"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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terça-feira, 27 de novembro de 2018

Governabilidade, só se combinarem com o povo (II)

Yuri Martins Fontes: “Organização, esperança e o papel do líder (para além de determinismos ou derrotismos confortáveis): mais pontos para reflexão diante da aposta das elites no caos que ameaça e desmoraliza o país”

 
Foto: Câmara dos Deputados
(continuação)

VI- Força da utopia e pessimismo da razão: Gramsci, Engels e uma história de Mao

Segundo o aforismo de Gramsci – que reforça o princípio marxista da “práxis” (teoria relacionada com a prática e por ela comprovada) –, devemos manter o “pessimismo da razão” (a avaliação correta do pior quadro possível) sempre em diálogo com o “otimismo da vontade” (a utopia concreta que impulsiona à ação). 

Certos autores criticaram Engels por supostamente ter cometido o pecado do “determinismo evolucionista” (pois teria entendido o socialismo como “fim natural”). Contudo, em uma leitura mais atenta, vê-se que o companheiro de Marx foi vigoroso defensor da práxis revolucionária. Alguns discursos seus foram indevidamente compreendidos como análises científico-sociais (objetivas, necessariamente frias), quando em realidade se tratavam de falas enérgicas de um líder, (adequadas portanto ao calor do contexto que o envolvia). 

Há que se ponderar caso a caso para quem se escreve, diz Sartre (em “Que é literatura?”), para quem se dirige cada mensagem; e assim se distinguir os momentos de reflexão teórica, daqueles de discurso e ação prática.

O grande comandante tem que enaltecer em seus camaradas as possibilidades da vitória – sem, logicamente, ser desonesto e ocultar os perigos da derrota.

Conta o professor da USP, militante e historiador Wilson Barbosa que durante a Revolução Chinesa, Mao Tsé-Tung, recuando em certo momento diante da superioridade das tropas nacional-conservadoras de Chiang Kai-Chek, ao Sul, dirigiu seu exército ao Norte. Questionado sobre o motivo da mudança de planos, responde: “Estamos indo enfrentar e expulsar o invasor japonês!”. Ainda que de fato o Japão tivesse invadido o território chinês, Mao naquele momento provavelmente apenas fugia. Porém, tinha consciência de que a um líder cabe sempre produzir ânimo (“alma”) em suas tropas.

Assim agem as destacadas lideranças militares ou sociais. E por sua vez, no campo inimigo, assim atuam também os opositores dos direitos humanos: vide o exemplo da falsa imparcial Folha e dos assumidos Estadão, Ibope, Globo, Record, STB (estratégicos divulgadores dos interesses da máfia conservadora), no caso clássico dos sempre subtraídos 2% ou 3%, sistematicamente “errados” para baixo nas pesquisas eleitorais “dominantes”, no que se refere aos candidatos de esquerda – cuja mais reveladora prova foi a “vitória prévia” de Aécio, hoje chacota nacional.

VII- Fantoche impotente do sistema: mas perigoso, se não domado

Quando se diz que Bolsonaro é impotente, que não parece ter poder de diálogo parlamentar para tornar viável seu governo, e que nasce frágil com 61% de oposição (ou no mínimo desconfiança), isso decerto não significa que se possa afirmar de antemão que ele não conseguirá terminar o mandato; ou que não obterá alianças para atropelar direitos sociais, aprovando os projetos neoliberais de contrarreformas (trabalhista, previdenciária etc) – requisito para que a elite entreguista continue apostando nele.

Tampouco se pode sugerir com isso que a esquerda deve baixar a guarda, esperar passiva as agressões que devem vir em janeiro, a partir da (possível) virada de ano 2018/1964.

Pelo contrário, o intuito é mostrar que não é hora de temor, mas de união, serenidade e cabeça erguida – pois o inimigo tem fragilidades e graves contradições. Por exemplo, a explosiva mistura entre um militarismo caduca, mas com ânsia de reconhecimento enquanto potência regional, e o neoliberalismo entreguista.

Dentro das regras impostas pela institucionalidade vigente, o capital não tem por que estar tranquilo com o capitão – e não está. Só passarão os tantos pacotes de maldades previstos, em se desmoralizando ainda mais as decadentes instituições conservadoras, estes dejetos não reciclados da ditadura militar – como de fato ocorreu nessas eleições, cujas fraudes corroeram o já sofrível nome brasileiro diante do mundo.

Portanto, de uma maneira ou de outra, o campo reacionário sofrerá derrotas: ora políticas, ora éticas. Cabe aos progressistas atuarem nestes erros com as forças que têm: a mobilização nas ruas; a Constituição cidadã (o que resta de suas estruturas); e também o apelo aos observatórios de direitos humanos internacionais (que já começaram a se pronunciar, com suas críticas que, normalmente “eurocêntricas” e falso-moralistas, costumam impor freios ao empresariado troglodita nacional, ao ameaçarem seus lucros, mediante embargos econômicos).

VIII- Esperança e resistência são decisivas: construir a não governabilidade

Apostar no fracasso de Bolsonaro não se trata de predição otimista, mas sim de apontar brechas e oferecer um sopro de ânimo à resistência, frente a uma realidade que está posta. Trata-se, em suma, de nos organizarmos para construir a sua não governabilidade.

A esperança, a “fé racional” nesta utopia que é a liberdade – como destaca Mariátegui – é uma força que fez o povo andino preservar seus costumes e resistir por séculos aos genocídios europeus. Uma força que frequentemente surpreendeu os desígnios da História.

Bolsonaro é sim fascista, no sentido historiográfico do termo. Mas – ainda – não conseguiu, e não dá mostras de que conseguirá, no atual “semi-presidencialismo” em que vivemos, instaurar um regime fascista no país, unindo as destoantes vaidades militares e subjugando todos os outros poderes, tão fortes, fisiológicos e sujos como ele (judiciário, midiático e parlamentar).

Recordemos que Lula, quando se encaminhava para ter mais de 80% de aprovação popular, quase foi derrubado pelo eixo midiático-judiciário-parlamentar, que adornou o velho conhecido caixa-dois com as lantejoulas de um “imperdoável” pagamento mensal de aliados. [*Breve digressão: apesar da crença pregada por certo esquerdismo purista – desatualizado quanto a nossa real baixeza política –, não passa de metafísica o culto à ideia de que a semi-presidência lulista foi toda-poderosa.]

Diz Lukács: só podemos saber o resultado global das ações particulares planejadas por cada grupo ou indivíduo “post festum” – postumamente.

Acusar as debilidades do fraco Bolsonaro é pagar para ver – mas sem deixar de empunhar os escudos da resistência. É apostar na fé das ruas, que subitamente se reforçou em um momento de agonia. E é fazer a tal autocrítica generalizada: petista sim, mas pedetista, psolista, ultraesquerdista e, sobretudo, do esquerdismo caviar, festivo, da marxologia acadêmica de vitrine. A festa pode estar pra acabar.

IX- Governabilidade: mas a que custo?

A contradição maior que paira sobre o governo Bolsonaro é: até que ponto a burguesia dominante vai permitir ter sua ideologia nacional diminuída, ridicularizada por um “projeto” pífio de país que tende à estagnação? Que farão quando os efeitos da crise econômica mundial se aprofundarem, motivados pela desastrosa política externa amadora que se avizinha?

Decerto que Bolsonaro podia se eleger – como se elegeu. Porém, utilizou-se de métodos desonestos e (ainda) passíveis de impugnação. Quando muitos disseram que ele não iria se eleger, que era o quadro mais fraco da direita, essa não foi exatamente uma análise “equivocada”, mas uma aposta – e talvez a única saída naquela conjuntura: um chamamento ao que restava de racionalidade no campo das elites, uma aposta na “vergonha na cara” das instituições. Ambições frustradas.

O monstro poderá agora obter também a improvável governabilidade. Mas a que custo? Ao custo da desmoralização total do Judiciário, com o estúpido Moro alçado à política, onde desde sempre esteve (em trajetória que vai do neoliberalismo tucano ao autoritarismo descarado); este funcionário do líbero-fascismo cuja óbvia função é pressionar a rapa de congressistas desonestos para que atuem alinhados ao governo.

Mas isso não se dará sem um alto custo de deterioração do nome do Brasil no exterior – como o próprio “murista” FHC (incapaz de se posicionar diante do caos) reconheceu há algumas semanas.

X- Combinaram com os russos?

A Monstruosidade nos imporá com violência os projetos neoliberais impopulares, ou ao menos tentará. Mas quantos serão mortos, quantos mártires serão criados?

E aliás, como diria o sagaz Garrincha: eles “combinaram” com o povo que será massacrado economicamente? Com as multidões que vendo suas existências ameaçadas sairão às ruas, com ou sem repressão?

Combinaram com os órgãos europeus de direitos humanos – este centro global do “poder moral” que promoverá suas sanções (como mencionado, eurocêntricas, mas algo funcionais)?

Combinaram com os árabes, com os chineses, com os argentinos – parceiros estratégicos que respondem por mais de 50% de nosso superávit comercial – infantilmente agredidos ainda antes da posse? [Aliás, parabéns ao Egito pela primeira porrada dura no bolsonazismo “exterior” – cancelando reunião diplomática e deixando com a cara na porta dezenas de nossos empresários golpistas, que já tinham voado ao país africano].

O caso da China merece destaque: é hoje nossa principal parceira comercial, antes dos estadunidenses e europeus. Será que o ministério bolsominion já planejou ao menos como se desculpar pela estúpida visita a Taiwan feita pelo capo há uns meses (aventura tola que sugere o caos de nossa política externa vindoura)? [O vice Mourão, neste ponto, parece mais sensato que o fantoche eleito, e se encontrar espaço, pode ganhar protagonismo].

E quanto ao desejo de realinhamento subalterno aos EUA (que até os tucanos entreguistas veem como exagerado)? O líbero-fascismo já pensou que o Império tem uma bolha financeira prestes a explodir, segundo afirmam diversos economistas (inclusive renomado “prêmio Nobel”)? Sabem que o dólar vem sendo paulatinamente preterido nas transações internacionais, dado que seu valor está inflado, e que isso pode acelerar sua quebra súbita?

As quedas da bolsa a cada fala torpe da equipe de transição, prenuncia que o namoro da burguesia com o fascista será breve.


*É doutor em História Econômica (USP/CNRS), com formação em Filosofia e Engenharia. Exerce atividades como pesquisador, escritor e jornalista, além de coordenar projetos de educação popular junto ao Núcleo Práxis da USP. É autor do livro “Marx na América – a práxis de Caio Prado e Mariátegui”, dentre outras publicações.


Fonte: Publicado na Revista Fórum 


Governabilidade, só se combinarem com o povo (I)

Yuri Martins Fontes: “Tópicos para análise da tempestade e da resistência: organização popular, esperança e papel do líder – para além de determinismos ou derrotismos confortáveis”
 
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Embora não estejamos (ainda) na iminência da instauração do fascismo enquanto regime pleno – como pregam os místicos catastrofistas –, temos sem dúvida um fascista eleito. É, portanto, época para reflexões autocríticas e prognósticos que ajudem a apontar novos rumos para a luta, mas sem recairmos em projeções deterministas, positivas ou negativas, que desmobilizam.
No planejamento tático de uma frente progressista, não cabem posições sectárias, como o ativismo meramente intelectual ou professoral que não logra transformar boas ideias em projetos sociais consistentes. Para além do teor “revolucionário” de discursos de rede social, é fundamental que a esquerda retome sistematicamente – no seu cotidiano – o trabalho de base.

I- O desespero é uma forma de vaidade

Doutos puristas da ética, socialistas engravatados, ou mesmo os amantes de debates sobre a penúria do povo, em mesas fartas e com bons vinhos (afinal, todo homem é filho dos deuses), limitam seu próprio desenvolvimento humano, se não aprendem também a pisar o chão de terra – que é onde se verificam as verdades das teorias.

O derrotismo desesperado (“nada vale a pena”) é tão confortável quanto o otimismo deslumbrado (“basta esperar, tudo caminha bem”).

Como a psicologia talvez explique, tais posições “extremas” (e não “radicais”) só servem para justificar a aceitação da zona de conforto pequeno-burguesa. Em que difere a vida mansa de um “marxista de papel”, encastelado no escritório ou academia, do dia a dia morno que desfruta o restante da classe média suicida bolsonarista?

A unidade prática das forças sociais é maior do que qualquer projeto teórico pessoal. E o desespero é uma forma de vaidade.
 
 
II- Crise estrutural e um novo “sentido” para as esquerdas 

A eleição foi uma farsa obscena, explicitamente fraudada, manipulada por mentiras em massa, após a série de falcatruas dos Tribunais, Congresso e mídia empresarial, o que merece um terceiro turno de intensos protestos populares.

Mas a ascensão de um poste neoliberal de viés fascista não resulta somente das ilusões de uma população em grandes proporções analfabeta política, sistematicamente enganada por telejornais e recentemente pela novidade dos criminosos disparos de “fake news” em redes sociais.

É preciso ir além na análise: avaliar o descontentamento “objetivo” do povo, que sofre há uma década a quebra econômica de 2008, que se eterniza (como agravamento da crise estrutural – automação/desemprego” – que segundo o pensador e economista belga Ernest Mandel, será de “longa duração”).


Neste cenário de disputa acirrada, a esquerda precisa reencontrar seu “sentido” – olhar para as amplas populações de excluídos que ganham protagonismo nesta época de declínio do sistema capitalista. Como disse Mano Brown, no ato de Haddad: “Se não conseguir falar a língua do povo, vai perder mesmo”.

III- O rei está nu: Moro, cabo-eleitoral do fascista

Com a atitude indecente do pequeno-juiz Moro, o quadro fica explícito: o rei está nu. O golpe chega assim em sua etapa mais sórdida, e já não tem vergonha de desnudar suas vilezas antidemocráticas.

Aliás, a “democracia liberal” (ou melhor, “eleitoral”) só existe quando a esquerda não ganha.

Mas no Louco – no Monstro – que é apenas um frágil fantoche do trator neoliberal em crise – está agora refletida, e nua, a “famiglia” brasileira, esta massa de manobra fútil e barata de que se compõe majoritariamente a classe média: parcela instruída “tecnicamente”, mas politicamente semianalfabeta. Ainda assim, breve verão que o rei está nu – mesmo que não o confessem. Quanto mais resistirem ao óbvio, mais a economia do país afundará, e mais os ideais humanos tendem a se levantar contra a barbárie que está nítida em cada gesto, em cada ministro amador, torpe e criminoso (de gatunos especializados, Guedes e Moro, ao astronauta garoto-propaganda ou a figurante global do “ambiente”, Maitê Proença).

Para mostrar a irracionalidade de um fascista, deixe-o falar, para demonstrar sua estupidez, basta que aja.

IV- Mercado versus Humanidade

A hegemonia do que é humano já supera, ao menos no ideário popular, a hegemonia em decadência do animalesco “mercado”, cujo maior valor é a “competitividade”, a competição suja e desigual (apesar de no campo do poder político, econômico e militar, o capital ainda dominar com vantagem).

O problema que os economistas-do-mercado não podem resolver, com sua estreita objetividade científica (que eles supõem ou vendem como “exata”) é o de que: para além de suas teorias matematizantes, positivistas, está o Ser Humano. No cálculo dos resultados, subestimam o poder do “sujeito”: das subjetividades agredidas. Esquecem de combinar a “verdade” de suas teses com o povo, que é sempre quem arca com o maior sofrimento.

Como mostra a História, cedo ou tarde a população refuta as teorias rasas, e vêm à luz os interesses escusos (veja-se a impotência da pregação neoliberal em vencer eleições há duas décadas).

V- O Poste líbero-fascista é pouco hábil: mas o sistema é potente

Bolsonaro é pouco culto, pouco inteligente e inábil – e não esconde isto (a ponto de zombar de si mesmo admitindo se valer de um “posto-ipiranga”).

Contudo, não devemos deixar de ponderar que o sistema a que este fantoche representa é poderoso, e em momentos de desestabilização econômica mundial torna-se ainda mais violento. O tolo Poste, com dificuldades para terminar uma frase, pode ter (e terá) complicações para governar: para tecer alianças ou estimular confianças no centrão fisiológico (sempre dedicado ao “desenvolvimento” de seu patrimônio pessoal).

Conforme a analista Tereza Cruvinel, a “prensa” defendida pelo futuro ministro Guedes (o Posto do Poste, denunciado por calote milionário em aposentados) foi logo repelida. De fato, até o direitista tucano T. Jereissati, que pode presidir o Senado, o advertiu: se insistir em votar mudanças na Previdência com esse Congresso de “legitimidade vencida”, o novo governo “pode sofrer a primeira derrota antes da posse”.

Já o presidente do Congresso, Eunício O. (MDB) disse que Guedes lhe pressionou para pautar a contrarreforma da Previdência: “Ou o PT volta”! Ao que ele contestou: “Não estou preocupado com a volta ou não do PT… [Seu governo] deve saber o que quer para a frente [pois] assumiu a responsabilidade de governar o Brasil… Ninguém vai interferir nesse Poder [Legislativo]”.

Mas o militar-expulso eleito pode também trilhar o caminho da força bruta – e para isto ergueu seu capataz Moro. O jogo está aberto: o fascista pode cair, ser derrubado pelo descontentamento das ruas (apesar das instituições coniventes); ou pode encontrar formas de resistir, submetendo-se ainda mais ao projeto neoliberal (que em última análise é quem o elegeu).

Qualquer que seja o caminho, uma coisa é certa: o desgaste político da direita se acentuará, pois a população de modo geral já tem alguma consciência de seus direitos. E as grandes ideias, como nota o marxista húngaro Lukács: “conservam-se espontaneamente na memória da humanidade”, pois preparam o homem para a liberdade. E aliás, nem por lei nem por decreto se apaga da História a força de pensamento profundo como o do internacionalmente reconhecido Paulo Freire.

Veja-se o recado do povo pobre a Trump na recente votação parlamentar dos EUA; ou a trajetória ascendente do “socialismo democrático” nesse país com autoritárias leis “anticomunistas”, em que mais da metade dos jovens entre 18 e 29 anos afirmam que “preferem viver numa sociedade socialista ou comunista, do que numa capitalista ou fascista” (pesquisa de 2017)!

Em um processo de economia travada e intensa repressão, as elites também se prejudicam – pois perdem de vez sua já desgastada máscara de classe dirigente “racional”.

[Na próxima coluna, observemos como o comandante deve produzir ânimo em seus comandados, sem contudo ocultar as possibilidades da derrota. Vejamos o significado do aforismo de Gramsci, segundo o qual devemos manter o “pessimismo da razão” articulado com o “otimismo da vontade” (a utopia que anima a ação). E abordemos a diferença crucial entre as análises que buscam ser objetivas (científicas), e aquelas que são típicas da subjetividade carismática de um líder (da capacidade intuitiva). São elementos que se deve ter em conta na construção popular da não governabilidade do fascista, retrocesso imposto à nação pelo projeto neoliberal em crise, após anos de golpismo sujo].


*É doutor em História Econômica (USP/CNRS), com formação em Filosofia e Engenharia. Exerce atividades como pesquisador, escritor e jornalista, além de coordenar projetos de educação popular junto ao Núcleo Práxis da USP. É autor do livro “Marx na América – a práxis de Caio Prado e Mariátegui”, dentre outras publicações.


Fonte: Publicado na Revista Fórum  
 

Denúncia contra Lula "é mais um duro golpe no Estado de Direito", diz Zanin

Foto: Reprodução depoimento Lula
Jornal GGN - A denúncia da Lava Jato de São Paulo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva "é mais um duro golpe no Estado de Direito porque subverte a lei e os fatos para fabricar uma acusação e dar continuidade a uma perseguição política sem precedentes pela via judicial". A manifestação é do advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins.
 
O ex-presidente foi alvo, nesta segunda-feira (26), de uma acusação de suposto crime de lavagem de dinheiro, pela força-tarefa de procuradores de São Paulo, alegando que Lula recebeu R$ 1 milhão "ilícito", por meio de doação, ao Instituto Lula.
 
Em resposta, a defesa de Lula lembrou que a doação "ilícita" foi declarada, contabilizada na Receita Federal. "A denúncia pretendeu, de forma absurda e injurídica, transformar uma doação recebida de uma empresa privada pelo Instituto Lula, devidamente contabilizada e declarada às autoridades", escreveu a defesa, acrescentando: "É mais um capítulo do 'lawfare' que vem sendo imposto a Lula desde 2016".
 
Na mesma peça, foi denunciado o controlador do grupo ARG, Rodolfo Giannetti Geo, por suposto tráfico de influência em transação comercial internacional e lavagem de dinheiro. 
 
Para chegar a acusar Lula, os procuradores sustentaram que o "prestígio internacional" do ex-presidente foi usado para influenciar nas decisões de Teodoro Obiang, da Guiné Equatiorial, para aumentar os negócios do grupo ARG no país africano. Assim, a denúncia transforma a relação internacional política do ex-presidente, já não mais no comando do Planalto, em benefício de um grupo econômico brasileiro como um crime.
 
Ainda, neste processo, os procuradores tampouco consultaram o denunciado, neste caso, Lula. "A acusação foi construída com base na retórica, sem apoio em qualquer conduta específica praticada pelo ex-Presidente Lula, que sequer teve a oportunidade de prestar qualquer esclarecimento sobre a versão da denúncia antes do espetáculo que mais uma vez acompanha uma iniciativa do Ministério Público – aniquilando as garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal", informou Zanin.
 
Na nota pública, o advogado criticou não somente a peça em si, sem sustentações, mas também o fato de Lula não ter sido ouvido em nenhum momento.
 
"Lula foi privado de sua liberdade contra texto expresso da Constituição Federal porque não existe em relação a ele qualquer condenação definitiva; tampouco existe um processo justo. Lula teve, ainda, todos os seus bens bloqueados pela Justiça; busca-se com isso legitimar acusações absurdas pela ausência de meios efetivos de defesa pelo ex-presidente", concluiu.
 
Por último, Cristiano Zanin solicitou à Justiça Federal de São Paulo que rejeite a denúncia, "diante da manifesta ausência de justa causa para a abertura de uma nova ação penal frívola contra Lula".
 
 
 

MPF, mais uma vez, cumpre seu papel político contra Lula

A nova denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra Lula, em São Paulo, é mais um capítulo vergonhoso de perseguição movida por um poder de estado contra um cidadão despido de todos seus direitos. Não um cidadão qualquer, mas uma das personalidades políticas mais respeitadas fora deste país liliputiano.
 
Trata-se daquelas denúncias que não se sustentam nem sob a ótica da verossimilhança.
 
Segundo reportagem do Estadão (clique aqui), em 2011 e 2012 – portanto, sem ter nenhum cargo público – Lula teria intercedido por uma empresa brasileira junto ao presidente da Guiné Equatorial. Qual a acusação a Lula? O de ter influenciado o presidente de outro país no exercício de sua função! Não era Lula no exercício da sua função, mas o presidente da Guiné Equatorial. Lula o influenciou como? Não foi com propina, caixa 2, mas com seu prestígio pessoal, na condição de ex-presidente da República, não de um Presidente no gozo de seu mandato.
 
Em 2016 – ou seja, 4 anos depois! – houve uma doação de R$ 1 milhão da empresa ao Instituto Lula. A única ´´prova´´ que une tudo é um e-mail de Miguel Jorge ao Instituto, em 2011, dizendo da intenção da empresa em contribuir com o Instituto.
 
No final do processo, qualquer juiz isento desqualificará a denúncia. Como a desqualificaria qualquer procurador que colocasse a busca da justiça acima do jogo político.
 
Mas o objetivo político mais uma vez estará alcançado.



 

A utopia bolsonarista não vê a desigualdade como problema e nem dá solução

Por Renato Bazan
A ONG internacional Oxfam lançou nesta segunda-feira (26) o seu relatório anual de análise da desigualdade social no Brasil. É uma peça essencial para contar a narrativa dos nossos tempos: depois de 15 anos de ventos favoráveis para os mais pobres e periféricos, a maré aponta violenta para o desfiladeiro.

São números inquestionáveis de um cenário de concentração de renda: os 10% mais ricos tiveram um aumento de 6% nos salários, a metade mais pobre teve uma retração de 3,5%; o rendimento médio do topo foi de R$ R$ 9.519,10 em 2017, o da base, R$ 787,69; o número de pessoas oficialmente “pobres” (que vivem com menos de 1 dólar por dia) foi de 13 milhões para 15 milhões; o desemprego foi de 11,5% para 12,7%.

Isso apenas em um ano.

Empregador e empregado sempre tiveram uma relação tumultuosa no Brasil, mas uma característica do governo Temer foi seu projeto para transformar o mercado de trabalho em uma selva, onde vale a lei do mais forte. Por isso tentaram estrangular financeiramente a Justiça do Trabalho, e por isso aprovaram a Lei da Terceirização mais agressiva do planeta. Por isso Bolsonaro chegou perto de extinguir o Ministério do Trabalho na semana passada.

Neste quesito, Bolsonaro e Temer são idênticos - ambos desprezam soluções econômicas que mantenham o equilíbrio entre as partes do contra-cheque. A ajuda de especialistas é dispensada em assuntos de interesse social, junto com as vozes dos representantes da parte mais fraca. Dá-se os ombros às convenções internacionais e à própria Constituição se há dinheiro para ser feito.

É impossível ler o relatório da Oxfam e não enxergar nele uma revanche sobre a CLT, como se esse mesmo patronato que pagou milhões de reais no WhatsApp cobrasse uma dívida contraída na era Vargas. O aumento da desigualdade é obra de gente que vociferou contra a PEC das Domésticas, em um passado recente, e que talvez ressinta a Lei Áurea, num passado remoto. Criam uma oposição imaginária entre direitos sociais e crescimento econômico que não é reconhecida nem pelos seus pares ao redor do mundo.

Evidentemente, essa oposição não é verdadeira. Governos que priorizam direitos sociais criam ondas de benefícios que acabam enriquecendo até mesmo quem se imagina prejudicado. A política de valorização do Salário Mínimo instituída por Lula foi um exemplo clássico disso: com o aumento real ao longo dos anos, a população mais pobre foi sendo incluída nos mercados consumidores, seja pelas maiores remunerações, seja pelos benefícios atrelados a ele (como Bolsa Família e aposentadoria).

Ao aumentar o valor do Salário Mínimo e favorecer a formalização dos empregos, o que o PT promoveu foi um crescimento inédito nas pequenas cidades brasileiras, a maioria em termos territoriais. Isso, por sua vez, disparou uma onda que acabou chegando no empresariado. Até mesmo mercados historicamente elitizados, como a indústria cultural e o de cosméticos, aproveitaram um momento de magnífica lucratividade.

A viseira ideológica ultra-liberal de Temer e Bolsonaro não os permite enxergar a realidade desses números. Ambos usam a retração de 2014 para justificar seus ataques a Lula e Dilma - “quebraram o Brasil”, “tiram a liberdade do empresário para investir”, “criam estatal como cabide de empregos”. Nesta grita, dinamitam junto a ideia de que é possível o convívio harmonioso com diferentes classes sociais.

A má-fé no trato desta questão é estridente. Michel Temer, por exemplo, chegou a citar a Espanha como um exemplo a ser seguido - logo ela, que chegou a uma taxa de desemprego de 18,4% em 2017 depois de acabar com suas proteções trabalhistas. Elogiou inúmeras vezes Mauricio Macri, presidente da Argentina, onde os arrochos do governo levaram a um aumento de pobres e miseráveis (32,9% em um ano!).

Agora Bolsonaro olha o Chile de Pinochet com os mesmos olhos. Não enxerga nem o aumento vertiginoso da pobreza daquela época, nem a ditadura sanguinária que levou a ele.

Não é necessário nenhum gênio da economia para perceber que isso não beneficia ninguém, nem mesmo os porcos que chafurdam no autoritarismo. Se há algo que o último governo militar ensinou ao Brasil, é que crescimento sem distribuição não funciona - em primeiro lugar, é preciso respeitar as pessoas para encontrar soluções. É algo que o clã Bolsonaro jamais entenderá. 


Fonte: Publicado no Jornal GGN 


Entidades da educação cobram STF e lançam manual contra censura escolar

'Grupo, que inclui o Instituto Vladimir Herzog, faz apelo para julgamento e divulga estratégias contra ataque a educadores.'
Em resposta ao avanço de ataques contra educadores por partidários do Escola sem Partido, religiosos e conservadores, um grupo de entidades ligadas à educação, aos direitos humanos e movimentos sociais criou um manual de defesa contra perseguições de docentes e contra a censura nas escolas.

O material traz estratégias pedagógicas e jurídicas para atuação em diferentes casos de ataques, bem como desenha as premissas legais e pedagógicas que resguardam o trabalho dos professores. O conteúdo pode ser acessado pelo endereço www.manualdedefesadasescolas.org.

Assinam o manual cerca de 60 entidades, incluindo Instituto Vladimir Herzog, Ação Educativa, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação. O Fundo Malala e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal apoiam a iniciativa.

O grupo também preparou um apelo ao STF (Supremo Tribunal Federal) para que haja o julgamento sobre uma lei estadual de Alagoas inspirada no movimento Escola sem Partido e batizada por lá de Escola Livre. O julgamento estava previsto para quarta-feira (28), mas o presidente da corte, ministro Dias Toffoli, incluiu outro processo na frente, o que pode adiar indefinidamente a análise.

Há expectativa com relação ao julgamento do Supremo uma vez que essa lei de Alagoas foi suspensa, por decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso, ao ser considerada inconstitucional. Esse entendimento também é respaldado por parecer do Ministério Público Federal.

A definição do STF poderia influenciar o projeto inspirado no Escola sem Partido em trâmite no Congresso. Ele tenta limitar o que o professor pode falar dentro da sala de aula e ainda vetar abordagens sobre gênero nas escolas.

O apelo, direcionado a Toffoli, é para que o tribunal se posicione sobre leis que “ferem os princípios constitucionais” e “dê limite à escalada de ataques e perseguições a educadoras e educadores e de atos de censura contra escolas em diversos municípios e estados brasileiros”.

Segundo levantamento do Movimento Educação Democrática, já houve ao menos 181 projetos de lei em Câmaras Municipais e Assembleias em todo o país com teor semelhante. Mas o objetivo do manual criado pelo grupo de entidades é apoiar professores que, mesmo sem legislações em vigor, já têm sido atacados ou constrangidos.

Em vídeo divulgado no último sábado (24), o deputado federal eleito pelo Rio Daniel Silveira (PSL) ameaça investigar um colégio em Petrópolis (região serrana do Rio) e também a diretora.

Em outubro, um docente de história em Natal foi ameaçado de morte depois que o pai de um aluno entendeu como ataque político uma explicação dele sobre a Lei Rouanet. Uma escola tradicional do Rio proibiu, no início daquele mês, um livro que foi considerado comunista por pais (a obra “Meninos sem pátria” retrata a vida de família exilada na ditadura).

Em 2016, a escola municipal Desembargador Amorim Lima, no Butantã, na zona oeste de SP, recebeu em 2016 uma notificação judicial de um vereador para que fosse cancelado um evento que discutiria questões de gênero.

“O pior de tudo é o discurso de ódio contra os professores, que estão sendo ameaçados de todas as maneiras em todo o Brasil”, diz a professora Fernanda Moura, que atua na rede pública do Rio e faz parte do Movimento Educação Democrática e do grupo Professores Contra o Escola sem Partido.

O “Manual de Defesa Contra Censura nas Escolas” é estruturado em 11 casos simbólicos, inspirados em episódios reais que vão desde a aprovação de leis até a interferência de membros externos, como Justiça ou polícia. Para esses casos, há a descrição dos desdobramentos, bem como o que professores podem fazer.

Escrito coletivamente, o manual é contra a censura da escola, seja por ações de partidários do Escola sem Partido (que criticam professores sobre uma suposta doutrinação de esquerda) como por aquelas praticadas por conservadores e religiosos, que tentam vetar abordagens sobre gênero ou sexualidade.

“O Manual de Defesa foi pensado para combater atos de perseguição que exploram uma eventual fragilidade individual dos profissionais da educação, criando um clima de medo e autocensura nas escolas”, cita parte do texto. Além de um arcabouço legal sobre a censura na educação e sobre a pertinência legal e pedagógica da presença de temas como gênero e combate à desigualdade nas escolas, norteiam o material a valorização da gestão democrática escolar, a reafirmação da escola como ambiente de resolução de conflitos e a reafirmação da relação de trabalho dos professores, seja com a escola ou com o estado.

O entendimento de educadores, reafirmado no manual, é de que a intenção de “grupos ultraconservadores é impedir que diferentes interpretações e compreensões do mundo sejam debatidas nas instituições de ensino, estimulando uma educação para a obediência e para a naturalização das desigualdades sociais, do racismo, do sexismo, da LGBTfobia e de outras discriminações”.

Heleno Araújo, presidente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), diz que os movimentos atuais de pressão contra professores têm fragilizado os profissionais e deteriorado as relações nas escolas. “Essa forma de atuação amedronta os trabalhadores e interfere na relação entre professores e alunos”, diz.

O professor Fernando Cássio, da UFABC, diz que o fato de o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) canalizar apoio ao projeto Escola sem Partido agrava a situação. “Os professores já estão muito vilipendiados, por baixos salários, condições ruins de trabalho, e ainda têm de ser humilhados e chamados de doutrinadores”, diz.


  

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

“O pior está por vir”: reportagem da Piauí mostra como uma democracia pode acabar

Por 

Ricardo Kotscho, jornalista.

Calma, não estão falando (ainda) do Brasil.

O título é da reportagem de Anne Applebaum, colunista do Washington Post  (aquele jornal comunista odiado por Trump), publicada na edição de novembro da revista Piauí, que relata o esfacelamento das instituições democráticas na Polônia.

Lá, a nova ordem da direita mundial já está no poder há alguns anos, sob a bandeira do partido Lei e Justiça, a versão polonesa do PSL de Bolsonaro.

No momento, o governo polonês está promovendo a reforma do Judiciário para “purgar tribunais da herança comunista”.

Aqui, a tropa de choque do bolsonarismo também já está trabalhando no Congresso Nacional para fazer algo parecido.

Nos dois países, o objetivo é substituir os atuais juízes e colocar gente de confiança dos novos governantes em suas vagas.

Ao ler a estupenda reportagem de Applebaum, judia americana casada com um político polonês, fui anotando as incríveis semelhanças entre os dois processos em marcha.

“Polarização, teorias conspiratórias, ataques à imprensa _ como uma democracia pode acabar”, este é o subtítulo da matéria da Pìauí,

Na marcha batida rumo ao retrocesso institucional em que caminhamos, o Brasil pode virar a Polônia amanhã, se as forças democráticas sobreviventes no nosso país não abrirem logo os olhos.

“O que terá causado essa transfiguração?”, pergunta-se a colunista do Post, que foi procurar a resposta num diário do escritor romeno Mihail Sebastian em que relata a escalada do nazifascismo na Europa dos anos 30.

“Assim como eu, Sebastian era judeu e a maioria dos seus amigos era de direita. No diário, ele anotou como, um por um, eles foram atraídos pela ideologia fascista, tal um bando de mariposas em direção à luz (…) Reparou que descambavam para o pensamento conspiratório ou se tornavam irrefletidamente rudes. Gente que ele conhecia fazia anos o insultava abertamente e depois se portava como se nada tivesse acontecido”.

A certa altura do seu diário, em 1937, o escritor romeno se questiona: “Será possível manter amizade com pessoas que compartilham uma série de percepções incompatíveis com as minhas _ tão incompatíveis que se calam de vergonha e constrangimento assim que entro no recinto?”.

Applebaum retoma o texto: “Não estamos em 1937. Entretanto, hoje vem ocorrendo transfiguração semelhante na Europa em que habito e na Polônia, um país cuja cidadania obtive. E vem ocorrendo sem a desculpa de uma crise econômica como aquela que a Europa sofreu nos anos 30 (…) Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Aliás, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo”.

Vejam este outro trecho se não lembra o que está acontecendo em nosso país neste preciso momento:

“Profundas mudanças políticas _ eventos que de uma hora para outra separam famílias e amigos, atravessam classes sociais e reconfiguram alianças de maneira impressionante _ não acontecem todo dia na Europa, mas tampouco são desconhecidas”.

Para mostrar a divisão de um país por razões políticas, a reportagem trata também do célebre caso Dreyfus, quando um oficial do exército francês foi acusado de traição, sentenciado por uma corte marcial e confinado numa solitária na ilha do Diabo, próximo à costa da Guiana Francesa.

“Dreyfus não era um espião. Para demonstrar o indemonstrável, seus opositores precisavam desacreditar a evidência, a lei e até o pensamento racional. A  polêmica dividiu a sociedade francesa em duas linhas ora bem conhecidas. Os que sustentavam a culpa de Dreyfus compunham a direita alternativa _ ou o partido Lei e Justiça, ou a frente Nacional Britânica _ da época (…) Já os partidários de Dreyfus argumentavam que certos princípios seriam superiores à honra nacional e que, sim, importava se ele era ou não culpado”.

Não lembra alguma coisa? Em consequência desse antagonismo feroz, Applebaum lembra o que aconteceu:

“Os ânimos se acirraram. Arrebentavam bate-bocas nas salas de jantar de Paris. Familiares deixaram de falar uns com os outros, às vezes por mais de uma geração (…) Bastou um caso judicial – um julgamento contestado – para lançar um país inteiro num debate furioso, gerando desavenças indirimíveis entre pessoas que não sabiam que discordavam entre si”.

A reportagem é longa, tem nove páginas, mas muito bem escrita, vale a pena ler até o fim.

Tenho a impressão de que muita gente ainda não se deu conta dos perigos que estamos correndo no Brasil, onde o pior também ainda está por vir.

Por isso, é bom saber o que está acontecendo em outros países.

Em tempo: outra coincidência na história dos dois países é que a Polônia, assim como o Brasil com Lula, foi um dos raros países do mundo a ser governado por um operário (Lech Walesa). E o líder operário polonês também sofreu as mesmas acusações feitas contra Lula.

Da mesma forma, condenado e preso sem provas, num processo até hoje contestado, o ex-presidente Lula me fez lembrar o caso do capitão Alfred Dreyfus, uma farsa que custou a ser descoberta, e até hoje ainda divide os franceses.

Alguém já disse que a história sempre se repete como farsa ou como tragédia. Quem foi? Vou consultar o Google…

E vida que segue. 


Fonte: Publicado no Balaio do Kotscho

Tiram o bode da sala, colocam Vélez Rodriguez

Numa das postagens que fez para patrocinar a indicação de Ricardo Vélez Rodríguez para o MEC (pois é claro que não basta influenciar, tem que ostentar a influência), Olavo de Carvalho escreveu que ele é "a pessoa que mais entende de pensamento político-social brasileiro - motivo suficiente para que eu o considere o melhor nome para o Ministério da Educação".

Faz pouco tempo, eu li um paper do futuro ministro sobre pensamento político brasileiro contemporâneo. Era longo, muito longo, mas raso demais, sem qualquer aprofundamento analítico, consistindo sobretudo numa listagem de nomes e obras, encaixados em "correntes" meio bizarras. O grande destaque, obviamente, era Antonio Paim, o patriarca do conservadorismo na filosofia política brasileira. O maior nome vinculado ao pensamento da Escola de Frankfurt no Brasil seria Vamireh Chacon (!) e Demétrio Magnoli era destacado na corrente "social-democrata" (!). O marxismo quase não aparecia, anexado que estava ao "lulopetismo" - sim, uma das correntes do pensamento político brasileiro. O texto mencionava com certeza mais de uma centena de nomes; as mulheres eram talvez uma meia dúzia, não mais que isso.

O paper é tudo o que conheço da obra acadêmica de Vélez Rodríguez. Mas vi pela imprensa trechos do que ele escreve em blogs e quetais: "ciência" é quase uma ofensa em sua boca, "gênero" é uma "invenção deletéria" e a escola precisa é de "comitês de ética" para supervisionar o comportamento dos estudantes. Ele tem ao menos o mérito de assumir sem rodeios o espírito do "Escola Sem Partido" (sic): o ódio à educação, por colocar em xeque os "valores tradicionais da nossa sociedade".

Vélez Rodríguez não tem o olhar vidrado de Guilherme Schelb, o bode habilmente introduzido na sala pelas especulações de ontem para o MEC. Até onde sei, não se vê como alguém a quem Deus em pessoa confiou a missão de derrotar os ímpios. Uma olhada no seu currículo indica que sempre foi conservador, mas que - coincidência ou não - se radicalizou e assumiu um discurso tão caricato só quando essas posturas começaram a render vantagens.

Mas isso não faz dele uma opção melhor. Um com fanatismo, outro de forma mais calculista, ambos abraçam o mesmo projeto, que é o combate sem tréguas à educação no Brasil.


*Luis Felipe Miguel - Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades. Pesquisador do CNPq. Autor de diversos livros, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Feminismo e política: uma introdução (com Flávia Biroli; Boitempo, 2014).




Indicado para ministro da Educação possui linha militar e pró-EUA

Indicado pelo filósofo conservador Olavo de Carvalho, Ricardo Vélez Rodríguez defende lei da mordaça e acredita que ditadura civil-militar foi essencial para a "abertura democrática"

Ricardo Velez Rodriguez disse que 31 de março de 1964, quando foi dado o golpe civil militar, 'é uma data para comemorar'. Google Plus/Reprodução
São Paulo – Ricardo Vélez Rodríguez foi anunciado, nessa quinta-feira (22), como o ministro da Educação para compor o governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

Indicado pelo filósofo conservador Olavo de Carvalho, Vélez se diz crítico da "ideologia marxista" e tem livros publicados contra o PT. O educador Daniel Cara explica que o futuro ministro tem apoio de militares e também é defensor do projeto Escola sem PartidoVélez Rodríguez é professor da elite do Exército e da Universidade Federal de Juiz de Fora.

"Ele considera que a instituição (do Escola sem Partido) por meio de um projeto de lei é ruim e defende que o projeto seja uma mobilização da sociedade para combater o que eles chamam de marxismo cultural, assim como a ideologia de gênero, que são temas inventados por eles mesmos para recrutar militantes, e gerar pânico moral e ideológico nos pais de alunos e estudantes", explica Daniel à RBA.

De acordo com seu blog, Rodríguez disse ter sido recomendado para o cargo de ministro da Educação no dia 7 de novembro.  Ele publicou um texto intitulado Um roteiro para o MEC, no qual diz que a proliferação de leis e regulamentos tornou os brasileiros "reféns de um sistema de ensino alheio às suas vidas e afinado com a tentativa de impor, à sociedade, uma doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista". Isso levaria, segundo ele, a “invenções deletérias em matéria pedagógica como a educação de gênero, a dialética do 'nós contra eles', tudo destinado a desmontar os valores da sociedade".

No mesmo blog pessoal, o responsável pela pasta de Educação disse que 31 de março de 1964, quando foi dado o golpe civil-militar, "é uma data para lembrar e comemorar". Segundo ele, a tomada do poder pelos militares, que perdurou por 20 anos, foi essencial para a "abertura democrática" e "livrou o Brasil do comunismo". 

O anti-comunismo tem sido uma das ferramentas de ação de estrategistas norte-americanos para se contrapor ao avanço do campo democrático do mundo. Desde a Guerra Fria. Documentos comprovam interesse e envolvimento do governo dos Estados Unidos naquele golpe de 1964 – dentro de um projeto de hegemonia econômica no continente. 

Nascido em Bogotá e naturalizado brasileiro, Vélez Rodríguez é autor do livro A Grande Mentira - Lula e o Patrimonialismo Petista. Na contracapa da obra, ele afirma que o partido conseguiu "potencializar as raízes da violência" no Brasil mediante a disseminação da 'revolução cultural gramsciana'".

Em entrevista ao El PaísClaudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE-FGV), fez sua leitura a partir do currículo do indicado. Ela avalia que falta experiência em gestão de políticas educacionais ao novo integrante da equipe do presidente eleito. "Bolsonaro prometeu um perfil técnico para o cargo, mas Vélez não entende de administração de políticas de educação", disse.

Bolsonaro havia acenado para a escolha do educador Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna, para o cargo. Entretanto, a possível indicação de Ramos foi mal recebida pela bancada evangélica do Congresso Nacional e por páginas bolsonaristas na internet. Depois da repercussão, o próprio Bolsonaro anunciou que havia descartado o nome de Ramos e passou a afirmar que estava considerando a escolha do procurador Guilherme Schelb para a vaga – um conservador apoiado pelo pastor Silas Malafaia –, mas também foi descartado.



 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O projeto é não ter projeto

 
Vai ficando cada vez mais preocupante o que nos espera com o governo Jair Bolsonaro.

Os “planos” do presidente eleito são, até agora, de demolição, não de construção.

Vimos um exemplo terrível e desumano com o caso dos médicos cubanos que, em apenas um mês, deixarão sem assistência mais de 25 milhões de brasileiros, no que, num expressão definitiva, Bernardo Mello Franco chamou, em O Globo, de “Programa Menos Médicos”.

Mas não é o único desmonte à frente.

Nos jornais de hoje, fala-se tanto em demitir quanto em reduzir salários dos servidores públicos, algo mais fácil de dizer do que de fazer, porque não apenas há impedimentos legais e constitucionais como, de um lado, enfrentará forte resistência do legislativo e, mesmo em programas de desligamentos voluntários, terá pouca chance de prosperar com as corporações mais bem remuneradas e até com servidores mais modestos, no quadro de desemprego que temos.

No campo dos investimentos, o cenário é desolador. O programa manifesto para o BNDES é o de ampliar a devolução de recursos ao Tesouro, o que, vale dizer, é tirar caixa do banco para emprestar aos agentes econômicos de todos os tamanhos. Panorama desanimador, já que os escândalos políticos tiraram o vigor dos setores que poderiam responder a um programa de investimentos: a construção pesada, o petróleo e a exportação de carnes manufaturada ou semimanufaturada.

Novamente – como desde Joaquim Levy – a expectativa de equilíbrio econômico se baseia na visão medíocre de vender o que resta de patrimônio estatal para cobrir o que a arrecadação de impostos sobre a atividade da economia, o que é, mal comparando, passar a viver da venda dos móveis da casa em lugar do salário, o que “quebra-galhos”, mas não faz mais que adiar crises.

Na educação, a bandeira pública, agora, em lugar de ampliar e melhorar escolas, é calar professores e estimular alunos e pais ao papel de dedo-duros.

Nossas relações com o mundo foram entregues a um patético sujeito que quer “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”, cujo objetivo seria “romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante”, contra o qual é necessário “abrir-se para a presença de Deus na política e na história”. Se tiver paciência com um sujeito destes, leia o artigo em que Clóvis Rossi traça o perfil do “Cabo Daciolo” intelectualizado. 

Depois de anos de crise, é claro que o Brasil tem potencial para recuperação da atividade econômica e é provável que os primeiros meses de governo tenham indicadores positivos neste campo, se o furor moralista e acusatório não trouxer mais insegurança ao quadro da economia.

Mas tudo será só “fumaça” sem rumo econômico e tudo dá a impressão de que teremos um período semelhante ao Governo Temer e uma retomada “voo de galinha”. 


Fonte: Publicado no Tijolaço