"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Boas festas e feliz 2020!

"Que o Deus da esperança os encha de toda alegria e paz, por sua confiança Nele, para que vocês transbordem de esperança, pelo poder do Espírito Santo." (Romanos 15:13)

Por Manoel Paixão

Meu caro leitor e minha cara leitora,

Agradeço enormemente a você, que esteve comigo aqui no blog, nessa jornada ao longo de 2019. 

Espero continuar contando com sua atenção no próximo ano, para poder seguir nesse espaço, informando, denunciando, criticando e suscitando reflexões. 

Desejo-lhe um 2020, repleto de boas notícias, de energias e esperanças renovadas, de novas oportunidades, de muita produtividade, de grandes realizações e de vitórias.

Que você possa celebrar os bons sentimentos, como o amor, a humildade, o respeito, a solidariedade, a generosidade e a amizade, bem como, desfrutar de bons momentos e coisas extraordinárias, ao lado de seus familiares e amigos.  

Que Deus, em sua infinita bondade, lhe abençoe, fortaleça e proteja, e dê muita sabedoria, discernimento, ânimo, luz, paz, saúde, prosperidade e felicidade.

Boas festas e feliz ano novo!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Felicidade é saber apreciar as coisas simples da vida. Por Valeria Sabater

As coisas simples da vida são como aquelas estrelas que brilham em noites claras. Elas estão sempre lá, nos cercando, nos oferecendo sua magia sutil; No entanto, nem todos os dias paramos para olhar para elas ou lembramos que elas existem.

Somente quando estamos perdendo, somente quando a vida nos dá um revés pequeno ou grande, subitamente apreciamos o que realmente constrói nosso coração, o que constitui cada uma daquelas cordas internas que dão música e significado à nossa existência.

“As coisas simples, amáveis ​​e discretas formam dia a dia a borda da nossa vida, onde repousar em dias tempestuosos e onde todas as nossas alegrias fazem sentido.”

Algumas pessoas dizem que quanto mais simples o nosso modo de vida, menos preocupações teremos e menos erros faremos. Agora, todos estão livres para complicar suas vidas o quanto quiserem, todos nós temos o direito de assumir riscos, projetar sonhos e ter um círculo social tão amplo e variado quanto quisermos.

O principal, a chave de tudo, não é levar uma vida simples, mas ser simples em pensamentos e saber o que é importante, o que realmente faz nosso coração feliz e nos identifica. De lá, todos nós somos muito livres para construir nossos microuniversos individuais. Nós convidamos você a refletir sobre isso.

Coisas simples são as maiores coisas da vida

Há um fato que nos impressiona, o Google publicou há poucos dias quais são as pesquisas mais comuns entre os usuários. Entre elas, o que é quase sempre uma tendência é uma em particular: “como ser feliz?”

“Ser feliz é fechar os olhos e não querer mais nada e, para isso, basta deixar de medir a felicidade pelo dinheiro que temos ou não temos: mas por aquelas coisas simples que não mudaríamos por todo o dinheiro do mundo.”

Todos nós temos mais de uma coisa que nunca mudaríamos nem pela mais incrível das riquezas. A vida de seus filhos, seu parceiro, seus irmãos … E talvez até seus animais de estimação. Porque o que eles nos dão e o que lhes oferecemos é uma troca de afetos que não tem preço.

Agora, o problema com tudo isso é que a vida, às vezes, não é nada fácil. Você sabe, por exemplo, que a coisa mais importante para você são seus filhos, mas você deve completar um longo dia de trabalho que o impeça de estar com eles o tempo que desejaria.

Você gostaria, indubitavelmente, que tudo fosse mais fácil e, a partir daí, que às vezes nos sentíssemos perdidos diante de tantas pressões, tantas obrigações que dia após dia nos afastam do que é realmente essencial. Portanto, seria interessante pensar nesses aspectos por alguns instantes.

Levar uma vida plena e consciente

Levar uma vida plena e consciente é saber entender em que momento da sua vida você está e sentir o seu presente, o aqui e agora.

Devemos ser conscientes do que nosso coração nos diz e das necessidades que você tem ao seu redor. Você pode, por exemplo, trabalhar mais horas, dando-lhe a oportunidade de ter mais coisas, mas sabe que, apesar de tudo, prefere investir esse tempo em sua família.

Viver uma vida plena também é entender que todo esforço vale a pena, porque tudo que você faz te faz feliz e oferece felicidade aos seus.

Se não houver reciprocidade, não há cumprimento. Olhe para a sua vida como se fosse um círculo: se não houver equilíbrio consigo mesmo e com o que o rodeia, será difícil desfrutar dessa felicidade.

O prazer do simples é uma atitude

Nem todas as pessoas sabem como aproveitar as coisas simples que a vida lhes oferece. Talvez porque eles são incapazes de vê-los, outros porque não os apreciam e estão mais inclinados para o apego material, para satisfação imediata, o que não dura …

“Respire, ame, seja feliz, aproveite as coisas simples da vida … Este é o único urgente, o resto, embora você não acredite, é secundário.”

Desfrutar do prazer do simples é uma atitude que muitos cultivam porque já possuem uma paz interior adequada e sem artifício. O gozo do simples chega a alguns depois de uma longa jornada onde, de repente, agem de consciência e descobrem prazeres que não haviam tido em conta anteriormente:

– O prazer de boas amizades.
– Um bom dia e uma inesperada carícia.
– Do riso contagiante de uma criança.
– O vento embriagante depois de uma tempestade
– De um sol que afunda no oceano em absoluto silêncio
– De um despertar de domingo sem qualquer preocupação na mente …

Não hesite em praticar essa simplicidade de pensamento e emoções no seu dia-a-dia, porque quando finalmente encontrarmos essa felicidade interior, ela durará para sempre porque estará conectada ao nosso verdadeiro eu.



‘Educar é preparar para a vida’, por Flávio Gikovate

Por Flávio Gikovate 
Dr. Flávio Gikovate
Um dos filmes mais bonitos e comoventes dos últimos anos, Cinema Paradiso*, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Foi um grande sucesso de bilheteria em muitos países e também no nosso. Quase todas as pessoas que conheço choraram em algumas partes do filme. A cena que provocou lágrimas no maior número de espectadores é aquela na qual o velho, que é o pai espiritual e sentimental do rapaz, que lhe ensinou quase tudo o que sabia da vida até então, diz a ele que se prepare para partir do vilarejo rumo à cidade grande: “Vá e não olhe para trás; não volte nem mesmo se eu te chamar”. O pai manda embora o filho adorado e “ordena” a ele que vá em busca do seu caminho, do seu destino, dos seus ideais.

Nesse momento, eu não fui mais capaz de conter as lágrimas, coisa que tentava fazer até então em respeito a esse esforço que os homens fazem para não chorar — e que é absolutamente ridículo. Lembrei da minha história pessoal e lamentei, com enorme tristeza, que eu jamais tivesse ouvido coisa parecida. Parece que eu havia nascido essencialmente para realizar tarefas que fossem da conveniência dos meus pais. Eles jamais me estimularam a sair de perto deles, ainda que pudessem achar que partir seria bom para mim. Achavam intelectualmente; mas, como isso era inconveniente e doloroso para eles, optavam por me impor o que fosse melhor para eles.

Antigamente isso era feito de modo aberto e frontal. Os pais, em certas culturas, chegavam até mesmo a escolher algum filho — especialmente filha — que lhes servisse de companhia e amparo na velhice. Essa criatura não deveria se casar nem ter qualquer tipo de vida própria; seria a “enfermeira” e “empregada” dos pais nos seus últimos anos. A maior parte das famílias, isto há 40, 50 anos, não agia assim tão diretamente. Mas jamais estimulariam todos os filhos para que fossem estudar em outras cidades. Alguns podiam — e deviam — ir; outros deveriam ficar para dar continuidade aos negócios dos pais e para zelar por eles.

Filho era, de certo modo, propriedade dos pais e seu destino era o que fosse decidido por eles. E as decisões eram feitas essencialmente em função das conveniências práticas — materiais e de conforto físico — dos patriarcas.

Os aspectos emocionais da vida existiam, é claro, mas estavam submersos e invisíveis, colocados embaixo das questões práticas de todos os tipos. Não eram relevantes na hora das decisões. Se um filho era escolhido para ser padre, de nada interessavam suas reclamações de que não era esse o destino que havia sonhado para si e que isso o faria infeliz. Ser infeliz não era argumento forte!

Temos a impressão de que esses tempos já se foram e que hoje em dia as coisas são muito diferentes. Parece que agora nós agimos respeitando a vontade dos nossos filhos e que eles podem fazer das suas vidas o que desejarem. Será mesmo? Não é essa a minha impressão. É evidente que há grandes avanços.

Rapazes e moças são mais livres para escolher suas profissões; são mais livres para escolher seus namorados, para se casarem ou não — isso em termos, pois uma filha solteira com mais de 25 anos de idade ainda preocupa, e muito, os pais. Poucos são os pais que, hoje em dia, têm coragem de interferir frontalmente sobre o destino de seus filhos. Isso, é claro, desde que eles se comportem dentro dos limites, estreitos em muitos casos, dos padrões de conduta mais usuais. Filhos que decidem ser atores, bailarinos, músicos etc. esbarram em grandes obstáculos familiares. O mesmo acontece com os homossexuais que, até hoje, escondem suas práticas das famílias.

Agora, a forma mais sórdida e maldosa que existe de dominação é aquela que se mascara, que se traveste de grande amor e superproteção. A criança — e depois o jovem — é tão paparicada que não desenvolve os meios necessários para se manter sobre as próprias pernas. É evidente que, dessa forma, jamais poderá partir para longe dos pais. Foi carregada no colo o tempo todo e suas pernas ficaram, por isso mesmo, atrofiadas. Não pode andar por seus próprios meios e é dependente da família para a vida toda. Pais fracos e inseguros fazem isso porque, na realidade, querem os filhos perto de si, exatamente como se fazia no passado. Querem os filhos por perto para darem sabor e sentido às suas vidas pobres e vazias. Querem seus filhos sem asas e incapazes de voar por conta própria. Não prepararam seus descendentes para voarem seus próprios voos e buscarem seu lugar na terra. Em nome do amor — o que é mentira — geram um parasita, uma criatura dependente.

A coisa é mais grave do que era no passado: antes o indivíduo era proibido de partir. Hoje, é permitido que parta, mas ele não tem pernas para isso!

*O Filme: Cinema Paradiso, direção: Giuseppe Tornatore – 1988 (original versão). Legendas em português)
**Artigo publicado originalmente no site do autor in memoriamDr. Flávio Gikovate, foi médico-psiquiatra, psicoterapeuta e escritor



A generosidade é uma das mais belas virtudes do ser humano. Por Marcel Camargo

Sou fã de pessoas que dividem o pão, o amor, o conhecimento. Que ajudam os colegas de trabalho, os amigos, os desconhecidos. Que transmitem o que sabem, sem medo da competitividade.

Hoje, há muita dificuldade em ver o outro como alguém confiável, uma vez que a competitividade adentrou todos os setores de nossas vidas. A concorrência estende-se do mercado de trabalho até as relações interpessoais, prejudicando as interações humanas e o afeto que deveria estar ali contido.

Numa sociedade que alimenta a supervalorização do status, atrelado ao que se compra e se tem, em detrimento do que se é, os sentimentos acabam ficando de lado, uma vez que não mais importam. Há um jogo de interesses em que o outro se torna interessante, à medida que é capaz de atender aos quesitos materiais que predominam na sociedade. A beleza virou cartão de visita, o poder de compra virou qualidade indispensável, a popularidade social e a virtual viraram sinônimos de sucesso.

Nesse contexto, importa mais o que se tem a oferecer em termos de conforto material do que o que se tem a oferecer em termos de afeto verdadeiro.

Mentiras convenientes são mais valorizadas do que verdades desagradáveis. O eu é dominante na forma como se vive, ou seja, o que o outro sente parece pouco relevante e isso acaba prejudicando os relacionamentos entre as pessoas, tornando-nos cada vez mais frios e distantes uns dos outros, embora tão perto.

Eis um dos motivos de as pessoas terem medo de compartilhar conhecimento, de dividir o que sabem, de demonstrar sentimentos, uma vez que aquilo tudo pode vir a ser usado da pior forma possível por quem recebeu. O outro pode puxar o tapete, revelar segredos, roubar um namorado, difamar, distorcer, trair. O outro pode ser quem mente, quem usa, quem pouco se importa com os sentimentos alheios.

Ainda assim, apesar da necessidade de cautela, olhar o outro em suas necessidades e ajudá-lo, contribuindo para que ele cresça e melhore, nunca será em vão.

O bem que fizermos sempre ficará na gente, ou seja, o que o outro resolver fazer com aquilo não será da nossa conta. Se o outro usar de nossa solicitude de uma forma improvável e traiçoeira, o erro será dele, ficará nele, não na gente.

Não é à toa que sou fã de pessoas que dividem o pão, o amor, o conhecimento. Que ajudam os colegas de trabalho, os amigos, os desconhecidos. Que transmitem o que sabem, sem medo da competitividade.

A generosidade é uma das mais belas virtudes do ser humano.

*Marcel Camargo é Graduado em Letras e Mestre em "História, Filosofia e Educação" pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor...



A família em torno de Greta Thunberg. Por Fernando Peinado

A ativista sueca foi acusada sem provas de ser uma marionete de seus pais ou de interesses obscuros, mas quem a conhece garante que ela é “sua própria chefa”

A família Thunberg, no Natal de 2018.
Greta Thunberg foi recebida como heroína em Lisboa ao descer com outros cinco passageiros de um pequeno barco a vela com o qual tinham cruzado o Atlântico para não poluir. Mas nessa recepção, no dia 3, houve um viajante que não apareceu na entrevista coletiva no píer: o pai da ativista adolescente, Svante. Ele sempre a acompanha, mas fica em segundo plano. Tampouco manda em sua filha, dizem numerosas pessoas que convivem com a “personalidade do ano” escolhida pela revista Time, a adolescente sueca de 16 anos que inspirou um movimento global para lutar contra a crise climática.

Desde que se tornou conhecida, há 15 meses, Thunberg é alvo de suspeitas de que alguém está por trás dela. Seus pais, agências de publicidade ou o bilionário George Soros foram apontados em teorias da conspiração que acabaram sendo desmanteladas. Seu entorno afirma que ela é “sua própria chefa” e sua desenvoltura em público transmite essa sensação.

Durante sua permanência em Madri, do dia 6 ao 11, para a Cúpula do Clima da ONU, Thunberg esteve rodeada de um punhado de pessoas de confiança. Além de Svante, foi acompanhada por Erika Jangen, uma amiga da família que a conhece desde que nasceu. Um grupo reduzido de assistentes, pessoas com experiência no mundo do ativismo climático, ajudou-a com a agenda. Sua mãe, Malena Ernman, e sua irmã, Beata, dois anos mais nova que Greta, permaneceram na Suécia.

Segundo o relato familiar, não são os pais que influenciam a menor, mas sim o contrário. Greta caiu aos 11 anos em uma forte depressão que a levou a parar de comer e de conversar com estranhos. Diagnosticada com síndrome de Asperger, ela diz que sua paixão por salvar o planeta se deve em parte à forma de ver o mundo de uma pessoa autista, capaz de concentrar toda a sua atenção e todos os seus esforços em um único tema. Sua mãe, uma famosa cantora de ópera que representou a Suécia no festival Eurovision de 2009, e seu pai, um ator de teatro, mudaram sua forma de pensar graças a ela. Tornaram-se veganos, reduziram seu consumismo e pararam de viajar de avião. Relataram isso no livro Nossa Casa Está em Chamas, a versão em português de uma autobiografia familiar lançada na Suécia em 23 de agosto de 2018 com o título de Scener ur Hjärtat (Cenas do coração).

Três dias antes da publicação do livro, Greta tinha iniciado seu histórico protesto. Instalou-se sozinha diante do Parlamento sueco com um cartaz que dizia “Greve escolar pelo clima”, publicou sua foto nas redes sociais, e a revolução começou. A imagem de uma estudante de 15 anos que não ia às aulas para se manifestar em defesa do meio ambiente viralizou, e em poucas horas apareceram os primeiros jornalistas suecos, dos jornais Dagens ETC e Aftonbladet. Ajudou o fato de a Suécia estar a poucos dias da realização de eleições gerais. O jornal britânico The Guardian, que há anos dá uma atenção especial ao clima, foi o primeiro veículo de comunicação internacional a entrevistá-la, na semana seguinte. Depois vieram os convites para dar uma palestra TED em Estocolmo, ir a fóruns internacionais, as manifestações em massa e assim por diante até hoje.

No livro, assinado pelos quatro membros da família, mas narrado na voz da mãe, os pais de Greta se apresentam como duas pessoas que acreditam com firmeza na causa. Contam de maneira explícita as brigas, insultos e choros em um lar em crise devido à condição das duas pequenas. Beata foi diagnosticada com transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. As doenças mentais que proliferam no Ocidente são, como relatam, a manifestação em nossa parte do mundo da crise de sustentabilidade gerada por um modelo que gira em torno do crescimento sem limites. As consequências desse sistema em outros continentes seriam as secas, os deslizamentos de terras e o aumento do nível do mar.

Foi durante as férias que Greta teve a ideia de iniciar a greve escolar. Inspirou-se nos adolescentes americanos do movimento Zero Hour, frustrados pela passividade dos políticos em relação ao clima. Seus pais, meio reticentes no início, apoiaram-na ao ver o entusiasmo despertado por sua filha, até então triste e avessa a se relacionar com estranhos.

Greta já havia previsto que sua greve atrairia a atenção da mídia. Nos dias anteriores, sua energia aumentou e, durante suas férias, fazendo trilha na área do lago Trollsjön, na Lapônia sueca, não parava de perguntar ao seu pai como deveria fazer. Svante a orienta.

− Você vai ouvir toda hora: “Foram seus pais que lhe disseram que fizesse isso?”.

− Então vou responder a verdade. Que fui eu que influenciei vocês, e não o contrário.

Em seu primeiro discurso em público, na praça Nytorget de Estocolmo em 8 de setembro do ano passado, o público deu a Greta uma sonora ovação. Uma mulher ao lado de Svante lhe perguntou se ele estava orgulhoso. “Não, não estou orgulhoso, só muito feliz porque vejo que Greta está bem”.

“Só estou aqui como pai”

Em público, Greta já deu muitas amostras de estar no controle da situação, inclusive durante sua estadia na Península Ibérica. Quando os repórteres cruzavam com Greta em Lisboa ou Madri, nenhum adulto se interpunha. Em uma ocasião, enquanto tomava suco com seu pai e os companheiros da viagem de barco na Praça do Comércio, saiu sozinha do estabelecimento para pedir a alguns jornalistas que por favor não os gravassem no local.

“É ela que está interessada, que está motivada, que faz com que seu pai se mova, foi ela que teve essas ideias”, diz Riley Whitelun, o navegante australiano que ofereceu seu barco para levá-la dos EUA para a Europa. Durante 21 dias, conviveu com eles no catamarã e viu que as teorias de que ela seria uma marionete são falsas: “Não se pode esconder uma farsa dessa magnitude 24 horas por dia”.

Nem Greta nem Svante quiseram fazer declarações para esta reportagem. “Só estou aqui como pai”, limitou-se a dizer Svante na terça-feira, enquanto esperava que sua filha terminasse uma reunião na Cúpula do Clima com Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. “É ela que decide o que quer fazer, aonde vai e o que diz”, afirma Alejandro Martínez, um espanhol de 25 anos que participou de reuniões com Thunberg e sua equipe em Madri.

Thunberg também consulta um grupo de destacados cientistas climáticos, entre eles Kevin Anderson, professor da Universidade de Manchester, e Johan Rockström, diretor do Instituto de Postdam para os Estudos Climáticos.

Sua turnê pela América do Norte e Europa foi custeada pela família. Ela pode cobrir parte dos gastos graças a dois documentários que está gravando. Um deles é filmado por uma equipe da BBC que teve acesso exclusivo a ela em Lisboa e Madri.

Greta decidiu limitar sua exposição pública após sua chegada à Europa. Nos Estados Unidos, tinha aparecido em programas de televisão de grande audiência, como os de Ellen DeGeneres e Trevor Noah. Também se deixou ver com o ex-presidente Barack Obama e com os atores Leonardo DiCaprio e Arnold Schwarzenegger.

Se quisesse, teria aparecido em todo lugar em Madri. Autoridades, políticos, artistas e jornalistas quiseram aparecer com ela, segundo seu entorno, mas ela disse chega. A bola da mídia foi longe demais e ela sentiu que sua voz estava impedindo que fossem ouvidos outros ativistas do movimento contra a mudança climática, como cientistas ou pessoas dos países mais expostos a desastres naturais.

“A atenção da mídia é completamente desproporcional em relação à que deveriam ter os cientistas ou os líderes jovens do Sul global”, diz Luisa Neubauer, que apresentou juntamente com Greta dois painéis na Cúpula do Clima.

Greta, que tirou um ano sabático em sua escola secundária, ainda não anunciou seus planos para 2020. Agora ela está viajando para a Suécia com seu pai, de trem, ônibus e carro elétricos, para passar o Natal em família. Apesar do perfil mais discreto, seu círculo acredita que a ativista recarregará as energias para seguir em frente, porque, como ela disse mais de uma vez, esta luta deu à sua vida “um significado”.



Demissão de Weintraub é questão de vida ou morte para a educação do Brasil. Por Iago Montalvão

Nenhum ministro que venha para destruir a educação deve ter paz dos estudantes ou de qualquer um que se preocupe com o futuro

O ministro da Educação, Abraham Weintraub (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)
O Ministério da Educação sempre foi um setor estratégico para os projetos políticos gerais dos governos que assumiram o poder executivo no Brasil. Por vezes um projeto de fortalecimento do desenvolvimento nacional com a educação no centro da formação emancipatória do povo brasileiro e da inovação científica, como vimos com Darcy Ribeiro, que teve seu percurso impedido pelo golpe militar. Em outras vezes, o projeto colocado foi o de expansão de uma concepção mercadológica e privatista de educação, como o de Paulo Renato no governo FHC, que fez com que a balança de matrículas no ensino superior chegasse a quase 90% nas instituições privadas. Balança esta que só pôde ter uma leve recuperação após o ciclo de expansão e democratização das universidades e institutos federais durante os anos de 2007 a 2012.

Também em uma virada radical de hegemonia no campo político, como temos visto com o governo Bolsonaro, o MEC se torna uma peça fundamental para assentar sua posição na disputa ideológica da sociedade, buscando inverter valores, revisar concepções políticas e visões historiográficas que já estavam bastante consolidadas. E na sustentação do governo Bolsonaro a disputa ideológica, de valores e tradições são eixos estratégicos. Portanto o campo da educação, neste governo, tem servido até agora apenas para servir de sustentáculo ideológico do reacionarismo e do obscurantismo característicos desse grupo político que tomou o poder.

E Weintraub é justamente, para além de uma figura polêmica e contraditória, a personificação desse programa conservador e reacionário em que o governo tenta se assentar para manter sua bolha de aprovação. Isso se evidência na procura incessante do ministro em apresentar declarações polêmicas, ofensivas e acusatórias contra as universidades, os professores e os estudantes, mas sem nunca avançar em ações práticas ou planejamentos estratégicos para sanar os desafios reais que a educação brasileira ainda enfrenta. Em contraposição às frequentes provocações às universidades públicas, não há nenhum avanço que se note rumo às metas e estratégias do PNE, quase nenhum esforço em priorizar o debate do Novo Fundeb e um péssimo diálogo com reitores e administrações de universidades, com profunda ineficiência na gestão do repasse das verbas das instituições federais de ensino superior, o que provocou um ano perdido de crise permanente na educação brasileira.

Esse ministro é também homem forte de Bolsonaro, saiu da cozinha do presidente, onde também figuram outros Weintraub, e que apesar de estar cumprindo um papel de testa de ferro do reacionarismo ideológico, também tem em suas origens políticas fortes relações com os grupos da política econômica ultra-neoliberal que absorveram Bolsonaro. Aqui se localiza uma das grandes contradições, e um símbolo de sua incoerência, pelo fato de que mesmo após fazer uma tabelinha com Guedes ao sustentar os cortes na educação e apresentar um projeto de cunho profundamente neo-liberal e privatizante como o Future-se, Abraham agora tenta se colocar em uma posição de enfrentamento aos grupos oligopolistas da educação privada, como deixou muito claro em sua presença na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, por se sentir ameaçado por esses setores.

Ora, mas é justamente um ministro que usa de seu posto e da sua referência enquanto pessoa pública para ferir a moral e a imagem das universidades públicas, construídas com muito suor por muitas décadas, que contribui para o enfraquecimento da força social dessas instituições no Brasil e no mundo. É justamente um ministro que bloqueia verbas, e faz disso uma piada, embaralhando todo planejamento de gestão financeira das administrações e prejudicando a garantia do financiamento público, é que contribui para o aumento da evasão estudantil e o sucateamento das instituições federais de ensino superior.

É justamente esse entrelaçamento de um projeto de aparelhamento ideológico e de política neo-liberal do MEC que contribui para o fortalecimento dos oligopólios do ensino privado, para o desmonte da auto-suficiência da pesquisa brasileira nas instituições públicas e a entrega total do nosso potencial científico para ou para o obscurantismo ou para as empresas, sobretudo as estrangeiras.

É nesse sentido que, mesmo atentos aos anseios agressivos do mercado oligopolista do ensino privado, não devemos temer em exigir com veemência a demissão de Weintraub do cargo de ministro da Educação. Primeiro porque falas, entrevistas e declarações, sejam elas dadas a jornalistas, feitas por vídeo ou em redes sociais, por parte de uma autoridade de primeiro escalão do governo, não devem jamais ser relativizadas, pois tem um impacto simbólico relevante na sociedade e que se desdobram em consequências reais e estruturais. Mas também porque essa postura que unifica um projeto de instrumentalização ideológica conservadora do MEC e ao mesmo tempo de caráter privatista e mercadológico só tem a prejudicar nossa educação. E nenhum ministro que venha para destruir a educação deve ter paz dos estudantes ou de qualquer um que se preocupe com o futuro do nosso País.

[Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.]
  
*É estudante de Economia da USP e presidente da União Nacional dos Estudantes.



quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Urariano Mota: Noel neste dezembro

Em todo o mundo, quem abrir o Google hoje encontrará um desenho que chamam de doodle. Nele se acha um indivíduo de chapéu e violão em um bar. Com um clique na figura, abre-se o espaço para Noel Rosa em 64 milhões de resultados. É uma homenagem ao dia do seu aniversário. Então, como fugir ao irrecusável convite deste dia? Por isso a um artigo anterior retorno.

Por Urariano Mota*

O cantor e compositor carioca Noel Rosa (1910—1937): suas letras sempre exibem uma miséria material que não atinge seu espírito

Publiquei uma vez que maio deveria ser o mês mais triste para os brasileiros. Pois quem daria mais por um artista feito no rigor da arte, sem introdução e sem segunda parte, que expressasse três terços de todo brasileiro? Porque eu queria simplesmente dizer: maio deveria ser o mais triste dos meses, porque nesse mês faleceu Noel Rosa. E ninguém mais notava. E ninguém dava mais por isso, ninguém dava mais um mil réis por isso, o que era um cômico que zomba, porque Noel foi e é o maior compositor da música popular brasileira.

Pela décima vez

Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez
O costume é a força
Que fala mais alto
Do que a natureza
E nos faz dar prova de fraqueza

Ou porque

Gago apaixonado

Mu-mu-mu mulher
Em mim fi...fizeste um estrago
Eu de nervoso
Estou fi-fi... ficando gago

Se ainda não consegui me fazer entender, procurarei ser mais claro: Noel é um compositor tão rico quanto a vida, e quanto mais a gente procura apanhá-lo, pegá-lo, nem que seja para um riscado de caricatura, mais ele nos foge, escapole, por entre os dedos. Ele fica a sorrir de nossa vã pretensão. Por onde tentemos pegar Noel, ele se furta à nossa frente. Vejam por quê. Se tentamos agarrá-lo pelos dados biográficos, a nossa tendência é situá-lo como o personagem ideal de um dramalhão de circo.

Ao nascer, foi arrancado a fórceps, o que lhe afundou o maxilar inferior e lhe deixou paralisado o lado direito do rosto. Esse foi um defeito que se tornou pior ao longo dos anos, porque se agravou depois de duas cirurgias. Na escola, a crueldade das outras crianças o apelidou de “Queixinho”. Isso ocorreu até o dia em que descobriu o bandolim: “A menina do lado cravava em mim uns olhos rasgados de assombro. Então eu me sentia completamente importante. Ao bandolim confiava, sem reservas, os meus desencantos e sonhos de garoto que começava a espiar a vida”.

Naturalmente, o escudo do bandolim, e do violão depois, era pouco. Quando o queriam elevar, além do plano puramente físico, diziam que apesar de feio, baixinho e magro, a sua inteligência e sambas conquistavam mulheres. Se alguma vez ouviu semelhante elevação, Noel deve ter sorrido com amargura. Porque

Dama do cabaré

Foi num cabaré da Lapa, que eu conheci você
Fumando cigarro, entornando champanha no seu soirée
Dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá meia hora depois de descer a orquestra.

Em frente à porta um bom carro nos esperava
Mas você se despediu e foi pra casa a pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia
A carta que recebi, não me lembro de quem
Você nela me dizia que quem é da boemia
Usa e abusa de diplomacia, mas não gosta de ninguém.

Pois sim. Em outra elevação se diz que Noel transformava a sua vida em samba. Coisa que consola. Nós, como todo filisteu, como todo bom pequeno-burguês, adoramos um artista sofrido, machucado, que cante para nós a sua dor. (Em sua biografia, há uma foto de mulher, há uma foto de uma feiticeira, há uma foto da Dama do Cabaré que deve ter tantalizado Noel. Imaginamos o que ela escreveu no verso da própria imagem, se alguma vez deixou para Noel alguma foto: “Como prova de amizade, Ceci”. De amizade... Amizade para quem ama.)

Então se diz que ele transformava a vida em samba, mas se esquece de que, nos intervalos da arte, Noel evitava comer, simples comer à mesa, na frente dos admiradores. O queixo danificado mortificava-o, o seu mastigar era um espetáculo de animal de zoo. E por isso nas noites em claro, de brutas farras, alimentava-se apenas de caldos, de comidas leves, e comia mais cigarros, muitos e muitos cigarros, que deviam torná-lo um homem, acreditava-se então, de aparência bonita. Ele, que já havia sido chamado, num duelo de sambas, de "o Frankestein da Vila". Mas com um cigarro permanentemente nos lábios até um monstro se recompunha, naqueles idos mal vividos. Acreditava-se. Não riam, porque dessa dieta alimentar, estilo de vida e hábito sobrevieram ao nobre artista: febre, hemoptise, pulmões podres. Um gênio arrebentado em plena criação e juventude. Que se foi, aos 26 anos, em 4 de maio de 1937.

Meio trágico, não? Pois sim, esse mesmo Noel que foi chamado de "Frankestein" pelo sambista Wilson Batista num momento de raiva (e como são sinceros esses momentos de raiva!), esse mesmo Noel tuberculoso, raquítico, é o homem que diz em uma entrevista à revista O Cruzeiro, ao lhe ser perguntado que relação existiria entre o amor e a música:

“Romeu e Julieta morreram ignorando essa relação. Acho, porém, que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o tombo, num escorregão.”

É esse homem que tosse e escarra sangue o mesmo humorista que numa madrugada, ao nascer o dia, é reconhecido por amigos músicos que voltavam de automóvel, de uma festa. Conta-se que seu perfil, em um poste à espera do bonde, se destacava pela negação: terno branco à procura de um corpo, rosto que descia à procura de um queixo. Então os amigos param o carro e mandam-no embarcar. Ele entra e vai pedindo:

– Me sirvam um conhaque.
– Por que isso, Noel?
– Por quê?! Eu estava esperando um bar, quando vocês passaram.

Ele é o mesmo homem que à sua magreza de doente assim se referiu:

Tarzan, o Filho do Alfaiate

Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte
Nem conheço futebol
O meu parceiro sempre foi o travesseiro
E eu passo o ano inteiro
Sem ver um raio de sol
A minha força bruta reside
Em um clássico cabide
Já cansado de sofrer
Minha armadura é de casimira dura
Que me dá musculatura
Mas que pesa e faz doer

Eu poso pros fotógrafos
E distribuo autógrafos
A todas as pequenas lá da praia de manhã
Um argentino disse
Me vendo em Copacabana
No hay fuerza sobre-humana
Que detenga este Tarzan!

De lutas não entendo abacate
Pois o meu grande alfaiate
Não faz roupa pra brigar
Sou incapaz de machucar uma formiga
Não há homem que consiga
Nos meus músculos pegar
Cheguei até a ser contratado
Pra subir em um tablado
Pra vencer um campeão
Mas a empresa pra evitar assassinato
Rasgou logo o meu contrato
Quando me viu sem roupão.

No entanto, se tentamos apanhar Noel a partir da maioria de suas letras, que diríamos, sem erro, quase sublimes, no limite da oração, da queixa de um homem a Deus,

Último desejo

Nosso amor que eu não esqueço

E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão
Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Mas meu último desejo
Você não pode negar

Se alguma pessoa amiga

Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não,
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim

Diante de uma letra assim, diante de uma melodia que não podemos expressar em palavras de prosa, diante da expressão de tal sentimento, sempre novo, tão vivo e primordial que nos faz penetrar um cheiro de sal e mar pelo nariz, diríamos, que dor, que felicidade trágica na expressão! A impressão que Noel nos deixa, em seus versos mais cruéis, é que ele compõe epitáfios. Mas ele não compõe como um indivíduo póstumo. Devíamos dizer com mais precisão que ele pinta e canta enternecedores testamentos. O dicionário dirá que testamento é um “ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e revogável, pelo qual alguém, com observância da lei, dispõe de seu patrimônio, total ou parcialmente, para depois de sua morte”. Ora, unilaterais, solenes e limitados por vezes são os dicionários!

Último Desejo é uma expressão de última vontade bem ambígua. Para as pessoas amigas, a mulher deverá dizer que o adora, e lamenta e chora a separação. Mas para os inimigos ela deverá dizer que o seu lar foi um botequim, que ele arruinou a sua vida, e que é indigno do pão que ela pagou para ele. E cabem aqui duas observações. A primeira delas é que na canção o patrimônio do poeta se faz em torno de coisas, como diríamos, intangíveis: bares que jamais possuiu, álcool bebido e sumido, amor que se foi, se alguma vez houve. Visto de um modo mais geral, as letras de Noel sempre exibem uma miséria material que não atinge o seu espírito. A miséria de bens tangíveis, materiais, não atinge a miséria humana. A outra observação fala da ambiguidade dos seus rompimentos amorosos. Ações típicas de quem rompe pelo afastamento físico, mas não rompe no sentimento:

Jurei não mais amar
Pela décima vez
Jurei não perdoar
O que ela me fez.

E nesta altura acrescentamos, ou melhor, o gênio de Noel acrescenta um precioso dado: em uma linha de um verso ele exprime uma vivência, uma observação fina. Por exemplo, quando ele compõe em Dama do Cabaré o verso “Você nela me dizia que quem é da boemia”, ele nos diz, para todos que já passamos noites e mais noites a beber: a gente dessas noitadas, pelo estilo de vida ou por vício, é leviana, dispersa, mentirosa, tão egoísta por fim quanto animais mimados, e por isto, “ não gosta de ninguém”. Ele é capaz de em linhas de versos impor uma reflexão que causa espanto aos preconceitos que acham alturas somente na tradição acadêmica, nas glórias institucionalizadas. Em dúvida?

“O costume é a força
Que fala mais alto
Do que a natureza”

Ou

“Quem acha vive se perdendo”

Ou

“Não posso mudar minha massa de sangue” (para dizer que é suburbano, do lado marginalizado, por vocação, gosto, alma e destino).

Não tenho exata certeza se a partir de Noel, mas com certeza ele é um dos responsáveis pelo destaque, pela individualização da letra na canção do Brasil. Com ele ganha corpo autônomo uma letra que só existia tão só e somente na música. Aquele fenômeno destacado por Hesse num conto, quando observa: “Era surpreendente constatar como um verso cantado soava completamente distinto do lido ou recitado. Na leitura, um verso era um todo, tinha um sentido, constava de frases. No canto constava só de palavras, não havia frases, não havia sentido; mas em troca as palavras soltas cantadas, arrastadas, adquiriam uma estranha vida independente, às vezes eram até sílabas, em si totalmente carentes de sentido, que se tornavam independentes no canto e ganhavam uma imagem”.


Se isso é verdade na canção em geral, e mais particularmente no canto religioso, em Noel ganha outro sentido. A sua letra é capaz de nos elevar a um sentimento de beleza, mesmo que não conheçamos a sua melodia. Os estrangeiros, os não brasileiros, que não têm a felicidade de conhecer a música de Noel, poderão com mais justiça dizer se há razão no que digo. Leiam isto:

Três apitos

Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você.
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê

Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?

Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você

Nos meus olhos você lê
Como sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê.

Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você.

Será que foi possível sentir, somente com a letra, somente no silêncio, o perfume dessa delicada flor? No romance Os Corações Futuristas, essa composição fala: “Cai um silêncio, a agulha fica raspando. Até o ponto em que Canhoto se levanta e põe Três Apitos, de Noel. Isso dói no peito e faz aumentar a sede. O uísque jorra, parece. Os copos com gelo ficam a meio, com aquele uísque safado, estragado, distribuído com uma fraternidade que a comunhão da santa hóstia da santa missa jamais conseguiu. Bebem, calados, amando a vida amarga e ruim. ‘Com ciúmes do gerente impertinente que dá ordens a você’ ...”.

O X do problema em Noel é que ele é um compositor popular com um pensamento, uma reflexão, que passa por cima de toda folclorização, de todo exotismo. Ele responde insofismável à superioridade com que a gente culta, educada, trata os estranhos a seu meio. E não se diga por favor que Noel é um homem educado porque estudou Medicina, como se esse curso desse educação estética e humana a alguém. Não se fale tal bobagem, ainda que se aceite essa ilusão, porque Noel apenas começou Medicina, uma quase humanidade de anatomia.

Nem se diga que ele viveu e transitou em meios mais sofisticados: se por esses ambientes passou, ele gostava mais e era querido nos ambientes marginalizados, dos malandros, e da negrada. (Há um depoimento de Dona Zica, de Cartola, sobre isso, da sua amizade e porres com Cartola, acordando no morro.) Talvez com mais propriedade se diga que tendo todos os motivos para escrever os versos mais tristes, e tão-somente estes, ele não só os escreveu, como da tristeza e da desgraça zombou. Ele, à sua maneira, bem fez o que recomendava Sartre: “Na vida importa mais o que fazemos do que nos fazem”.Com Noel, o X do problema, que se não o resolve, pelo menos o escreve, é que ele é um artista de excepcional talento, diria, até, e nos perdoem o capricho livresco: Noel é um artista total, aquele artista que todos sonhamos, ou deliramos em noites de febre e loucura, algum dia numa felicidade ou maldição ser. Ele é trágico, satírico, lírico, humano, cômico, alto, verdadeiro.

No dia 5 de maio de 1937, um jornal do Rio pôs em manchete: “A morte prematura de Noel Rosa”. Hoje percebemos melhor que o mais prematuro da morte, aos 26 anos de idade, foi a sua vida entre os brasileiros. Pior: o Brasil, nesta descida de ladeira que se aprofunda, não sabe o que fazer diante da humanidade de Noel. O seu patrimônio imaterial, que não havia sido sequer assimilado, recebe um perseguidor da cultura na Presidência da República. Menos mal que, depois de 109 anos, ele receba homenagem do Google. O que não deixa de ter lá sua ironia. Tudo que é virtual é de Noel Rosa.

*Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no RecifeO Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.