita de especialistas e ainda atacou a pesquisa, alegando falta de embasamento “em evidências”.

“Eu não confio nas pesquisas da Fiocruz (…) Se tu falares para as mães desses meninos drogados pelo Brasil que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia de drogas, elas vão dar risada. É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas ruas. Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que nos basear em evidências”, disse.

Leia abaixo a resposta da Fiocruz divulgada em forma de comunicado:

“A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por prezar pela transparência e em razão de seu compromisso com a sociedade brasileira, vem a público prestar alguns esclarecimentos sobre o 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, pesquisa realizada pela Fundação a partir de edital público lançado, em 2014, pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad), órgão ligado ao Ministério da Justiça.

A pesquisa teve início ainda em 2014 e se estendeu até o final de 2017, quando foi enviado à Senad relatório completo com os resultados previstos em edital de licitação. Ao todo, o projeto envolveu cerca de 500 profissionais de diferentes áreas, dentre entrevistadores de campo, pesquisadores da área de epidemiologia e estatística, e compreendeu as seguintes fases: planejamento, estruturação, logística, treinamento, coleta de dados, apuração, ponderação, calibração, tabulação, análise de dados, escrita de relatórios e tradução para outros idiomas. Quanto aos recursos, foram utilizados cerca de R$ 7 milhões do total de R$ 8 milhões disponibilizados pelo edital. A prestação de contas foi enviada ao órgão financiador em junho de 2018.

O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira é mais robusto e abrangente que os dois anteriores, pois inclui, além dos pouco mais de 100 municípios de maior porte presentes nos anteriores, municípios de médio e pequeno porte, áreas rurais e faixas de fronteira. Foram entrevistados mais de 16 mil indivíduos. Essa abrangência só foi possível graças à utilização, exigida no próprio edital, do mesmo plano amostral adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para realização da já reconhecida Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O plano amostral adotado permite, portanto, um cruzamento desses resultados com dados oficiais do país. Vale destacar que a abrangência amostral foi solicitada pelo próprio edital e que todos os critérios solicitados foram devidamente atendidos.

Quanto à possibilidade de comparação dos dados, o grupo de pesquisa responsável esclarece que, em função do intervalo temporal, já que os levantamentos anteriores foram realizados em 2001 e 2005, houve mudanças na demografia do país e nos critérios adotados para classificação de dependência, segundo nova edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4). Portanto, uma comparação dos dados atuais com os anteriores não poderia ser feita de maneira simplista e direta, mas sim a partir de análises estatísticas específicas. Essa etapa também foi realizada, com entrega de análises comparativas que utilizaram três abordagens diferentes.

Informamos ainda que o plano amostral empregado no 3º Levantamento foi, em 2018, submetido, aprovado e publicado nos anais do Joint Statistical Meeting, reunião das diversas Associações Estatísticas Mundiais, sendo referendado, portanto, pelo Consórcio Internacional de Estatística.

O reconhecimento faz parte da trajetória dos pesquisadores que constituem o Laboratório de Informação em Saúde (LIS), do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), onde toda a pesquisa foi desenvolvida. O Laboratório é reconhecido, desde 2008, como Centro de Referência do Ministério da Saúde para as atividades de vigilância em saúde e realiza diversos estudos, já há algumas décadas, sobre as condições de saúde da população brasileira, com destaque para a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um grande inquérito de abrangência nacional, também em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que permitiu traçar o perfil de saúde da população brasileira, a exposição a fatores de risco, a prevalência de doenças crônicas e o uso do sistema de saúde.

Até o presente momento, no entanto, a Senad se nega a reconhecer oficialmente o estudo em questão. Conforme enviado em ofício à Secretaria, a Fiocruz continuará respeitando o edital que baliza a pesquisa e tornará público o relatório apenas após anuência do órgão ou mediante outra via prevista formalmente na legislação pertinente. Diante dessa situação, a Presidência da Fiocruz, por intermédio da Procuradoria Federal junto à Fundação, acionou a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CGU/AGU), que faz intermediação de conflitos entre órgãos públicos, e aguarda posicionamento.

A Fiocruz orgulha-se do trabalho realizado pelos seus pesquisadores e assegura que o 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira cumpriu o proposto em edital, respeitando todo o rigor metodológico, científico e ético pertinentes a este tipo de estudo, produzindo informações de extrema importância para o país e a sociedade brasileira.”




O massacre de Manaus e o Coaf, por Helena Chagas

Senadores Alcolumbre e Olímpio, na sessão do Coaf - Foto Orlando Brito
O mundo político parou para discutir uma espécie de sexo dos anjos – a ida do Coaf da pasta da Justiça para a da Economia – e ficou longe da pauta da vida real. Muita energia foi gasta nas idas e vindas do Planalto e nos esforços do ministro Sergio Moro para manter o órgão sob seu chapéu, mas, do ponto de vista técnico, o Coaf vai ficar onde sempre esteve e, a não ser por um arranhão simbólico na imagem de Moro, nada muda tanto assim.

Enquanto falávamos de Coaf, porém, 55 detentos de Manaus acabaram mortos numa briga facções dentro do sistema penitenciário. O desespero de suas famílias, e de outras que não sabiam se seus parentes estavam vivos ou mortos, ocupou no noticiário espaços semelhantes ao lero-lero do Coaf. O distinto público teve oportunidade de ver, quase em sequência, as notícias sobre a chacina de Manaus e as matérias mostrando a discurseira política, as confusões de plenário e o vai-e-vem do Planalto em torno do Coaf.
Reprodução.
Não se viu, além das lamentações protocolares, esses mesmos líderes e comandantes do Executivo e do Legislativo – que encontraram tempo para tomar um café e conversar sobre um pacto imaginário – apresentando medidas ou propostas para resolver a situação nos presídios brasileiros. Curiosamente, os temas estão nas mãos dos mesmo personagens – além do presidente da República e dos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, o agora ex-futuro chefe do Coaf, o ministro Sérgio Moro.
Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro – Foto Orlando Brito
Problemas como superlotação, corrupção, ação de facções e outras mazelas que tornaram as cadeias sucursais do inferno continuarão, dentro de algumas horas, a ser solenemente ignorados e excluídos das reuniões e do debate político. Alguns detentos foram deslocados para outros presídios, o ministério da Justiça enviou para Manaus a força nacional e a vida segue até o próximo massacre.

Talvez a situação fosse diferente se o meio político empenhasse, na solução para a questão penitenciária, ao menos uma fração do tempo e das energias gastas nas disputas internas do poder e no esforço para mostrar à platéia que estão combatendo a corrupção.



segunda-feira, 27 de maio de 2019

Um país em transe: as razões irracionais do fascismo. Por Jessé Souza

Quando analisei o processo de escrita da primeira edição do livro A elite do atraso, em maio de 2017, o Brasil já entrava de maneira decidida no ciclo pós-golpe de 2013-2016. o governo Michel Temer, a serviço precisamente da elite do atraso, passava a vender as riquezas nacionais e a precarizar as condições de trabalho da população com o ataque à CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho. As consequências vieram rapidamente: empobrecimento geral da população, abandono dos serviços públicos e alto desemprego. Como denunciado no livro, a sociedade continuava sendo induzida pela grande imprensa a perceber todo o processo de saque das riquezas nacionais, da rapina do orçamento público e, consequentemente, da diminuição do poder de compra da população como produto apenas da “corrupção dos tolos” – a corrupção do estado e da política.

Vale lembrar, para o leitor mal-intencionado ou especialmente das intenções de votos de Lula. Terminado o pleito, Bolsonaro eleito, Sérgio Moro receberia como prêmio ao seu “trabalho” o cargo de superministro das atividades repressivas.

Ainda que o candidato com pregação fascista não tenha sido o preferencial da elite do atraso – o conjunto dos proprietários sob comando do rentismo internacional –, o fracasso dos seus candidatos “o ciais”, como Geraldo Alckmin, por exemplo, jogou toda a elite nos braços de Bolsonaro. Afinal, o fascismo sempre foi o “plano B” dos proprietários que só pensam no próprio bolso em todos os casos históricos relevantes. Mesmo que a alternativa fosse uma simples social-democracia leve e superficial como a incorporada pelo Partido dos Trabalhadores.

O que explicaria o fato de a maioria da nossa sociedade, sob o pretexto de evitar a chegada de um suposto ladrão à presidência, votar num candidato que faz a apologia do assassinato e da tortura de opositores? Quem, em sã consciência, poderia julgar como um argumento moralmente válido subordinar o suposto roubo ao assassinato? Como compreender que toda uma sociedade e suas crenças sejam postas de cabeça para baixo? Como explicar, enfim, o que parece inexplicável?

A verdadeira elite brasileira, que é a do dinheiro, que manda no mercado e que “compra” as outras elites que lhes são subalternas, criou o bode expiatório da corrupção só da política, como vimos anteriormente, para desviar a atenção de sua corrupção disfarçada de legalidade. Toda a sociedade tomou doses diárias desse veneno destilado pela mídia, pelas escolas e pela universidade e viu, imbecilizada, como não podia deixar de ser, uma meia dúzia de estrangeiros e seus capangas brasileiros tomarem seu petróleo, sua água, suas terras, seus recursos. Em nome da moralidade, do combate à corrupção e pelo suposto “bem do povo brasileiro”, roubaram tudo o que puderam e nos deixaram muito mais pobres.

Essa corrupção que se realiza agora de “verdade”, quantitativamente, sem nenhum exagero retórico, é literalmente milhares de vezes maior que toda a corrupção política da história brasileira somada. Por sua aparência de legalidade, não chamamos de corrupção quando bancos e corporações compram 400 deputados venais para assinar o que eles querem, não é mesmo? só um imbecilizado pensaria que o mero procedimento, aparentemente legal, é mais importante que o resultado concreto do saque. Imbecis: é isso que nos tornamos quando acreditamos no engodo do suposto e seletivo combate à corrupção da política como solução para as nossas mazelas.

Este livro foi escrito precisamente com o intuito de esclarecer a gênese deste processo histórico de dominação simbólica de toda a sociedade brasileira pela elite do saque e da rapina – legitimada e tornada invisível pelo embuste do combate à corrupção só do estado e da política. Nesse contexto, a massa da classe média e suas frações mais conservadoras, infelizmente, amplamente majoritárias, acabam por dar vazão ao ódio aos pobres ao mesmo tempo que são exploradas pelo saque rentista. Se a elite eterniza seu acesso aos cofres públicos como coisa sua, assalto que sua imprensa comprada comemora como vitória da “austeridade” contra o “populismo”, a classe média quer a garantia de que o povo continue como sempre foi: pobre, humilhado e obediente.

A classe média não quer só ganhar mais que os pobres. Ela também quer se deliciar com o prazer sádico e covarde que antes era apanágio do senhor de escravos: o gozo da humilhação contra quem não tem defesa e precisa aturar calado a piada, o abuso, o insulto, a humilhação sob todas as suas formas. Não é apenas a revolta – mesquinha, mas racional – contra o acesso dos pobres à universidade e por vê-los competir pelo bom emprego. É a raiva também de que o pobre possa usar o mesmo avião e comprar a mesma roupa no mesmo shopping center, ainda que a 24 prestações no cartão de crédito com juros abusivos. É a raiva por perder a empregada, aquela que é abusada de mil formas, e os trabalhadores sem qualificação, aqueles que não têm outra opção senão vender sua força de trabalho a qual- quer preço e sob qualquer condição. é desse modo que a escravidão e o ódio ao escravo, agora atualizado como ódio ao pobre, continua no âmago do nosso cotidiano.

Mas se a ampla maioria da classe média sempre foi implicitamente fascista no seu comportamento prático em relação aos pobres, como explicar o avanço do fascismo entre os próprios pobres? É preciso lembrar que esse é um fenômeno historicamente recente. o fascismo nasce, como no exemplo do italiano, a partir de uma dissidência do movimento operário socialista. É a oposição entre o internacionalismo clássico do movimento dos trabalhadores e o advento do nacionalismo operário que acaba por dividir a classe trabalhadora, fazendo surgir essa espécie brutalizada de reação dos dominados.

Todo fascismo é, portanto, reflexo de uma luta de classes truncada, percebida de modo distorcido e, por conta disso, violento e irracional no seu cerne. Na sua base está a manipulação de emoções que geram agressividade, como medo, raiva, ressentimento e ansiedade sem direção, sempre com fins de manipulação política. A incompreensão racional, por parte da população, de processos políticos complexos é utilizada para a construção de bodes expiatórios, um modo historicamente e ciente de canalizar frustração e ressentimentos sociais. A marginalização de grupos minoritários e a violência aberta e disseminada, contaminando a sociedade como um todo, são as consequências inevitáveis de todo fascismo.

Depois da tragédia do nazifascismo europeu, imaginou-se, durante um bom tempo, que o mundo estaria livre de ideologias que pregam abertamente o racismo e o ódio indiscriminado. No mundo atual, no entanto, seja em países desenvolvidos, seja em países periféricos, a ameaça de uma nova forma de política do ódio, muito semelhante em vários aspectos ao fascismo clássico, é um perigo cada vez mais iminente. Por isso, é crescentemente urgente compreendê-lo de forma adequada. Essa compreensão tem que sair dos meios acadêmicos restritos e ganhar a esfera pública. O pano de fundo é semelhante em todos os casos, mas a forma assumida é sempre particular em cada sociedade.

O contexto geral do neofascismo contemporâneo parece resultar do processo de desenraizamento político e social dos indivíduos provocado, na esfera política, pelas mudanças do capitalismo financeiro, hoje dominante. Por meio de uma política consciente que destruiu ou enfraqueceu sindicatos, partidos e a capacidade associativa em geral – muito especialmente das classes populares –, o capitalismo financeiro cria o isolamento individual como marca da sociedade contemporânea. Isolado, o indivíduo não apenas pode ser explorado, trabalhar mais ganhando menos, sem direitos trabalhistas. Acreditando-se “empresário de si mesmo”, ele é deixado politicamente sem defesa. Pior ainda, é também cada vez mais dominado pela propaganda neoliberal que diz que as vítimas do desemprego e do subemprego precário, produzidas por um sistema econômico concentrador e improdutivo, são, elas próprias, as culpadas pelo próprio infortúnio. Esse indivíduo isolado e indefeso é assolado por uma agressividade que não compreende e, desse modo, ele ou dirige contra si próprio a raiva que sente por sua própria pobreza e privação ou a canaliza contra bodes expiatórios construídos para este m. o caso brasileiro é paradigmático neste sentido. Uma multidão de desempregados e subempregados empobrecidos ao longo de anos de política em favor do rentismo nacional e internacional passa a ter a opção de dirigir sua raiva e seu ressentimento contra si mesma – quando não se entrega, como é comum, ao alcoolismo e à depressão – ou contra bodes expiatórios socialmente aceitáveis.

Os “belgas”, ou seja, a elite do atraso e a alta classe média “europeizada”, que se veem como estrangeiros na própria terra, oprimiram o “Congo”, ou seja, o próprio povo, e o reduziram à pobreza e à ignorância. Se transformou em ódio ao pobre o ódio ao escravo negro – eternizado nas classes populares de hoje, majoritariamente mestiças com escolaridade precária e condenadas ao trabalho desqualificado e semiqualificado. Essa é a base primeira de todo o ódio e o ressentimento reprimidos e recalcados que são o núcleo da sociedade brasileira contemporânea.

A ascensão do Partido dos Trabalhadores a partir dos anos 1980, com todas as suas limitações, foi uma inflexão importante no processo de organização popular. Com o golpe de 2013-2016, a reação conservadora veio primeiro de cima, da alta classe média nas ruas, da sistemática corrosão de valores democráticos diariamente perpetrada pela imprensa, da cooptação do STF e, por consequência, da destruição da ordem constitucional.

Foi dito a este povo que a corrupção política havia sido a causa do nosso empobrecimento. Entretanto, quando a corrupção dos partidos de elite fica óbvia a todos sem ser reprimida, todo o sistema perde representatividade. o golpe de misericórdia foi a prisão injusta do líder das classes populares desmobilizadas. Com base em um processo de aparência, o ex-presidente Lula foi impedido de participar das últimas eleições. Naquele momento, o último elo de expressão racional da revolta popular foi cortado.

Abriu-se a partir daí a porta para a revolta agora irracional das massas. A ascensão do líder com pregação abertamente fascista, Jair Bolsonaro, defensor da ditadura militar, do racismo, da tortura e do assassinato de opositores como arma política, só pode ser compreendida neste contexto. O próprio fato de, no governo do Partido dos Trabalhadores, dezenas de milhões de marginalizados terem a experiência do acesso à educação superior e ao consumo de massa, além da expansão de direitos para negros, mulheres e gays, causou violenta reação autoritária. Primeiro, de parte da elite e da alta classe média, evidenciada pelo desprezo e pelo ódio ao pobre que caracteriza qualquer sociedade marcada pela escravidão. Depois, pela ação de fake news em escala industrial no período eleitoral. As necessidades emocionais de um povo tornado pobre e ignorante por sua elite são impiedosamente estimuladas por 400 mil robôs em um tipo de guerra suja já utilizada para a eleição do presidente americano Donald Trump. Quando da onda de protestos das mulheres brasileiras sob a bandeira do #EleNão, em todas as grandes cidades do país, contra um candidato abertamente misógino que se diz defensor da subordinação das mulheres, as fake news foram utilizadas para construir mentiras que mudaram o panorama eleitoral a favor do candidato fascista também nas classes marginalizadas e pobres.

Os protestos sob as palavras de ordem “ele não”, majoritariamente compostos pelas mulheres da classe média mais crítica e engajada, possibilitaram a cooptação do voto feminino das classes populares, última cidadela contra a “ética da virilidade” do fascismo popular. Antes disso, o candidato fascista tinha rejeição ampla do voto feminino nessas classes. Aqui entra em cena o que há de mais sujo na política das fake news e da mentira institucionalizada. analistas de ultradireita da campanha fascista, que perceberam as consequências do isolamento político dos indivíduos que o capitalismo financeiro representa na esfera política, se aproveitaram impiedosamente desse fato para opor mulheres emancipadas da classe média contra as mulheres pobres e evangélicas, por meio da fusão de imagens reais da passeata com imagens de outros atos, como travestis quebrando santos, mulheres sem blusa, etc. Afinal, para quem é pobre e humilhada, o ganho emocional proporcionado pela distinção moral construída artificialmente em relação a mulheres supostamente “indecentes”, por meio de mentiras que não podem ser desmentidas, se torna irresistivelmente sedutor. É uma “vingança de classe” – obviamente distorcida e contra a fração errada da classe média – que acaba por funcionar como uma válvula de escape contra a pobreza e a humilhação vividas diariamente por essas mulheres.

Como já discuti em um livro anterior, a partir de pesquisas empíricas realizadas com os segmentos mais pobres da sociedade brasileira, a oposição “pobre honesto” versus “pobre delinquente” dificulta enormemente qualquer solidariedade de classe entre os mais pobres e marginalizados entre nós. o “delinquente” é percebido como o “bandido”, no caso do homem, e a “prostituta”, no caso da mulher. Todas as famílias das classes marginalizadas são esgarçadas por essa oposição cuja sombra se derrama sobre todos. A importância de líderes políticos que as representem a partir de cima e busquem diminuir a importância dessa contradição interna de classe com uma política pelos interesses de todos os pobres advém precisamente desse fato que comprovamos empiricamente em nosso estudo sobre os marginalizados brasileiros. É isso que o ex-presidente Lula representava. Sem isso, a porta fica aberta para a guerra de classe entre os próprios miseráveis, divididos entre os supostos honestos e supostos delinquentes.

É nesse contexto que a “ética da virilidade”, entendida como a ética dos que não têm ética, reina absoluta. O fascismo arregimenta a partir de cima os ressentimentos, medos e ansiedades sem explicação possível e os canaliza a bodes expiatórios. o sentimento antes disseminado pela grande imprensa contra o Partido dos Trabalhadores como covil da corrupção é apenas o mais óbvio. Mas todo fascismo usa e abusa da sexualidade reprimida das classes populares. A homossexualidade, que não pode ser admitida no sujeito, é canalizada em selvagem agressão externa; o ódio à mulher percebida como ameaça, e não como parceira, provoca uma agressiva regressão a padrões primitivos de relações de gênero. O pobre não é apenas pobre. Ele é humilhado e dominado por valores construídos para subjugá-lo. Isso confere ao fascismo enorme capilaridade e contamina a vida familiar e relações de vizinhança em todos os níveis da sociabilidade popular.

O que os pobres precisariam saber é por que eles ficaram mais pobres. Caso contrário, a raiva e a frustração em estado puro iriam, como foram, inevitavelmente, desaguar no primeiro bode expiatório socialmente legitimado. Primeiro o PT, criminalizado e estigmatizado como todas as organizações populares no Brasil. Mas também os gays, os negros, os índios, as mulheres, os nordestinos e todos que possam se tornar presas fáceis de uma agressividade sem direção. Os mecanismos opacos da dominação financeira, sejam os de mercado, como os juros escorchantes embutidos em tudo que compramos, sejam as formas estatais de apropriação do orçamento público como uma dívida pública fraudulenta e nunca auditada, precisam ser conhecidos e debatidos amplamente. Essa grande corrupção legalizada precisa ser tornada conhecida. Se isso não acontecer, o velho espantalho da corrupção política irá inevitavelmente ocupar o seu lugar. O erro da esquerda, que condicionou sua derrota eleitoral, foi precisamente este.

A espantosa falta de inteligência dos dois principais candidatos da “esquerda” nas últimas eleições foi, precisamente, não terem percebido o elo constitutivo entre o empobrecimento geral da população e sua transfiguração em limpeza moral a serviço do interesse geral. Simplesmente não foi revelado à população empobrecida e, portanto, legitima- mente raivosa e ressentida com seus representantes, o elo causal que teria permitido compreender a ligação entre o aumento do desemprego, da violência e da pobreza e o embuste da estratégia legitimadora elitista. Ambos defenderam a operação Lava Jato e apenas criticaram “abusos menores”. Isso em relação a uma operação de suposto combate à corrupção que literalmente blindou o sistema financeiro – a origem real da corrupção tanto ilegal quanto legalizada –, os órgãos da mídia venal e o poder judiciário como um todo. Além disso, se concentrou, seletivamente, na perseguição sem provas a líderes populares, como Lula, e no combate de fachada aos meros “operadores” de esquemas legais e ilegais de apropriação do estado pelos donos do mercado.

Desde o fim da República Velha, o moralismo postiço do suposto combate à corrupção, elevado ao status de interpretação dominante do país, e a criminalização seletiva da política, do estado e da soberania popular servem à eternização desse modelo e seus dois fundamentos principais: tornar o orçamento do estado um banco particular da elite; criminalizar sob todas as formas a soberania popular. Este bode expiatório da corrupção apenas da política, que detém seu quinhão de verdade – ou não enganaria ninguém – serve para tornar literalmente invisível a corrupção legalizada do mercado.

Um exemplo concreto ajuda a tornar compreensível o embuste. Ninguém em sã consciência deixaria de achar condenável a rapina pessoal do ex-governador Sérgio Cabral e seus 280 milhões de reais desviados e descobertos pela operação Lava Jato. No entanto, a população do estado do Rio de Janeiro ficou mais pobre não por conta desses desvios. é um ato recriminável, sem sombra de dúvida, e merece punição exemplar. Mas o que empobreceu de fato o estado do Rio de Janeiro foi a propaganda da imprensa venal associada à Lava Jato na campanha de criminalização da Petrobras, empresa de cujos royalties o estado inteiro dependia. Não apenas o Rio de Janeiro precisava deles para obras de infraestrutura geradoras de em- prego e pagamento de serviços públicos, como o país como um todo dependia da capacidade de investimento da Petrobras, que chegou a representar mais de 50% do investimento público nacional.

A perda aqui é na escala de centenas de bilhões de reais todos os anos, montante suficiente para empobrecer e desempregar, efetivamente, populações inteiras. a superfície aparentemente legal desse expediente permite tornar invisível a histórica expropriação elitista das riquezas nacionais e ainda culpar convenientemente um bode expiatório. Legitimada, a patranha elitista pode ser eternizada séculos a o sem reação e sem denúncia. Estigmatizada e criminalizada enquanto empresa, a Petrobras está prestes a ser vendida a preço de banana, tal como acontece em todo saque privado às riquezas públicas desde que o Brasil é Brasil.

Ao entrevistar recentemente, para meu último livro, A classe média no espelho, ex-engenheiros da Petrobras que perderam o antigo emprego e se transformaram em motoristas de Uber, todos me disseram que a culpa de sua desgraça pessoal seria da “política” e do “Cabral”. Foi o que aconteceu com a população brasileira como um todo. a invisibilidade desse processo é obviamente ainda maior nas parcelas mais pobres da população.

Quando a esquerda não denuncia este esquema elitista e, ao contrário, o legitima e valida expressamente, no elogio a Moro e à Lava Jato, me pergunto como pretende não só ganhar eleições, mas também esclarecer a sua população sobre as causas reais de sua desventura e exploração? Neste contexto, imaginar que a oposição abstrata entre democracia e fascismo – quando a maioria do povo já vive um “fascismo prático” de violência e exclusão – pode criar comoção e simpatia para sua causa, sem explicar as causas da pobreza real, é de uma ingenuidade atroz.

*posfácio do livro A elite do atraso

“Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica
e corrupta formará um público tão vil como ela própria.” Joseph Pulitzer

*Jessé Souza é graduado em direito e mestre em sociologia pela Universidade de Brasília, a UnB, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e fez pós-doutorado em psicanálise e filosofia na New School for Social Research, em Nova York. É autor de mais de 20 livros e de artigos e ensaios em vários idiomas. Entre seus maiores sucessos, se destacam A tolice da inteligência brasileira, A radiogra a do golpe, Subcidadania brasileira e A elite do atraso (LeYa); A ralé brasileira (Contracorrente); e Os batalhadores brasileiros (Editora UFMG). Atualmente é professor titular de sociologia da Universidade Federal do ABC.