"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog
Obrigado pelo acesso ao nosso blog!
Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.
"Que o Deus da esperança os encha
de toda alegria e paz, por sua confiança Nele, para que vocês transbordem de
esperança, pelo poder do Espírito Santo." (Romanos 15:13)
Por Manoel Paixão
Meu caro leitor e minha
cara leitora,
Agradeço enormemente a você, que esteve
comigo aqui no blog, nessa jornada ao longo de 2019.
Espero continuar contando com sua
atenção no próximo ano, para poder seguir nesse espaço, informando,
denunciando, criticando e suscitando reflexões.
Desejo-lhe um 2020, repleto de boas notícias,
de energias e esperanças renovadas, de novas oportunidades, de muita
produtividade, de grandes realizações e de vitórias.
Que você possa celebrar os bons
sentimentos, como o amor, a humildade, o respeito, a solidariedade, a
generosidade e a amizade, bem como, desfrutar de bons momentos e coisas extraordinárias,
ao lado de seus familiares e amigos.
Que Deus, em sua infinita bondade, lhe
abençoe, fortaleça e proteja, e dê muita sabedoria, discernimento, ânimo, luz,
paz, saúde, prosperidade e felicidade.
As coisas
simples da vida são como aquelas estrelas que brilham em noites claras. Elas
estão sempre lá, nos cercando, nos oferecendo sua magia sutil; No entanto, nem
todos os dias paramos para olhar para elas ou lembramos que elas existem.
Somente
quando estamos perdendo, somente quando a vida nos dá um revés pequeno ou
grande, subitamente apreciamos o que realmente constrói nosso coração, o que
constitui cada uma daquelas cordas internas que dão música e significado à
nossa existência.
“As coisas
simples, amáveis e discretas formam dia a dia a borda da nossa vida, onde
repousar em dias tempestuosos e onde todas as nossas alegrias fazem sentido.”
Algumas
pessoas dizem que quanto mais simples o nosso modo de vida, menos preocupações
teremos e menos erros faremos. Agora, todos estão livres para complicar suas
vidas o quanto quiserem, todos nós temos o direito de assumir riscos, projetar
sonhos e ter um círculo social tão amplo e variado quanto quisermos.
O principal,
a chave de tudo, não é levar uma vida simples, mas ser simples em pensamentos e
saber o que é importante, o que realmente faz nosso coração feliz e nos
identifica. De lá, todos nós somos muito livres para construir nossos
microuniversos individuais. Nós convidamos você a refletir sobre isso.
Coisas
simples são as maiores coisas da vida
Há um fato
que nos impressiona, o Google publicou há poucos dias quais são as pesquisas
mais comuns entre os usuários. Entre elas, o que é quase sempre uma tendência é
uma em particular: “como ser feliz?”
“Ser feliz é
fechar os olhos e não querer mais nada e, para isso, basta deixar de medir a
felicidade pelo dinheiro que temos ou não temos: mas por aquelas coisas simples
que não mudaríamos por todo o dinheiro do mundo.”
Todos nós
temos mais de uma coisa que nunca mudaríamos nem pela mais incrível das
riquezas. A vida de seus filhos, seu parceiro, seus irmãos … E talvez até seus
animais de estimação. Porque o que eles nos dão e o que lhes oferecemos é uma
troca de afetos que não tem preço.
Agora, o
problema com tudo isso é que a vida, às vezes, não é nada fácil. Você sabe, por
exemplo, que a coisa mais importante para você são seus filhos, mas você deve
completar um longo dia de trabalho que o impeça de estar com eles o tempo que
desejaria.
Você
gostaria, indubitavelmente, que tudo fosse mais fácil e, a partir daí, que às
vezes nos sentíssemos perdidos diante de tantas pressões, tantas obrigações que
dia após dia nos afastam do que é realmente essencial. Portanto, seria
interessante pensar nesses aspectos por alguns instantes.
Levar uma
vida plena e consciente
Levar uma vida plena e consciente é saber entender em que momento da sua vida
você está e sentir o seu presente, o aqui e agora.
Devemos ser
conscientes do que nosso coração nos diz e das necessidades que você tem ao seu
redor. Você pode, por exemplo, trabalhar mais horas, dando-lhe a oportunidade
de ter mais coisas, mas sabe que, apesar de tudo, prefere investir esse tempo
em sua família.
Viver uma
vida plena também é entender que todo esforço vale a pena, porque tudo que você
faz te faz feliz e oferece felicidade aos seus.
Se não houver
reciprocidade, não há cumprimento. Olhe para a sua vida como se fosse um
círculo: se não houver equilíbrio consigo mesmo e com o que o rodeia, será
difícil desfrutar dessa felicidade.
O prazer do
simples é uma atitude
Nem todas as pessoas sabem como aproveitar as coisas simples que a vida lhes
oferece. Talvez porque eles são incapazes de vê-los, outros porque não os
apreciam e estão mais inclinados para o apego material, para satisfação
imediata, o que não dura …
“Respire,
ame, seja feliz, aproveite as coisas simples da vida … Este é o único urgente,
o resto, embora você não acredite, é secundário.”
Desfrutar do
prazer do simples é uma atitude que muitos cultivam porque já possuem uma paz
interior adequada e sem artifício. O gozo do simples chega a alguns depois de
uma longa jornada onde, de repente, agem de consciência e descobrem prazeres
que não haviam tido em conta anteriormente:
– O prazer de
boas amizades.
– Um bom dia e uma inesperada carícia.
– Do riso contagiante de uma criança.
– O vento embriagante depois de uma tempestade
– De um sol que afunda no oceano em absoluto silêncio
– De um despertar de domingo sem qualquer preocupação na mente …
Não hesite em
praticar essa simplicidade de pensamento e emoções no seu dia-a-dia, porque
quando finalmente encontrarmos essa felicidade interior, ela durará para sempre
porque estará conectada ao nosso verdadeiro eu.
Um
dos filmes mais bonitos e comoventes dos últimos anos, Cinema Paradiso*,
que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Foi um grande sucesso de
bilheteria em muitos países e também no nosso. Quase todas as pessoas que
conheço choraram em algumas partes do filme. A cena que provocou lágrimas no
maior número de espectadores é aquela na qual o velho, que é o pai espiritual e
sentimental do rapaz, que lhe ensinou quase tudo o que sabia da vida até então,
diz a ele que se prepare para partir do vilarejo rumo à cidade grande: “Vá
e não olhe para trás; não volte nem mesmo se eu te chamar”. O pai manda
embora o filho adorado e “ordena” a ele que vá em busca do seu caminho, do seu
destino, dos seus ideais.
Nesse
momento, eu não fui mais capaz de conter as lágrimas, coisa que tentava fazer
até então em respeito a esse esforço que os homens fazem para não chorar — e
que é absolutamente ridículo. Lembrei da minha história pessoal e lamentei, com
enorme tristeza, que eu jamais tivesse ouvido coisa parecida. Parece que eu
havia nascido essencialmente para realizar tarefas que fossem da conveniência
dos meus pais. Eles jamais me estimularam a sair de perto deles, ainda que
pudessem achar que partir seria bom para mim. Achavam intelectualmente; mas,
como isso era inconveniente e doloroso para eles, optavam por me impor o que
fosse melhor para eles.
Antigamente
isso era feito de modo aberto e frontal. Os pais, em certas culturas, chegavam
até mesmo a escolher algum filho — especialmente filha — que lhes servisse de
companhia e amparo na velhice. Essa criatura não deveria se casar nem ter
qualquer tipo de vida própria; seria a “enfermeira” e “empregada” dos pais nos
seus últimos anos. A maior parte das famílias, isto há 40, 50 anos, não agia
assim tão diretamente. Mas jamais estimulariam todos os filhos para que fossem
estudar em outras cidades. Alguns podiam — e deviam — ir; outros deveriam ficar
para dar continuidade aos negócios dos pais e para zelar por eles.
Filho
era, de certo modo, propriedade dos pais e seu destino era o que fosse decidido
por eles. E as decisões eram feitas essencialmente em função das conveniências
práticas — materiais e de conforto físico — dos patriarcas.
Os
aspectos emocionais da vida existiam, é claro, mas estavam submersos e
invisíveis, colocados embaixo das questões práticas de todos os tipos. Não eram
relevantes na hora das decisões. Se um filho era escolhido para ser padre, de
nada interessavam suas reclamações de que não era esse o destino que havia
sonhado para si e que isso o faria infeliz. Ser infeliz não era argumento
forte!
Temos
a impressão de que esses tempos já se foram e que hoje em dia as coisas são
muito diferentes. Parece que agora nós agimos respeitando a vontade dos nossos
filhos e que eles podem fazer das suas vidas o que desejarem. Será mesmo? Não é
essa a minha impressão. É evidente que há grandes avanços.
Rapazes
e moças são mais livres para escolher suas profissões; são mais livres para
escolher seus namorados, para se casarem ou não — isso em termos, pois uma
filha solteira com mais de 25 anos de idade ainda preocupa, e muito, os pais.
Poucos são os pais que, hoje em dia, têm coragem de interferir frontalmente
sobre o destino de seus filhos. Isso, é claro, desde que eles se comportem
dentro dos limites, estreitos em muitos casos, dos padrões de conduta mais
usuais. Filhos que decidem ser atores, bailarinos, músicos etc. esbarram em
grandes obstáculos familiares. O mesmo acontece com os homossexuais que, até
hoje, escondem suas práticas das famílias.
Agora,
a forma mais sórdida e maldosa que existe de dominação é aquela que se mascara,
que se traveste de grande amor e superproteção. A criança — e depois o jovem —
é tão paparicada que não desenvolve os meios necessários para se manter sobre
as próprias pernas. É evidente que, dessa forma, jamais poderá partir para
longe dos pais. Foi carregada no colo o tempo todo e suas pernas ficaram, por
isso mesmo, atrofiadas. Não pode andar por seus próprios meios e é dependente
da família para a vida toda. Pais fracos e inseguros fazem isso porque, na
realidade, querem os filhos perto de si, exatamente como se fazia no passado.
Querem os filhos por perto para darem sabor e sentido às suas vidas pobres e
vazias. Querem seus filhos sem asas e incapazes de voar por conta própria. Não
prepararam seus descendentes para voarem seus próprios voos e buscarem seu
lugar na terra. Em nome do amor — o que é mentira — geram um parasita, uma
criatura dependente.
A
coisa é mais grave do que era no passado: antes o indivíduo era proibido de
partir. Hoje, é permitido que parta, mas ele não tem pernas para isso!
*O
Filme: Cinema Paradiso, direção: Giuseppe Tornatore – 1988 (original
versão). Legendas em português)
**Artigo publicado
originalmente no site do autor in memoriam. Dr.
Flávio Gikovate, foi médico-psiquiatra, psicoterapeuta e escritor
Sou
fã de pessoas que dividem o pão, o amor, o conhecimento. Que ajudam os colegas
de trabalho, os amigos, os desconhecidos. Que transmitem o que sabem, sem medo
da competitividade.
Hoje, há muita dificuldade em ver o
outro como alguém confiável, uma vez que a competitividade adentrou todos os
setores de nossas vidas. A concorrência estende-se do mercado de trabalho até
as relações interpessoais, prejudicando as interações humanas e o afeto que deveria estar ali contido.
Numa sociedade que alimenta a
supervalorização do status, atrelado ao que se compra e se tem, em detrimento
do que se é, os sentimentos acabam ficando de lado, uma vez que não mais
importam. Há um jogo de interesses em que o outro se torna interessante, à
medida que é capaz de atender aos quesitos materiais que predominam na
sociedade. A beleza virou cartão de visita, o poder de compra virou qualidade
indispensável, a popularidade social e a virtual viraram sinônimos de sucesso.
Nesse contexto, importa mais o que se
tem a oferecer em termos de conforto material do que o que se tem a oferecer em
termos de afeto verdadeiro.
Mentiras convenientes são mais
valorizadas do que verdades desagradáveis. O eu é dominante na forma como se
vive, ou seja, o que o outro sente parece pouco relevante e isso acaba
prejudicando os relacionamentos entre as pessoas,
tornando-nos cada vez mais frios e distantes uns dos outros, embora tão perto.
Eis um dos motivos de as pessoas terem
medo de compartilhar conhecimento, de dividir o que sabem, de demonstrar
sentimentos, uma vez que aquilo tudo pode vir a ser usado da pior forma
possível por quem recebeu. O outro pode puxar o tapete, revelar segredos, roubar um namorado,
difamar, distorcer, trair. O outro pode ser quem mente, quem usa, quem pouco se
importa com os sentimentos alheios.
Ainda assim, apesar da necessidade de
cautela, olhar o outro em suas necessidades e ajudá-lo, contribuindo para que
ele cresça e melhore, nunca será em vão.
O bem que fizermos sempre ficará na
gente, ou seja, o que o outro resolver fazer com aquilo não será da nossa
conta. Se o outro usar de nossa solicitude de uma forma improvável e
traiçoeira, o erro será dele, ficará nele, não na gente.
Não é à toa que sou fã de pessoas que
dividem o pão, o amor, o conhecimento. Que ajudam os colegas
de trabalho, os amigos, os desconhecidos. Que transmitem o que sabem, sem medo
da competitividade.
A generosidade é uma das mais belas
virtudes do ser humano.
*Marcel Camargo
é Graduado em Letras e Mestre em "História, Filosofia e Educação"
pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor...
A ativista sueca foi acusada sem provas
de ser uma marionete de seus pais ou de interesses obscuros, mas quem a conhece
garante que ela é “sua própria chefa”
Greta
Thunberg foi recebida como heroína em Lisboa ao descer com
outros cinco passageiros de um pequeno barco a vela com o qual tinham cruzado o
Atlântico para não poluir. Mas nessa recepção, no dia 3, houve um viajante que
não apareceu na entrevista coletiva no píer: o pai da ativista adolescente,
Svante. Ele sempre a acompanha, mas fica em segundo plano. Tampouco manda em
sua filha, dizem numerosas pessoas que convivem com a “personalidade do
ano” escolhida pela revista Time, a adolescente sueca de 16
anos que inspirou um movimento global para lutar contra a crise climática.
Desde que se tornou conhecida, há 15 meses, Thunberg é alvo de
suspeitas de que alguém está por trás dela. Seus pais, agências de publicidade
ou o bilionário George Soros foram apontados em teorias da
conspiração que acabaram sendo desmanteladas. Seu entorno afirma que ela é “sua
própria chefa” e sua desenvoltura em público transmite essa sensação.
Durante sua permanência em Madri, do dia 6 ao 11, para a Cúpula do
Clima da ONU, Thunberg esteve rodeada de um punhado de pessoas de confiança.
Além de Svante, foi acompanhada por Erika Jangen, uma amiga da família que a
conhece desde que nasceu. Um grupo reduzido de assistentes, pessoas com
experiência no mundo do ativismo climático, ajudou-a com a agenda. Sua mãe,
Malena Ernman, e sua irmã, Beata, dois anos mais nova que Greta, permaneceram
na Suécia.
Segundo o relato familiar, não são os
pais que influenciam a menor, mas sim o contrário. Greta caiu aos 11 anos em
uma forte depressão que a levou a parar de comer e de conversar com
estranhos. Diagnosticada com síndrome de Asperger, ela diz que sua paixão
por salvar o planeta se deve em parte à forma de ver o mundo de uma pessoa
autista, capaz de concentrar toda a sua atenção e todos os seus esforços em um
único tema. Sua mãe, uma famosa cantora de ópera que representou a Suécia no
festival Eurovision de 2009, e seu pai, um ator de teatro, mudaram sua forma de
pensar graças a ela. Tornaram-se veganos, reduziram seu consumismo e pararam de
viajar de avião. Relataram isso no livro Nossa Casa Está em Chamas, a
versão em português de uma autobiografia familiar lançada na Suécia em 23 de
agosto de 2018 com o título de Scener ur Hjärtat (Cenas do coração).
Três dias antes da publicação do livro,
Greta tinha iniciado seu histórico protesto. Instalou-se sozinha diante do
Parlamento sueco com um cartaz que dizia “Greve escolar pelo clima”, publicou
sua foto nas redes sociais, e a revolução começou. A imagem de uma estudante de
15 anos que não ia às aulas para se manifestar em defesa do meio ambiente
viralizou, e em poucas horas apareceram os primeiros jornalistas suecos, dos
jornais Dagens ETC e Aftonbladet. Ajudou o fato de a Suécia
estar a poucos dias da realização de eleições gerais. O jornal britânico The
Guardian, que há anos dá uma atenção especial ao clima, foi o primeiro veículo
de comunicação internacional a entrevistá-la, na semana seguinte. Depois vieram
os convites para dar uma palestra TED em Estocolmo, ir a fóruns internacionais,
as manifestações em massa e assim por diante até hoje.
No livro, assinado pelos quatro membros
da família, mas narrado na voz da mãe, os pais de Greta se apresentam como duas
pessoas que acreditam com firmeza na causa. Contam de maneira explícita as brigas,
insultos e choros em um lar em crise devido à condição das duas pequenas. Beata
foi diagnosticada com transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. As
doenças mentais que proliferam no Ocidente são, como relatam, a manifestação em
nossa parte do mundo da crise de sustentabilidade gerada por um modelo que gira
em torno do crescimento sem limites. As consequências desse sistema em outros
continentes seriam as secas, os deslizamentos de terras e o aumento do nível do
mar.
Foi durante as férias que Greta teve a
ideia de iniciar a greve escolar. Inspirou-se nos adolescentes americanos do movimento Zero Hour, frustrados
pela passividade dos políticos em relação ao clima. Seus pais, meio reticentes
no início, apoiaram-na ao ver o entusiasmo despertado por sua filha, até então
triste e avessa a se relacionar com estranhos.
Greta já havia previsto que sua greve
atrairia a atenção da mídia. Nos dias anteriores, sua energia aumentou e,
durante suas férias, fazendo trilha na área do lago Trollsjön, na Lapônia
sueca, não parava de perguntar ao seu pai como deveria fazer. Svante a orienta.
− Você vai ouvir toda hora: “Foram seus
pais que lhe disseram que fizesse isso?”.
− Então vou responder a verdade. Que fui
eu que influenciei vocês, e não o contrário.
Em seu primeiro discurso em público, na
praça Nytorget de Estocolmo em 8 de setembro do ano passado, o público deu a
Greta uma sonora ovação. Uma mulher ao lado de Svante lhe perguntou se ele
estava orgulhoso. “Não, não estou orgulhoso, só muito feliz porque vejo que
Greta está bem”.
“Só estou aqui como pai”
Em público, Greta já deu muitas amostras
de estar no controle da situação, inclusive durante sua estadia na Península
Ibérica. Quando os repórteres cruzavam com Greta em Lisboa ou Madri, nenhum
adulto se interpunha. Em uma ocasião, enquanto tomava suco com seu pai e os
companheiros da viagem de barco na Praça do Comércio, saiu sozinha do
estabelecimento para pedir a alguns jornalistas que por favor não os gravassem
no local.
“É ela que está interessada, que está
motivada, que faz com que seu pai se mova, foi ela que teve essas ideias”, diz
Riley Whitelun, o navegante australiano que ofereceu seu barco para levá-la dos
EUA para a Europa. Durante 21 dias, conviveu com eles no catamarã e viu que as
teorias de que ela seria uma marionete são falsas: “Não se pode esconder uma
farsa dessa magnitude 24 horas por dia”.
Nem Greta nem Svante quiseram fazer
declarações para esta reportagem. “Só estou aqui como pai”, limitou-se a dizer
Svante na terça-feira, enquanto esperava que sua filha terminasse uma reunião
na Cúpula do Clima com Michelle Bachelet,
alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. “É ela que decide o que quer
fazer, aonde vai e o que diz”, afirma Alejandro Martínez, um espanhol de 25
anos que participou de reuniões com Thunberg e sua equipe em Madri.
Thunberg também consulta um grupo de
destacados cientistas climáticos, entre eles Kevin Anderson, professor da
Universidade de Manchester, e Johan Rockström, diretor do Instituto de Postdam
para os Estudos Climáticos.
Sua turnê pela América do Norte e Europa
foi custeada pela família. Ela pode cobrir parte dos gastos graças a dois
documentários que está gravando. Um deles é filmado por uma equipe da BBC que
teve acesso exclusivo a ela em Lisboa e Madri.
Greta decidiu limitar sua exposição
pública após sua chegada à Europa. Nos Estados Unidos, tinha aparecido em
programas de televisão de grande audiência, como os de Ellen DeGeneres e Trevor
Noah. Também se deixou ver com o ex-presidente Barack Obama e com os atores
Leonardo DiCaprio e Arnold Schwarzenegger.
Se quisesse, teria aparecido em todo
lugar em Madri. Autoridades, políticos, artistas e jornalistas quiseram
aparecer com ela, segundo seu entorno, mas ela disse chega. A bola da mídia foi
longe demais e ela sentiu que sua voz estava impedindo que fossem ouvidos
outros ativistas do movimento contra a mudança climática, como cientistas ou
pessoas dos países mais expostos a desastres naturais.
“A atenção da mídia é completamente
desproporcional em relação à que deveriam ter os cientistas ou os líderes
jovens do Sul global”, diz Luisa Neubauer, que apresentou juntamente com Greta
dois painéis na Cúpula do Clima.
Greta, que tirou um ano sabático em sua
escola secundária, ainda não anunciou seus planos para 2020. Agora ela está
viajando para a Suécia com seu pai, de trem, ônibus e carro elétricos, para
passar o Natal em família. Apesar do perfil mais discreto, seu círculo acredita
que a ativista recarregará as energias para seguir em frente, porque, como ela
disse mais de uma vez, esta luta deu à sua vida “um significado”.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub (Foto: Fabio
Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)
O Ministério da Educação sempre foi um
setor estratégico para os projetos políticos gerais dos governos que assumiram
o poder executivo no Brasil. Por vezes um projeto de fortalecimento do
desenvolvimento nacional com a educação no centro da formação emancipatória do
povo brasileiro e da inovação científica, como vimos com Darcy Ribeiro, que
teve seu percurso impedido pelo golpe militar. Em outras vezes, o projeto
colocado foi o de expansão de uma concepção mercadológica e privatista de
educação, como o de Paulo Renato no governo FHC, que fez com que a balança de
matrículas no ensino superior chegasse a quase 90% nas instituições privadas.
Balança esta que só pôde ter uma leve recuperação após o ciclo de expansão e
democratização das universidades e institutos federais durante os anos de 2007
a 2012.
Também em uma virada radical de
hegemonia no campo político, como temos visto com o governo Bolsonaro, o MEC se
torna uma peça fundamental para assentar sua posição na disputa ideológica da
sociedade, buscando inverter valores, revisar concepções políticas e visões
historiográficas que já estavam bastante consolidadas. E na sustentação do
governo Bolsonaro a disputa ideológica, de valores e tradições são eixos
estratégicos. Portanto o campo da educação, neste governo, tem servido até
agora apenas para servir de sustentáculo ideológico do reacionarismo e do
obscurantismo característicos desse grupo político que tomou o poder.
E Weintraub é justamente, para além de
uma figura polêmica e contraditória, a personificação desse programa
conservador e reacionário em que o governo tenta se assentar para manter sua
bolha de aprovação. Isso se evidência na procura incessante do ministro em
apresentar declarações polêmicas, ofensivas e acusatórias contra as
universidades, os professores e os estudantes, mas sem nunca avançar em ações
práticas ou planejamentos estratégicos para sanar os desafios reais que a
educação brasileira ainda enfrenta. Em contraposição às frequentes provocações
às universidades públicas, não há nenhum avanço que se note rumo às metas e
estratégias do PNE, quase nenhum esforço em priorizar o debate do Novo Fundeb e
um péssimo diálogo com reitores e administrações de universidades, com profunda
ineficiência na gestão do repasse das verbas das instituições federais de
ensino superior, o que provocou um ano perdido de crise permanente na educação
brasileira.
Esse ministro é também homem forte de
Bolsonaro, saiu da cozinha do presidente, onde também figuram outros Weintraub,
e que apesar de estar cumprindo um papel de testa de ferro do reacionarismo
ideológico, também tem em suas origens políticas fortes relações com os grupos
da política econômica ultra-neoliberal que absorveram Bolsonaro. Aqui se
localiza uma das grandes contradições, e um símbolo de sua incoerência, pelo
fato de que mesmo após fazer uma tabelinha com Guedes ao sustentar os cortes na
educação e apresentar um projeto de cunho profundamente neo-liberal e privatizante
como o Future-se, Abraham agora tenta se colocar em uma posição de
enfrentamento aos grupos oligopolistas da educação privada, como deixou muito
claro em sua presença na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, por se
sentir ameaçado por esses setores.
Ora, mas é justamente um ministro que
usa de seu posto e da sua referência enquanto pessoa pública para ferir a moral
e a imagem das universidades públicas, construídas com muito suor por muitas
décadas, que contribui para o enfraquecimento da força social dessas
instituições no Brasil e no mundo. É justamente um ministro que bloqueia
verbas, e faz disso uma piada, embaralhando todo planejamento de gestão
financeira das administrações e prejudicando a garantia do financiamento
público, é que contribui para o aumento da evasão estudantil e o sucateamento
das instituições federais de ensino superior.
É justamente esse entrelaçamento de um
projeto de aparelhamento ideológico e de política neo-liberal do MEC que
contribui para o fortalecimento dos oligopólios do ensino privado, para o
desmonte da auto-suficiência da pesquisa brasileira nas instituições públicas e
a entrega total do nosso potencial científico para ou para o obscurantismo ou
para as empresas, sobretudo as estrangeiras.
É nesse sentido que, mesmo atentos aos
anseios agressivos do mercado oligopolista do ensino privado, não devemos temer
em exigir com veemência a demissão de Weintraub do cargo de ministro da
Educação. Primeiro porque falas, entrevistas e declarações, sejam elas dadas a
jornalistas, feitas por vídeo ou em redes sociais, por parte de uma autoridade
de primeiro escalão do governo, não devem jamais ser relativizadas, pois tem um
impacto simbólico relevante na sociedade e que se desdobram em consequências
reais e estruturais. Mas também porque essa postura que unifica um projeto de
instrumentalização ideológica conservadora do MEC e ao mesmo tempo de caráter
privatista e mercadológico só tem a prejudicar nossa educação. E nenhum
ministro que venha para destruir a educação deve ter paz dos estudantes ou de
qualquer um que se preocupe com o futuro do nosso País.
[Este texto não reflete necessariamente
a opinião de CartaCapital.]
*É estudante de Economia da USP e
presidente da União Nacional dos Estudantes.
Em todo o
mundo, quem abrir o Google hoje encontrará um desenho que chamam
de doodle. Nele se acha um indivíduo de chapéu e violão em um bar. Com um
clique na figura, abre-se o espaço para Noel Rosa em 64 milhões de resultados.
É uma homenagem ao dia do seu aniversário. Então, como fugir ao irrecusável
convite deste dia? Por isso a um artigo anterior retorno.
Por Urariano Mota*
O cantor e compositor carioca Noel Rosa (1910—1937): suas letras sempre exibem uma miséria material que não atinge seu espírito
Publiquei uma vez que maio deveria ser o
mês mais triste para os brasileiros. Pois quem daria mais por um artista feito
no rigor da arte, sem introdução e sem segunda parte, que expressasse três
terços de todo brasileiro? Porque eu queria simplesmente dizer: maio deveria
ser o mais triste dos meses, porque nesse mês faleceu Noel Rosa. E ninguém mais
notava. E ninguém dava mais por isso, ninguém dava mais um mil réis por isso, o
que era um cômico que zomba, porque Noel foi e é o maior compositor da música
popular brasileira. Pela
décima vez Jurei não mais amar Pela décima vez Jurei não perdoar O que ela me fez O costume é a força Que fala mais alto Do que a natureza E nos faz dar prova de fraqueza Ou porque Gago
apaixonado Mu-mu-mu mulher Em mim fi...fizeste um estrago Eu de nervoso Estou fi-fi... ficando gago
Se ainda não consegui me fazer entender,
procurarei ser mais claro: Noel é um compositor tão rico quanto a vida, e
quanto mais a gente procura apanhá-lo, pegá-lo, nem que seja para um riscado de
caricatura, mais ele nos foge, escapole, por entre os dedos. Ele fica a sorrir
de nossa vã pretensão. Por onde tentemos pegar Noel, ele se furta à nossa
frente. Vejam por quê. Se tentamos agarrá-lo pelos dados biográficos, a nossa
tendência é situá-lo como o personagem ideal de um dramalhão de circo. Ao nascer, foi arrancado a fórceps, o que lhe
afundou o maxilar inferior e lhe deixou paralisado o lado direito do rosto.
Esse foi um defeito que se tornou pior ao longo dos anos, porque se agravou
depois de duas cirurgias. Na escola, a crueldade das outras crianças o apelidou
de “Queixinho”. Isso ocorreu até o dia em que descobriu o bandolim: “A menina
do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia
completamente importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus
desencantos e sonhos de garoto que começava a espiar a vida”.
Naturalmente, o escudo do bandolim, e do violão
depois, era pouco. Quando o queriam elevar, além do plano puramente físico,
diziam que apesar de feio, baixinho e magro, a sua inteligência e sambas
conquistavam mulheres. Se alguma vez ouviu semelhante elevação, Noel deve ter
sorrido com amargura. Porque Dama do
cabaré Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci você Fumando cigarro, entornando champanha no seu soirée Dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra Só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra. Em frente à porta um bom carro nos esperava Mas você se despediu e foi pra casa a pé No outro dia lá nos Arcos eu andava À procura da dama do cabaré Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, não me lembro de quem Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa de diplomacia, mas não gosta de ninguém.
Pois sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em
samba. Coisa que consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom
pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a
sua dor. (Em sua biografia, há uma foto de mulher, há uma foto de uma
feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel.
Imaginamos o que ela escreveu no verso da própria imagem, se alguma vez deixou
para Noel alguma foto: “Como prova de amizade, Ceci”. De amizade... Amizade
para quem ama.) Então se diz que ele transformava a vida em
samba, mas se esquece de que, nos intervalos da arte, Noel evitava comer,
simples comer à mesa, na frente dos admiradores. O queixo danificado
mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. E por isso
nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos, de
comidas leves, e comia mais cigarros, muitos e muitos cigarros, que deviam
torná-lo um homem, acreditava-se então, de aparência bonita. Ele, que já havia
sido chamado, num duelo de sambas, de "o Frankestein da Vila". Mas
com um cigarro permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha,
naqueles idos mal vividos. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta
alimentar, estilo de vida e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre,
hemoptise, pulmões podres. Um gênio arrebentado em plena criação e juventude.
Que se foi, aos 26 anos, em 4 de maio de 1937.
Meio trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que
foi chamado de "Frankestein" pelo sambista Wilson Batista num momento
de raiva (e como são sinceros esses momentos de raiva!), esse mesmo Noel
tuberculoso, raquítico, é o homem que diz em uma entrevista à revista O
Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação
existiria entre o amor e a música: “Romeu e
Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a
mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão.”
É esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo
humorista que numa madrugada, ao nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos
que voltavam de automóvel, de uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à
espera do bonde, se destacava pela negação: terno branco à procura de um corpo,
rosto que descia à procura de um queixo. Então os amigos param o carro e
mandam-no embarcar. Ele entra e vai pedindo: – Me
sirvam um conhaque.
– Por que isso, Noel? – Por quê?! Eu estava esperando um bar, quando vocês passaram.
Ele é o mesmo homem que à sua magreza de doente
assim se referiu: Tarzan, o
Filho do Alfaiate Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte Nem conheço futebol O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro Sem ver um raio de sol A minha força bruta reside Em um clássico cabide Já cansado de sofrer Minha armadura é de casimira dura Que me dá musculatura Mas que pesa e faz doer Eu poso pros fotógrafos E distribuo autógrafos A todas as pequenas lá da praia de manhã Um argentino disse Me vendo em Copacabana No hay fuerza sobre-humana Que detenga este Tarzan! De lutas não entendo abacate Pois o meu grande alfaiate Não faz roupa pra brigar Sou incapaz de machucar uma formiga Não há homem que consiga Nos meus músculos pegar Cheguei até a ser contratado Pra subir em um tablado Pra vencer um campeão Mas a empresa pra evitar assassinato Rasgou logo o meu contrato Quando me viu sem roupão.
No entanto, se tentamos apanhar Noel a partir da
maioria de suas letras, que diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da
oração, da queixa de um homem a Deus, Último
desejo
Nosso amor que eu não esqueço E que teve o seu começo Numa festa de São João Morre hoje sem foguete Sem retrato e sem bilhete Sem luar, sem violão Perto de você me calo Tudo penso e nada falo Tenho medo de chorar Nunca mais quero o seu beijo Mas meu último desejo Você não pode negar Se alguma pessoa amiga Pedir que você lhe diga Se você me quer ou não, Diga que você me adora Que você lamenta e chora A nossa separação. Às pessoas que eu detesto Diga sempre que eu não presto Que meu lar é o botequim Que eu arruinei sua vida Que eu não mereço a comida Que você pagou pra mim Diante de uma letra assim, diante de uma melodia
que não podemos expressar em palavras de prosa, diante da expressão de tal
sentimento, sempre novo, tão vivo e primordial que nos faz penetrar um cheiro
de sal e mar pelo nariz, diríamos, que dor, que felicidade trágica na
expressão! A impressão que Noel nos deixa, em seus versos mais cruéis, é que
ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como um indivíduo póstumo. Devíamos
dizer com mais precisão que ele pinta e canta enternecedores testamentos. O
dicionário dirá que testamento é um “ato personalíssimo, unilateral, gratuito,
solene e revogável, pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu
patrimônio, total ou parcialmente, para depois de sua morte”. Ora, unilaterais,
solenes e limitados por vezes são os dicionários!
Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para
as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a
separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim,
que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E
cabem aqui duas observações. A primeira delas é que na canção o patrimônio do
poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais
possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de
um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que
não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a
miséria humana. A outra observação fala da ambiguidade dos seus rompimentos
amorosos. Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no
sentimento: Jurei não
mais amar Pela décima vez Jurei não perdoar O que ela me fez.
E nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso
dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina. Por
exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso “Você
nela me dizia que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos que já passamos
noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou
por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais
mimados, e por isto, “ não gosta de ninguém”. Ele é capaz de em linhas de
versos impor uma reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas
somente na tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida? “O
costume é a força Que fala mais alto Do que a natureza”
Ou “Quem
acha vive se perdendo” Ou “Não
posso mudar minha massa de sangue” (para dizer que é suburbano, do lado
marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino).
Não tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos
responsáveis pelo destaque, pela individualização da letra na canção do Brasil.
Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na
música. Aquele fenômeno destacado por Hesse num conto, quando observa: “Era
surpreendente constatar como um verso cantado soava completamente distinto do
lido ou recitado. Na leitura, um verso era um todo, tinha um sentido, constava
de frases. No canto constava só de palavras, não havia frases, não havia
sentido; mas em troca as palavras soltas cantadas, arrastadas, adquiriam uma
estranha vida independente, às vezes eram até sílabas, em si totalmente
carentes de sentido, que se tornavam independentes no canto e ganhavam uma
imagem”.
Se isso é verdade na canção em geral, e mais particularmente no canto
religioso, em Noel ganha outro sentido. A sua letra é capaz de nos elevar a um
sentimento de beleza, mesmo que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros,
os não brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer a música de Noel,
poderão com mais justiça dizer se há razão no que digo. Leiam isto: Três
apitos Quando o apito Da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você. Mas você anda Sem dúvida bem zangada Ou está interessada Em fingir que não me vê Você que atende ao apito De uma chaminé de barro Por que não atende ao grito tão aflito Da buzina do meu carro? Você no inverno Sem meias vai pro trabalho Não faz fé com agasalho Nem no frio você crê Mas você é mesmo Artigo que não se imita Quando a fábrica apita Faz reclame de você Nos meus olhos você lê Como sofro cruelmente Com ciúmes do gerente impertinente Que dá ordens a você Sou do sereno Poeta muito soturno Vou virar guarda-noturno E você sabe por quê. Mas você não sabe Que enquanto você faz pano Faço junto do piano Estes versos pra você.
Será que foi possível sentir, somente com a letra, somente no silêncio, o
perfume dessa delicada flor? No romance Os Corações Futuristas,
essa composição fala: “Cai um silêncio, a agulha fica raspando. Até o ponto em
que Canhoto se levanta e põe Três Apitos, de Noel. Isso dói no
peito e faz aumentar a sede. O uísque jorra, parece. Os copos com gelo ficam a
meio, com aquele uísque safado, estragado, distribuído com uma fraternidade que
a comunhão da santa hóstia da santa missa jamais conseguiu. Bebem, calados,
amando a vida amarga e ruim. ‘Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens
a você’ ...”. O X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento,
uma reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele
responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os
estranhos a seu meio. E não se diga por favor que Noel é um homem educado
porque estudou Medicina, como se esse curso desse educação estética e humana a
alguém. Não se fale tal bobagem, ainda que se aceite essa ilusão, porque Noel
apenas começou Medicina, uma quase humanidade de anatomia. Nem se diga que ele viveu e transitou em meios mais sofisticados: se por esses
ambientes passou, ele gostava mais e era querido nos ambientes marginalizados,
dos malandros, e da negrada. (Há um depoimento de Dona Zica, de Cartola, sobre
isso, da sua amizade e porres com Cartola, acordando no morro.) Talvez com mais
propriedade se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais
tristes, e tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e da
desgraça zombou. Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: “Na vida
importa mais o que fazemos do que nos fazem”.Com Noel, o X do problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que
ele é um artista de excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho
livresco: Noel é um artista total, aquele artista que todos sonhamos, ou
deliramos em noites de febre e loucura, algum dia numa felicidade ou maldição
ser. Ele é trágico, satírico, lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro.
No dia 5 de maio de 1937, um jornal do Rio pôs em manchete: “A morte prematura
de Noel Rosa”. Hoje percebemos melhor que o mais prematuro da morte, aos 26
anos de idade, foi a sua vida entre os brasileiros. Pior: o Brasil, nesta
descida de ladeira que se aprofunda, não sabe o que fazer diante da humanidade
de Noel. O seu patrimônio imaterial, que não havia sido sequer assimilado,
recebe um perseguidor da cultura na Presidência da República. Menos mal que,
depois de 109 anos, ele receba homenagem do Google. O que não deixa
de ter lá sua ironia. Tudo que é virtual é de Noel Rosa. *Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad
no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa
Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador
do Prosa, Poesia e Arte.