A desmilitarização não deve ocorrer
somente nas estruturas da PM, todo o sistema de segurança pública deve ser
desmilitarizado.
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Polícia Militar (FOTO: ROVENA ROSA) |
Nos últimos anos, a principal palavra de
ordem de todos os protestos organizados pelos grupos progressistas e dos
movimentos do campo da esquerda tem sido: “não acabou, tem que acabar, eu quero
o fim da Polícia Militar”!
Como policial, posso dizer que essa é
uma das piores frases já pensadas pelos movimentos sociais e o que ela gera é
exatamente o processo inverso ao qual ela busca combater. É uma frase que, em
verdade, aprofunda ainda mais o militarismo no interior das instituições e
reforça a aversão dos trabalhadores da Polícia Militar às manifestações do
campo democrático.
Temos que refletir sobre esse grito,
invariavelmente propagado frente-a-frente como os policiais militares, em meio
a protestos nos quais estes profissionais foram deslocados pelo seu comando
para, em tese, evitar qualquer tipo de vandalismo ou atos ilícitos.
Estes policiais, muitas vezes, ficaram
horas de pé, sem alimentação, passando calor, com roupas pesadas, com salários
atrasados, baixas remunerações e com seus problemas particulares e, em meio ao
seu trabalho, são confrontados com a famosa palavra de ordem que, em verdade,
diz que a instituição a qual pertence esse indivíduo que prestou concurso
público, passou diversos meses em uma academia de polícia, que formou laços de
amizade e companheirismo, deve ser extinta.
Qual o efeito prático no mundo real e o
que vem sendo demonstrado na história brasileira recente? Um aprofundamento do
militarismo nas polícias e que se alastra para instituições de ensino e para
todos os órgãos de segurança do país. Muito disso se dá pelo oportunismo dos
conservadores em capturar a necessidade de valorização desses profissionais,
que se sentem tão desprestigiados no seu dia-a-dia. Através do discurso de
legitimação de qualquer ação policial, e da suposta manutenção da ordem
assegurada pela polícia, o conservadorismo avança a passos largos e se
consolida dentro de todas as instituições da segurança pública e em especial na
Polícia Militar.
Mas afinal, a Polícia Militar tem que acabar? A resposta é complexa, mas é fato que o militarismo no interior das policiais é algo que já se demonstrou equivocado e possui poucos pares nos países ditos desenvolvidos.
Em primeiro lugar, é importante frisar que
a Polícia é um mal necessário para que as sociedades possam evitar a barbárie e
a autotutela. É a chamada ultima ratio entre o caos absoluto e a
civilização. Porém, ela deve estar inserida no interior do âmbito democrático e
de respeito aos cidadãos, que ao mesmo tempo lhe devem respeito, nesta simbiose
acordada dentro do chamado “contrato social” assinado por todos que vivem
dentro de um determinado Estado.
Por outro lado, a lógica militar é
utilizada para aniquilar inimigos em confrontos contra forças agressoras que
objetivam dominar e subjugar uma nação. Seu objetivo é, através da hierarquia
extrema, e disciplina quase robótica, dar respostas violentas, rápidas, lesivas
e de eliminação dos oponentes da forma mais avassaladora possível. Dentro da
lógica militar, quase nunca é pensada a prisão de alvos e sim a sua eliminação
física.
Isso transportado para a lógica policial
cria um sério problema, quando os próprios cidadãos passam a serem vistos como
inimigos a serem abatidos. Temos dois dados alarmantes e representativos dessa
lógica. O primeiro é de que temos uma das polícias que mais mata no mundo e o
segundo é que estes mesmos policiais são os que mais morrem no mundo. Típico
dado estatístico retirado de uma guerra.
A tragédia de Paraisópolis, em São Paulo,
onde 9 jovens morreram pisoteados após uma ação truculenta da Polícia Militar
daquele estado, o homicídio da menina Ágatha no Rio de Janeiro, que também
possui o envolvimento de militares nessa triste morte, são demonstrações de que
a lógica de eliminação do inimigo, que invariavelmente é reconhecido como o
pobre e negro da periferia, está se aprofundando dentro das instituições a
partir dos discursos e da política implementada pelos governos fascistas
instalados no Planalto e em diversos estados da federação.
Porém, os próprios policiais que recebem
incentivos para combaterem o “mal” e colocarem sua vida em risco sob o discurso
do “herói”, são vítimas desse sistema que faz com que as patentes mais baixas,
como soldados e sargentos, recebam remunerações vergonhosas, sejam obrigados a
executar ordens muitas vezes absurdas de seus superiores e são penalizados até
mesmo com a prisão no caso de qualquer ato de suposta insubordinação. Não podem
se organizar em sindicatos, não podem paralisar quando deixam de receber os
seus proventos, pois estão sob o manto de um regimento opressor que é
facilmente manipulado pelo governante do momento.
Esse é um dos principais motivos pelos
quais o militarismo é mantido em instituições policiais. São servidores
públicos muito mais fáceis de serem explorados e colocados na linha de frente
para a sustentação institucional dos políticos, principalmente quando a
população começa a reagir frente aos abusos e perdas de direitos básicos. Não
por acaso, Bolsonaro defende a excludente de ilicitude no caso das ações de
Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ou que o pacote “anticrime” de Sérgio Moro
fale também nas excludentes de ilicitude da legítima defesa, legitimando todo e
qualquer abuso das forças de segurança.
Psicologicamente, essas políticas trazem
uma sensação de que esses governantes trabalham em prol da polícia, evitando
que os bons policiais, que trabalham no limite da civilização, combatendo o que
há de pior na sociedade, tenham respaldo no seu trabalho dentro da legalidade.
Porém, tais políticas visam proteger os maus policiais, justamente aqueles que
agem à margem da lei e necessitam de respaldo absoluto de governantes demagogos
que, ao fim e ao cabo, os atacam com reformas previdenciárias e trabalhistas,
pagando um salário de fome e lhes oferecendo uma aposentadoria de dificuldades.
Por outro lado, o afastamento das forças
do campo democrático, e da esquerda, faz com que cada vez mais as instituições
policiais sejam dominadas por um discurso populista que vê em todo movimento
social, e em qualquer manifestação de massas populares, um inimigo da suposta
ordem e agentes do caos e do crime. A esquerda falha no diálogo e falha em
enxergar que os policiais também fazem parte da classe trabalhadora, que também
são explorados e que devem ter seu protagonismo como trabalhadores reconhecido.
Para isso, é necessário que palavras de
ordem sejam modificadas e que pontes sejam criadas. Pontes essas sempre
derrubadas a cada avanço de governos autoritários que se utilizam dos
policiais, principalmente dos militares, para a manutenção do seu status
quo, mesmo que para isso esses trabalhadores passem por humilhações e graves
privações.
Por fim, a desmilitarização não deve
ocorrer somente nas estruturas da Polícia Militar, mas todo o sistema de
segurança pública deve ser desmilitarizado. Isso não significa o fim da
hierarquia e disciplina e não significa desarmar as polícias ou retirar a sua
autoridade. É simplesmente reforçar um ambiente democrático e de legitimidade
do uso da força, que favorece todos cidadãos e, principalmente, os próprios
policiais.
*Mestre em Direitos Humanos,
pós-graduado em Direito Penal, Direito Constitucional e História Contemporânea,
Policial Civil (PC/RS) e membro do movimento Policiais Antifascismo.
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