Por Flávio Gikovate
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Dr. Flávio Gikovate |
Um
dos filmes mais bonitos e comoventes dos últimos anos, Cinema Paradiso*,
que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Foi um grande sucesso de
bilheteria em muitos países e também no nosso. Quase todas as pessoas que
conheço choraram em algumas partes do filme. A cena que provocou lágrimas no
maior número de espectadores é aquela na qual o velho, que é o pai espiritual e
sentimental do rapaz, que lhe ensinou quase tudo o que sabia da vida até então,
diz a ele que se prepare para partir do vilarejo rumo à cidade grande: “Vá
e não olhe para trás; não volte nem mesmo se eu te chamar”. O pai manda
embora o filho adorado e “ordena” a ele que vá em busca do seu caminho, do seu
destino, dos seus ideais.
Nesse
momento, eu não fui mais capaz de conter as lágrimas, coisa que tentava fazer
até então em respeito a esse esforço que os homens fazem para não chorar — e
que é absolutamente ridículo. Lembrei da minha história pessoal e lamentei, com
enorme tristeza, que eu jamais tivesse ouvido coisa parecida. Parece que eu
havia nascido essencialmente para realizar tarefas que fossem da conveniência
dos meus pais. Eles jamais me estimularam a sair de perto deles, ainda que
pudessem achar que partir seria bom para mim. Achavam intelectualmente; mas,
como isso era inconveniente e doloroso para eles, optavam por me impor o que
fosse melhor para eles.
Antigamente
isso era feito de modo aberto e frontal. Os pais, em certas culturas, chegavam
até mesmo a escolher algum filho — especialmente filha — que lhes servisse de
companhia e amparo na velhice. Essa criatura não deveria se casar nem ter
qualquer tipo de vida própria; seria a “enfermeira” e “empregada” dos pais nos
seus últimos anos. A maior parte das famílias, isto há 40, 50 anos, não agia
assim tão diretamente. Mas jamais estimulariam todos os filhos para que fossem
estudar em outras cidades. Alguns podiam — e deviam — ir; outros deveriam ficar
para dar continuidade aos negócios dos pais e para zelar por eles.
Filho
era, de certo modo, propriedade dos pais e seu destino era o que fosse decidido
por eles. E as decisões eram feitas essencialmente em função das conveniências
práticas — materiais e de conforto físico — dos patriarcas.
Os
aspectos emocionais da vida existiam, é claro, mas estavam submersos e
invisíveis, colocados embaixo das questões práticas de todos os tipos. Não eram
relevantes na hora das decisões. Se um filho era escolhido para ser padre, de
nada interessavam suas reclamações de que não era esse o destino que havia
sonhado para si e que isso o faria infeliz. Ser infeliz não era argumento
forte!
Temos
a impressão de que esses tempos já se foram e que hoje em dia as coisas são
muito diferentes. Parece que agora nós agimos respeitando a vontade dos nossos
filhos e que eles podem fazer das suas vidas o que desejarem. Será mesmo? Não é
essa a minha impressão. É evidente que há grandes avanços.
Rapazes
e moças são mais livres para escolher suas profissões; são mais livres para
escolher seus namorados, para se casarem ou não — isso em termos, pois uma
filha solteira com mais de 25 anos de idade ainda preocupa, e muito, os pais.
Poucos são os pais que, hoje em dia, têm coragem de interferir frontalmente
sobre o destino de seus filhos. Isso, é claro, desde que eles se comportem
dentro dos limites, estreitos em muitos casos, dos padrões de conduta mais
usuais. Filhos que decidem ser atores, bailarinos, músicos etc. esbarram em
grandes obstáculos familiares. O mesmo acontece com os homossexuais que, até
hoje, escondem suas práticas das famílias.
Agora,
a forma mais sórdida e maldosa que existe de dominação é aquela que se mascara,
que se traveste de grande amor e superproteção. A criança — e depois o jovem —
é tão paparicada que não desenvolve os meios necessários para se manter sobre
as próprias pernas. É evidente que, dessa forma, jamais poderá partir para
longe dos pais. Foi carregada no colo o tempo todo e suas pernas ficaram, por
isso mesmo, atrofiadas. Não pode andar por seus próprios meios e é dependente
da família para a vida toda. Pais fracos e inseguros fazem isso porque, na
realidade, querem os filhos perto de si, exatamente como se fazia no passado.
Querem os filhos por perto para darem sabor e sentido às suas vidas pobres e
vazias. Querem seus filhos sem asas e incapazes de voar por conta própria. Não
prepararam seus descendentes para voarem seus próprios voos e buscarem seu
lugar na terra. Em nome do amor — o que é mentira — geram um parasita, uma
criatura dependente.
A
coisa é mais grave do que era no passado: antes o indivíduo era proibido de
partir. Hoje, é permitido que parta, mas ele não tem pernas para isso!
*O
Filme: Cinema Paradiso, direção: Giuseppe Tornatore – 1988 (original
versão). Legendas em português)
**Artigo publicado
originalmente no site do autor in memoriam. Dr.
Flávio Gikovate, foi médico-psiquiatra, psicoterapeuta e escritor
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte
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