"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

Obrigado pelo acesso ao nosso blog
!

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.
#PauloFreireMereceRespeito #PatonoDaEducaçãoBrasileira #PauloFreireSempre

quarta-feira, 31 de março de 2021

Enquanto governo Bolsonaro comemora aniversário do golpe, Brasil bate novo recorde da Covid: 3.869 mortes em 24h. Por Ivan Longo

Marcas macabras da pandemia vêm sendo superadas diariamente enquanto presidente cria novas crises e segue pregando contra as medidas de restrição

(Reprodução)

Além de ser o dia que marca o aniversário do golpe militar de 1964, que culminou na ditadura, este 31 de março ficará marcado, para os brasileiros, por mais um fato triste: trata-se do dia em que o país registrou o maior número de mortes em decorrência da Covid-19 desde o início da pandemia.

Segundo balanço do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), nas últimas 24 horas foram contabilizadas 3.869 novas mortes, superando o recorde macabro de terça-feira (30), quando foram registrados 3.780 óbitos. Com os novos números, o total de vidas perdidas para a Covid-19 no Brasil passa a ser de 321.515.

Também foram contabilizados pelo Conass 90.638 novos casos confirmados da doença, o que faz o acumulado chegar a 12.748.747 casos.

Enquanto o Brasil amarga na posição de epicentro da pandemia mundial, com recordes de mortes sendo batidos diariamente, o presidente Jair Bolsonaro segue pregando, como fez hoje, contra as medidas de restrição e o isolamento social, principais formas de atenuar os efeitos da crise sanitária, visto que o Brasil ainda não conta com vacinação em massa.

Além disso, ao invés de centrar esforços na resolução da principal crise, que é a pandemia, Bolsonaro cria outras, como a que culminou na demissão coletiva da cúpula das Forças Armadas às vésperas do aniversário do golpe militar de 1964. A data, inclusive, foi celebrada pelo governo através de uma nota elogiosa à ditadura publicada nesta terça-feira (30) no site do Ministério da Defesa. O vice-presidente Hamilton Mourão também celebrou o golpe no dia mais letal desde o início da crise sanitária.

*Jornalista e repórter especial da Revista Fórum.



A lição dos vizinhos para a preservação das Forças Armadas, por Moisés Mendes

"Aqui os militares não foram incomodados pelos questionamentos do que fizeram na ditadura", escreve Moisés Mendes, do Jornalistas pela Democracia. "E agora os militares são empregados de Bolsonaro, muito mais do que participantes de um projeto de governo", completa

O general Fernando Azevedo e Silva sai dizendo que preservou as Forças Armadas como instituições de Estado. Não há como duvidar dos dilemas institucionais e dos dramas pessoais que o confrontaram com os impulsos autoritários de Bolsonaro.

O general pode ter cansado de brincar de golpe ao lado do chefe inseguro. Mas Azevedo terá de admitir que percorreu caminhos tortuosos na preservação das Forças durante seu tempo no governo.

Irão falhar todos os que subestimarem suas atitudes (desde a tutela de Dias Toffoli no Supremo) e tentarem vê-las como parte da funcionalidade das Forças num governo que começa como esdrúxulo e fundamentalista e chega ao estágio do genocídio.

Sua saída e a anunciada debandada dos chefes das três armas oferecem uma chance para que o Brasil reavalie a relação dos militares com o poder. Como mensageiros de ameaças e insubordinações, como fizeram Hamilton Mourão e Eduardo Villas Bôas em relação a Dilma e Lula, ou como colaboracionistas subalternos, como os dois citados e tantos outros fizeram ao aderir efusivamente ao bolsonarismo.

Azevedo não esteve envolvido apenas numa questão de disputa de força com Bolsonaro. Está saindo de uma armadilha. O desfecho do seu caso pode ser compreendido, se não houver preguiça das forças da democracia, como um marco capaz de fazer o país caminhar na mesma direção de Chile, Argentina, Uruguai e agora Bolívia, entre outros.

O caminho é o da fixação de limites para o envolvimento dos militares com o poder. Limites muito mais políticos do que legais ou jurídicos e que nem sempre estarão escritos. Não será fácil, porque aqui a bravura da Comissão da Verdade não produziu nada semelhante ao que aconteceu no Chile, onde um documento idêntico desencadeou julgamentos e levou militares à cadeia.

No Uruguai, por iniciativa do governo da Frente Ampla, aprovada pelo Congresso, desapareceu há sete anos o Tribunal de Honra, que mais protegia do que punia crimes de militares.

Mesmo que sem muito êxito, o Ministério Público uruguaio persegue, em confronto permanente com os generais, a punição de criminosos da ditadura. Os militares uruguaios não têm a paz dos impunes.

Na Argentina, nosso melhor exemplo na América Latina, ditadores e torturadores não escaparam da Justiça e de encarceramentos. Há casos em julgamento ainda hoje.

Na Bolívia, um relatório recente de uma Comissão da Verdade foi entregue ao presidente Luis Arce, quase dois anos depois do golpe contra Evo Morales, para que também lá seja tentada a punição dos criminosos da ditadura que mandou no país de 1964 a 1982.

Os bolivianos podem ser retardatários, mas desfrutam de circunstâncias que não temos. Resgataram a democracia, apenas um ano depois do golpe de novembro de 2019, e estão prendendo os golpistas civis e militares.

O Brasil não teve, nos 13 anos de governos do PT, lastro político para ir em frente e empurrar definitivamente os generais de volta aos quartéis e advertir que o poder político não é o espaço para suas incompetências.

O Congresso, por onde poderiam passar inclusive propostas de redução no número de generais, como fez o Uruguai, não tem mais os 300 picaretas citados por Lula nos anos 90. Tem 300 pilantras medíocres ou ajudantes de fascistas, incluindo alguns disfarçados como centristas moderados.

A fixação de alguns limites políticos aos militares não passaria por mudanças formais na legislação, porque seria improvável nesse parlamento. Mas pode passar pelo Supremo, como o enfrentamento de falsas controvérsias, como o sempre citado artigo 142 da Constituição, mas não só em discursos.

Os freios aos militares passam pela ação da sociedade organizada, da OAB, de entidades ligadas aos direitos em geral, os jurídicos e os humanos, da universidade e, é claro, dos partidos, dos sindicatos e dos estudantes, quando esses acordarem. Seria bom se tivesse povo nas ruas, mas o povo que se vê nas ruas é o das baladas.

Nós fomos e somos relapsos em relação ao poder invasivo dos militares, que ainda convencem boa parte da sociedade de que são um contingente de pessoas superiores e mantêm, para a média, quase íntegra uma imagem de trabalho, seriedade e moralidade.

Aqui os militares não foram incomodados pelos questionamentos do que fizeram na ditadura. Ainda hoje os torturadores são exaltados.

E agora os militares são empregados de Bolsonaro, muito mais do que participantes de um projeto de governo. Bolsonaro arrumou emprego para mais de 5 mil oficiais. E já demitiu uma dúzia de generais. Todos saem e ficam quietos, com exceção de Santos Cruz.

A saída de Azevedo não é a demissão de Eduardo Pazuello. Mas talvez não seja, como deveria ser, o impasse das vésperas do aniversário do golpe de 64 capaz de confrontar os militares com as arapucas criadas por Bolsonaro.

Azevedo procura sair como defensor da integridade das Forças Armadas porque chegou ao seu limite. Mas não pode esperar que esqueçam sua decisão de acompanhar Bolsonaro, no dia 31 de maio do ano passado, a uma manifestação liderada por Sara Winter.

Azevedo levou o chefe em um helicóptero com camuflagem, um aparelho de guerra. Contam que o episódio teria sido constrangedor para ele. Aconteceu há quase um ano, e o general constrangido resistiu até agora.

A manifestação que os dois sobrevoaram (depois Bolsonaro foi ao encontro do seu povo) era pelo fechamento do Supremo. Essa carona de Azevedo a Bolsonaro, ou vice-versa, não pode ser apagada.

A grande lição que o general pode dar, como exemplo real de que defendeu a imagem das Forças Armadas, será sua postura a partir de agora.

Azevedo vai precisar mostrar que, fora do governo, não ficará calado. Santos Cruz não ficou. Os que ficaram terão seu lugar na História do bolsonarismo.

É o pior de todos os lugares, como figurantes de um governo marcado pela incompetência, pela sabotagem da ciência, pela propagação permanente de ódios e por um genocídio que assombra o mundo.

*É jornalista em Porto Alegre. Escreve também para os jornais Extra Classe, DCM e Brasil 247. É autor do livro de crônicas Todos querem ser Mujica (Editora Diadorim). Foi colunista e editor especial de Zero Hora.




terça-feira, 30 de março de 2021

O mundo celebra o centenário de Paulo Freire

A nova edição especial do Jornal da Ciência é dedicada à educação e ao legado deste que foi um dos educadores mais famosos e respeitados mundialmente. Acesse gratuitamente!

Por Janes RochaJornal da Ciência

Paulo Freire recebe em 1991 o título de doutor honoris causa da Universidade Complutense de Madri. (Foto: Acervo Memorial Virtual Paulo Freire)

Dezenas de eventos virtuais por todo o Brasil e vários países vêm marcando, desde o ano passado, os cem anos de nascimento de Paulo Reglus Neves Freire. Conhecido apenas como Paulo Freire, ele é o um dos educadores mais famosos e respeitados mundialmente. Nascido no Recife (PE), em 19 de setembro de 1921, desenvolveu um trabalho considerado clássico na sua área, mas seu legado transborda as fronteiras da educação, entrando por vários outros campos do conhecimento.

“Ele deixou marcas profundas em muitas pessoas e profissionais de diferentes áreas. Não apenas pelas suas ideias, mas, sobretudo, pelo seu compromisso ético-político”, comentou, por escrito, Moacir Gadotti, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Instituto Paulo Freire e uma das pessoas que foram mais próximas a Freire. “Ele não deixou discípulos como seguidores de ideias. Deixou mais do que isso. Deixou um espírito”, define Gadotti.

Um dos quatro filhos do casal Joaquim Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire, Paulo Freire começou a ler orientado pela mãe. Concluiu a escola primária no município de Jaboatão dos Guararapes, o ginasial e o secundário no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife. Cursou o “pré-jurídico”, uma modalidade oferecida na época pela escola secundária, preparando-se para ingressar, aos 22 anos, na Faculdade de Direito do Recife. Não porque quisesse ser advogado, mas porque era a única opção na área de ciências humanas, segundo ele mesmo contou em uma entrevista à revista Nova Escola, em 1994.

Casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maria Costa Oliveira (falecida em 1986), com quem teve cinco filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes. O golpe civil-militar de 1964 encontrou Paulo Freire em Brasília, envolvido com o Programa Nacional de Alfabetização, um grande esforço nacional convocado pelo presidente João Goulart, em 1961, com o objetivo de alfabetizar 1.834.200 adultos, atendendo assim 8,9% da população analfabeta (da faixa de 15 a 45 anos), que em setembro de 1963 era de 20,442 milhões pessoas (CPDOC/FGV). Professores, estudantes, sociedades de bairros, entidades religiosas e outras organizações da sociedade civil foram chamados a participar do programa do qual Freire era conselheiro e ativista.

Com o golpe, Freire foi destituído do programa, aposentado compulsoriamente de seu posto de professor da Universidade do Recife (hoje Universidade Federal de Pernambuco, UFPE) e passou a ser perseguido politicamente, o que o obrigou a exilar-se.

Foi primeiro para a Bolívia, depois para o Chile, onde ficou até 1969. Convidado para lecionar na Universidade de Harvard, ele morou e trabalhou em Cambridge, Massachussets, até 1970. Naquele ano mudou-se para Genebra para ser consultor especial do Departamento de educação do Conselho Mundial de Igrejas e dar aulas na Faculdade de Educação da Universidade de Genebra.

O Conselho lhe deu a oportunidade de espalhar suas ideias e seu método educativo pelo mundo: África, Ásia, Oceania e América Latina. Voltou do exílio em 1979 com a anistia, para dar aula na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em 1989 assumiu a Secretaria Municipal de Educação (SME) da Prefeitura de São Paulo, a convite da prefeita Luiza Erundina (1989-1993). Deixou o posto em 1991 por não se entender muito bem com a política, segundo Gadotti.

Freire publicou 14 livros como autor único e mais dez em parceria com outros educadores. Quase todos estão editados em inglês, francês e espanhol, muitos em italiano e alemão. “Pedagogia do oprimido”, sua obra mais conhecida, já foi traduzido em 17 idiomas. Devido à censura do regime militar, a primeira versão em livro do manuscrito de 1968 saiu em 1970 em inglês e espanhol, mas só ficou disponível no Brasil quatro anos depois.

Em 1993, um grupo de educadores, sindicalistas, dirigentes de associações e organizações de diversas áreas apresentaram oficialmente o nome dele ao Comitê que outorga o Prêmio Nobel da Paz, na Suécia.

Em julho daquele ano, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) aprovou uma moção, durante a sua 45ª Reunião Anual, realizada no Recife, na UFPE, apoiando a indicação. A moção afirmava que a iniciativa de premiação ao educador seria o reconhecimento oficial ao seu projeto pedagógico que ganhou o mundo.

A nova edição do Jornal da Ciência é dedicada à educação em homenagem ao centenário de nascimento de Paulo Freire. Sobre ele, traz um pouco mais da história, depoimentos de educadores e familiares. Sobre educação, são várias abordagens que mostram os enormes desafios criados pelos cortes orçamentários, a política de cotas e a pandemia do coronavírus.


Baixe a nova edição do JC e boa leitura!


Fonte: Publicado no Jornal da Ciência 


sexta-feira, 26 de março de 2021

Economist: Bolsonaro é ameaça à saúde dos brasileiros e ao mundo

247 - A revista inglesa The Economist publicou um texto em sua mais recente edição condenando a má gestão da pandemia da Covid-19 por parte do governo Bolsonaro. 

"A seriedade, assim como os bloqueadores musculares, está em falta", diz o texto, que cita os diversos momentos onde o presidente defendeu tratamentos sem comprovação científica, protestou contra bloqueios e tentou impedir a divulgação de dados sobre a pandemia.

Bolsonaro é uma "ameaça à saúde dos brasileiros": "Em 23 de março, quando o número de mortes diárias atingiu o recorde de 3.158, Bolsonaro foi à televisão para se gabar do progresso da vacinação no Brasil. No entanto, enquanto o distanciamento social for necessário, o presidente continuará sendo uma ameaça à saúde dos brasileiros. Ele entrou com ações no Supremo Tribunal Federal contra três estados, incluindo a Bahia, que reforçaram os bloqueios".

A revista destaca ainda o avanço da variante brasileira P1, que é até duas vezes mais transmissível e reinfecta de 25 a 61% daqueles que tiveram Covid-19.

E conclui: "Jair Bolsonaro tem muito a responder. Suas ações são ruins para o Brasil - e para o mundo".




domingo, 7 de março de 2021

O Brasil do mito é maravilhoso! Quem é você pra dizer o contrário?, por Henrique Rodrigues

Silêncio ensurdecedor nos quartéis. Só se ouvem o estalar do carvão nas churrasqueiras, queimando a picanha, o estampido da Heineken gelada trincando e o glóc-glóc do lambuzante leite condensado

Foto: Presidência da República

É tão bonito ver um homem simples, que fala a língua do povo, chefiando o Brasil. Suas falas toscas, cheias de anacolutos ininteligíveis, e a gargalhada gostosa ao final. Espirituoso, ele sempre faz uma piada com os mortos da devastadora epidemia. É um cristal de simplicidade no coração do Planalto.

Nem parece que as acusações de rachadinha e de empregados fantasmas vêm de quase 30 anos. Que ele foi o deputado que mais consumiu gasolina na história, abastecendo 2.831 litros de combustível só em novembro de 2006, de acordo com a Agência Sportlight. O mito devia estar participando de uma expedição ao Ártico em busca de uma jazida de nióbio. De carro.

Mas é tocante mesmo a simplicidade do homem que, com casa própria em Brasília, embolsou por décadas R$ 4.253 mensais de auxílio moradia, admitindo em entrevista que usava o dinheiro irregular para pagar prostitutas (“comer gente”).

E o filhão tá de casa nova. É a glória e o júbilo dos que trabalham. Recompensa pelos feitos profissionais inigualáveis e pelas conquistas realizadas em nome do Brasil e do povo brasileiro. Claro que, dos R$ 6 milhões pagos na luxuosíssima mansão, uma parcela veio da mais bem sucedida lojinha de chocolates do mundo.

De 1991 a 2019, dados mostram 39 funcionários nomeados pelo clã com indícios de serem fantasmas, o que custou R$ 16,7 milhões aos cofres públicos no período, segundo reportagem da Revista Época. Eu sei que isso é claramente uma ação política da família para combater o desemprego, gerando trabalho e renda.

E a rapaziada que lucrou R$ 26 milhões em poucas horas com a informação privilegiada sobre a saída do presidente da Petrobras, hein? Os caras são traders, meus nobres. Gente bem informada, que têm ouvidos dentro do gabinete presidencial, mas sem qualquer vínculo com os ocupantes.

Sem falar que nossos bravos e intrépidos militares jamais deixariam a pátria desamparada, lançada à própria sorte nas mãos de uma quadrilha de psicopatas que infiltrou gente em todas as esferas da República.

Eles estão sempre alertas.

Selva!

Por ora, não há sinais de qualquer irregularidade no horizonte.

Silêncio ensurdecedor nos quartéis. Só se ouvem o estalar do carvão nas churrasqueiras, queimando a picanha, o estampido da Heineken gelada trincando e o glóc-glóc do lambuzante leite condensado.

Os decrépitos marechais e comodoros banqueteiros são o orgulho da pátria, com seus jipes sucateados e medalhinhas conquistadas nas gincanas da juventude. Sincronizados como relógios suíços, intimidam o inimigo com seus devastadores obuses de chantilly, paçoca e lombo gordo de bacalhau.

São tempos de paz, meus caros. Tudo corre dentro da mais absoluta normalidade. O Brasil nos trilhos é também o Brasil da moralidade, do respeito ao erário e do equilíbrio de um estadista único.

O gigante está de volta à decência simplista de homens austeros e de disciplina castrense.

Que glória!

[Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum]

*Jornalista e professor de Literatura Brasileira



quarta-feira, 3 de março de 2021

A era do assassinato social

Não é negligência, nem fracasso. É um crime; escolha consciente de uma oligarquia global movida por ética de narcisismo e indiferença. A opção é a revolta – não só pelo que pode realizar, mas pelo que nos permite ser. Nesse devir, há esperança

Por Chris Hedges, no ScheerPost |Tradução: Simone Paz | Ilustração: Mr. Fish

Os dois milhões de mortes — resultado de uma péssima gestão da pandemia global pela elite governante –, estão prestes a ser ofuscados pelo que vem a caminho. A catástrofe global que nos espera, já inserida no ecossistema devido ao nosso fracasso em restringir o uso de combustíveis fósseis e da pecuária industrial, pressagia novas pandemias mais mortais, migrações em massa de bilhões de pessoas desesperadas, queda na produção das safras, fome geral e o colapso dos sistemas

A ciência que vem elucidando essa morte social é conhecida pelas elites dominantes. A ciência que nos alertou sobre esta pandemia, e sobre as outras que virão, também é conhecida pelas elites governantes. Assim como a ciência que denunciou que o fracasso em deter as emissões de carbono levará a uma crise climática e, em última instância, à extinção da espécie humana e da maioria das outras espécies, é conhecida pelas elites dominantes. Elas não podem alegar ignorância. Apenas indiferença.

Os fatos são incontestáveis. Cada uma das últimas quatro décadas foi mais quente do que a anterior. Em 2018, o Painel Internacional das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas divulgou um relatório especial sobre os efeitos sistêmicos de um aumento de 1,5ºC nas temperaturas. Trata-se de uma leitura muito sombria. O aumento vertiginoso da temperatura — já estamos a 1,2ºC acima dos níveis pré-industriais — é um fato real no sistema, o que significa que mesmo se interrompêssemos todas as emissões de carbono hoje, ainda enfrentaríamos uma catástrofe. Qualquer coisa acima de um aumento de temperatura de 1,5ºC tornará a Terra insuportável. Espera-se que o gelo do Ártico derreta junto com a camada de gelo da Groenlândia, independentemente de quanto reduzirmos as emissões de carbono. Uma elevação do nível do mar em sete metros ocorrerá assim que o gelo terminar de derreter; isso significa que todas as cidades e vilas costeiras ao nível do mar terão que ser evacuadas.

Roger Hallam, cofundador do Extinction Rebellion, cujos atos não-violentos de desobediência civil em massa oferecem a última e melhor chance de nos salvarmos, explica a questão neste vídeo:[https://youtu.be/C63FNN_o6Wc]


À medida em que a crise climática se agrave, as restrições políticas irão piorando, dificultando a resistência pública. Ainda não vivemos no estado orwelliano brutal que começa a aparecer no horizonte, onde todos os dissidentes sofrerão o destino de Julian Assange. Mas esse estado não está longe. Temos que agir agora.

Apesar do acelerado e tangível colapso ecológico, as elites dominantes nos apaziguam, seja com gestos sem sentido ou através da negação. Eles são os arquitetos do assassinato social.

O assassinato social, como Friedrich Engels observou em seu livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” — escrito em 1845 e uma das obras mais importantes da história social — é intrínseco ao sistema capitalista. As elites governantes, escreve Engels, aquelas que detêm “controle social e político”, estavam cientes de que as duras condições de trabalho e de vida durante a revolução industrial condenavam os trabalhadores a “uma morte prematura e não natural”:

“Quando um indivíduo ocasiona danos físicos a outro, resultando em morte, chamamos o ato de homicídio culposo; quando o agressor sabe de antemão que o ferimento será fatal, chamamos de assassinato. Mas quando a sociedade coloca centenas de proletários em tal posição de modo que eles inevitavelmente se deparem com uma morte muito precoce e não natural, uma morte que é tão violenta quanto aquela ocasionada por uma espada ou bala; quando priva milhares do essencial para a vida, coloca-os em condições em que não podem viver — obriga-os, através do forte poder da lei, a permanecer em tais condições até que a morte vença, feito consequência inevitável — ou seja, quando ela sabe que esses milhares de vítimas vão perecer e, ainda assim, permite que permaneçam nessas condições, então sua intenção é a de assassinar, assim como quando um indivíduo sozinho comete assassinato; mas torna-se um homicídio disfarçado, malicioso, um homicídio contra o qual ninguém se pode defender, que não parece o que é, porque ninguém vê o assassino, porque a morte da vítima parece natural, pois o crime é mais por omissão do que por cometimento. Mas não deixa de ser assassinato”. — Friedrich Engels, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”

A classe dominante utiliza grandes quantidades de recursos para mascarar esse assassinato social. Ela controla a narrativa na imprensa. Ela falsifica a ciência e os dados, como a indústria de combustíveis fósseis tem feito há décadas. Ela cria comitês, comissões e organismos internacionais, como as cúpulas do clima da ONU, para fingir que está lidando com o problema. Ou nega a existência do problema, apesar das drásticas mudanças nos padrões climáticos.

Faz tempo que os cientistas vêm alertando que, à medida que as temperaturas globais subirem, desencadeando o aumento das precipitações e das ondas de calor em muitas partes do mundo, as doenças infecciosas disseminadas por animais passarão a afetar as populações em qualquer época do ano, e se expandirão para as regiões do norte. Pandemias como a do HIV/AIDS, que matou aproximadamente 36 milhões de pessoas; a gripe asiática, que matou entre um e quatro milhões; e a COVID-19, que já matou mais de 2,5 milhões se espalharão pelo mundo com cepas cada vez mais virulentas, sofrendo mutações constantes, para além do nosso controle. O uso indevido de antibióticos na indústria da carne, que responde por 80% de todo o uso de antibióticos, produziu cepas de bactérias que se tornaram resistentes, e portanto, fatais. Uma versão moderna da Peste Negra, que no século 14 matou entre 75 e 200 milhões de pessoas, eliminando talvez metade da população da Europa, é praticamente inevitável, enquanto as indústrias farmacêutica e médica estiverem configuradas para ganhar dinheiro em vez de proteger e salvar vidas.

Não ha’sequer infraestrutura para produzir e distribuir as vacinas de maneira eficiente, porque o lucro fica acima da saúde. E as populações no Sul global estão, como sempre, abandonadas, como se as doenças que as matam nunca fossem nos alcançar. A decisão de Israel de distribuir vacinas contra a Covid-19 para até 19 países, ao mesmo tempo que se recusa a vacinar os 5 milhões de palestinos que vivem sob sua ocupação, é emblemática para ilustrar a impressionante miopia da elite governante — isso para não citar a imoralidade.

Tudo isso que está em curso não é negligência. Não é inépcia. Não é uma falha da política. É um assassinato. É assassinato, porque é premeditado. É assassinato, porque foi feita uma escolha consciente pelas classes dominantes globais para extinguir a vida, em vez de protegê-la. É um assassinato porque o lucro, apesar das duras estatísticas, dos crescentes problemas climáticos e da modelagem científica, é considerado mais importante do que a vida e a sobrevivência humanas.

As elites prosperam nesse sistema, desde que cumpram com os ditames daquilo que Lewis Mumford chamou de a “megamáquina”, a convergência de ciência, economia, técnica e poder político unificados em uma estrutura burocrática e integrada, cujo único objetivo é perpetuar-se. Essa estrutura, observou Mumford, é a antítese dos “valores que melhoram a vida”. Mas desafiar a megamáquina, dar nome ao seu desejo de morte e condená-lo, envolve ser expulso de seu santuário interno. Há, sem dúvida, alguns dentro da megamáquina que temem o futuro, que talvez até fiquem horrorizados com o assassinato social, mas que não estão dispostos a perder seus empregos e sua condição social para se tornarem párias.

A enorme quantia de recursos alocados nos orçamentos militares — que nos EUA, quando somados aos custos com veteranos de guerra, somam US$ 826 bilhões por ano — são o maior exemplo de nossa loucura suicida, sintomática de toda civilização decadente, dessas que gastam seus recursos cada vez mais escassos em instituições e projetos que aceleram seu próprio declínio.

A máquina de guerra norte-americana — que responde por 38% dos gastos militares do mundo inteiro — são incapazes de combater a verdadeira crise de nossa existência. Os caças, satélites, porta-aviões, frotas de navios de guerra, submarinos nucleares, mísseis, tanques e vastos arsenais de armamento são inúteis contra as pandemias e a crise climática. A máquina de guerra nada faz para mitigar o sofrimento humano causado por ambientes degradados que adoecem e envenenam populações ou tornam a vida insustentável. A poluição do ar já mata cerca de 200 mil nore-americanos por ano, enquanto as crianças em cidades decadentes como Flint (Michigan), ficam com sequelas para o resto da vida por causa do chumbo que contamina sua água potável.

A continuação de guerras fúteis, sem fim, que custam entre US$ 5 e US$ 7 trilhões de dólares, a manutenção de cerca de 800 bases militares em mais de 70 países, junto com a fraude endêmica, o desperdício e a má gestão do Pentágono em um momento em que a sobrevivência da espécie está em jogo, tudo isso é autodestrutivo. O Pentágono gastou mais de US$ 67 bilhões só num sistema de defesa contra mísseis balísticos que poucos acreditam que funcionará de fato, além de muitos outros bilhões numa série de sistemas de armas ineficazes, incluindo o destróier Zumwalt, de US$ 22 bilhões. E, além de tudo isso, os arsenais dos EUA emitiram 1,2 bilhões de toneladas métricas em emissões de carbono entre 2001 e 2017, o dobro do que os veículos de passageiros produziram a cada ano no país.

Daqui a uma década, olharemos para trás, para a atual classe dominante global como a mais criminosa da história da humanidade, condenando deliberadamente milhões e milhões de pessoas à morte, incluindo as desta pandemia. A classe atual faz com que os excessos assassinos dos homicidas do passado pareçam irrelevantes, mesmo no caso dos europeus que cometeram o genocídio dos povos indígenas nas Américas, dos nazistas que exterminaram cerca de 12 milhões de pessoas, dos stalinistas ou da Revolução Cultural de Mao. Este é o maior crime contra a humanidade já cometido. Está sendo cometido diante de nossos olhos. E, salvo poucas exceções, estamos sendo conduzidos voluntariamente como ovelhas rumo ao abate.

Não é que a maioria das pessoas tenha fé nas elites governantes. Elas sabem que estão sendo traídas, mas sentem-se vulneráveis e com medo. Entendem que sua miséria não é reconhecida e não é importante para as elites globais, que concentram uma quantidade impressionante de riqueza e poder nas mãos de uma pequena cabala de oligarcas gananciosos.

A raiva que muitos sentem por causa de seu abandono é frequentemente expressa na forma uma solidariedade envenenada. Esta solidariedade envenenada une os marginalizados em torno de crimes de ódio, racismo, atos de vingança contra bodes expiatórios, chauvinismo religioso e étnico, e violência niilista. Promove cultos de crise, como os construídos pelos fascistas cristãos, e eleva demagogos como Donald Trump.

As divisões sociais beneficiam a classe dominante, que construiu depósitos de mídias para alimentar com pacotinhos de ódio os grupos demográficos concorrentes. Quanto maiores os antagonismos sociais, menos temem as elites. Se aqueles contagiados pela solidariedade envenenada se tornarem numericamente superiores — quase metade do eleitorado norte-americano rejeita a classe dominante tradicional e abraça teorias da conspiração e um demagogo — as elites irão acomodar uma nova configuração de poder, e isso acelerará o assassinato social.

O governo Biden não irá encarar as reformas econômicas, políticas, sociais ou ambientais de que precisamos para nos salvar. A indústria de combustíveis fósseis continuará a extrair petróleo. As guerras não vão acabar. A desigualdade social vai crescer. O controle do governo, com suas forças policiais militarizadas de ocupação interna, vigilância por atacado e perda das liberdades civis, vai se expandir. Novas pandemias, em conjunto com secas, incêndios florestais, furacões monstruosos, ondas de calor paralisantes e inundações, devastarão o país, bem como uma população sobrecarregada por um sistema de saúde com fins lucrativos que não foi projetado ou preparado para lidar com uma crise nacional de saúde.

O mal que torna possível esse assassinato social é coletivo. É perpetrado pelos burocratas e tecnocratas alienados que saem das escolas de negócios, faculdades de direito, programas de gestão e universidades de elite. Esses gerentes de sistemas realizam as tarefas incrementais para que sistemas vastos e complicados de exploração e morte funcionam. Eles coletam, armazenam e manipulam nossos dados pessoais para monopólios digitais e para o Estado de segurança e vigilância.

Eles lubrificam as rodas da ExxonMobil, British Petroleum e Goldman Sachs. Escrevem as leis aprovadas por uma classe política comprada e paga. Eles pilotam drones aéreos que aterrorizam os pobres no Afeganistão, Iraque, Síria e Paquistão. Lucram com as guerras sem fim. São os conselheiros corporativos, especialistas em relações públicas e experts em televisão que inundam as ondas eletromagnéticas com mentiras. Eles dirigem os bancos. Eles supervisionam as prisões. Eles emitem os formulários. Eles processam os papéis. Eles negam vale-refeição e cobertura médica para alguns e benefícios de desemprego para outros. Eles realizam os despejos e fazem cumprir as leis e os regulamentos. Eles não fazem perguntas. Eles vivem em um vácuo intelectual, um mundo de minúcias embrutecedoras. Eles são “os homens vazios”, “os homens de pelúcia”, de T.S. Eliot. “Silhueta sem forma, sombra sem cor”, diz o poeta. “Força paralisada, gesto sem movimento.”

Esses administradores de sistema possibilitaram os genocídios do passado, desde o extermínio de nativos americanos até a matança dos armênios pelos turcos, ao Holocausto nazista e às liquidações de Stalin. Eles mantiveram os trens funcionando. Eles preencheram a papelada. Eles apreenderam a propriedade e confiscaram as contas bancárias. Eles fizeram o processamento. Eles racionaram a comida. Eles administraram os campos de concentração e as câmaras de gás. Eles impuseram a lei. Eles fizeram seu trabalho.

Esses gerentes de sistemas, praticamente desprovidos de educação em qualquer área, com exceção de sua minúscula especialidade técnica, carecem de linguagem e autonomia moral para questionar as suposições ou estruturas reinantes.

Hannah Arendt em “Eichmann in Jerusalem” escreve que Adolf Eichmann foi motivado por “uma extraordinária diligência em cultivar seu progresso pessoal”. Ele se juntou ao Partido Nazista porque era uma boa mudança de carreira. Arendt continua:

O problema com Eichmann era precisamente que muitos outros eram como ele, e que muitos não eram pervertidos nem sádicos, que eram, e ainda são, terrível e assombrosamente normais.

Quanto mais o ouvíssemos, mais óbvia ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente ligada a uma incapacidade de pensar, quer dizer, de pensar desde o ponto de vista de outra pessoa. Nenhuma comunicação foi possível com ele, não porque ele mentisse, mas porque ele estava cercado pela mais confiável de todas as proteções contra as palavras e a presença de outras pessoas e, portanto, contra a realidade como tal.”
— Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém”

O romancista russo Vasily Grossman, em seu livro “Forever Flowing” (“Fluindo para Sempre”), observou que “o novo Estado não exigia santos apóstolos, fanáticos, construtores inspirados, discípulos fiéis nem devotos. O novo Estado não exigia sequer empregados — apenas escrivãos”. Essa ignorância metafísica é alimento para o assassinato social.

Não somos capazes de absorver emocionalmente a magnitude da catástrofe que se aproxima e, portanto, não agimos.

No documentário Shoah, de Claude Lanzmann, sobre o Holocausto, ele entrevista Filip Müller, um judeu tcheco que sobreviveu ao extermínio em Auschwitz como membro do “grupo especial.”

“Um dia, em 1943, quando eu já estava no Crematório 5, chegou um trem de Bialystok. Um prisioneiro do “grupo especial” viu uma mulher que era esposa de um amigo dele, no vestiário. Ele foi direto a ela e lhe disse: ‘Você vai ser exterminada. Em três horas, você será cinzas’. A mulher acreditou nele porque o conhecia. Ela correu e avisou às outras mulheres. ‘Nós vamos ser mortos. Vão nos dar gás’. Mães carregando seus filhos nos ombros não queriam ouvir isso. Resolveram que a mulher era louca e a expulsaram. Então, ela foi até os homens. Sem sucesso. Não que eles não acreditassem nela. Eles tinham ouvido rumores no gueto de Bialystok, ou em Grodno, e em outros lugares. Mas quem queria ouvir isso? Quando percebeu que ninguém iria ouvi-la, ela arranhou todo o seu rosto. Desesperada. Em choque. E começou a gritar: ‘Como resistimos?’ Por que, se esse assassinato social é inevitável, como acredito que seja, nós ao menos não revidamos? Por que não ceder ao cinismo e ao desespero? Por que não nos retiramos e gastamos nossas vidas tentando saciar nossas necessidades e desejos pessoais? Somos todos cúmplices, paralisados ​​pela força avassaladora da megamáquina e presos à sua energia destrutiva por meio de nossos mini sistemas integrados ao seu maquinário maciço”. —
— Filip Müller a Claude Lanzmann, em “Shoah”

No entanto, deixar de agir — e isso envolve realizar atos de desobediência civil sustentada e não violenta, em massa, numa tentativa de esmagar a megamáquina — é morte espiritual. É sucumbir ao cinismo, hedonismo e entorpecimento que transformou em engrenagens humanas aqueles gerentes de sistemas e tecnocratas que orquestram o assassinato social. É entregar nossa humanidade. É nos tornarmos cúmplices.

Albert Camus escreve que “uma das únicas posições filosóficas coerentes é a revolta. É um confronto constante entre o homem e sua obscuridade. Não é aspiração, pois é desprovida de esperança. Essa revolta é a certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que costuma acompanhá-la”.

“Um homem vivo pode ser escravizado e reduzido à condição histórica de objeto”, alerta Camus. “Mas se morre recusando-se a ser escravizado, ele reafirma a existência de outro tipo de natureza humana que se recusa a ser classificada como um objeto.”

A capacidade de exercer a autonomia moral, de se recusar a cooperar, de destruir a megamáquina, oferece-nos a única possibilidade que resta à liberdade pessoal e a uma vida com sentido. A rebelião é sua própria justificativa. Ela corrói, ainda que imperceptivelmente, as estruturas de opressão. Ela sustenta as brasas da empatia e da compaixão, bem como da justiça. Essas brasas não são insignificantes. Elas mantêm viva a capacidade de sermos humanos. Elas mantêm viva a possibilidade, por mais fraca que seja, de que as forças que orquestram nosso assassinato social possam ser interrompidas. A rebelião deve ser abraçada, finalmente, não apenas pelo que ela vai realizar, mas pelo que ela permite nos tornarmos. Nesse devir, encontramos a esperança.

*Chris Hedges, jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo "Days of Destruction, Days of Revolt", em parceria com o cartunista Joe Sacco





Coronavírus: "Todos vão sofrer, mas não morrer", diz Vecina sobre medidas restritivas

Gonzalo Vecina faz alerta para a população "entender e se comportar de forma adequada", para controlar o aumento de casos e mortes de covid-19 no país

Do UOL, em São Paulo
Gonzalo Vecina diz que medidas restritivas, como a fase vermelha do Plano SP, são necessárias (Imagem: VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO CONTEÚDO/AE)

O ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Gonzalo Vecina disse que as medidas restritivas impostas por governadores e prefeitos são a única forma de o Brasil controlar o aumento de casos e mortes de covid-19.

Em entrevista para a GloboNews, o médico sanitarista disse que a paralisação da economia fará as pessoas sofrerem, mas irá preservar suas vidas. A partir do próximo sábado, o maior estado do Brasil, São Paulo, entrará na fase vermelha do plano de reabertura da economia por duas semanas, a mais restritiva.

"Certamente deve ter as variantes que devem estar aumentando o número de casos, mas não existe como diminuir sem ser paralisando a economia, infelizmente. Todos vão sofrer, mas não vão morrer. Essa é a diferença: sofrer e morrer, não estar aqui amanhã. A população tem que entender e se comportar de forma adequada, se não vamos ter mortes sem controle", disse.

Ontem, o Brasil teve o maior número de mortes diárias por covid-19 desde o início da pandemia, com 1.726 óbitos registrados em 24 horas. Para Gonzalo Vecina, o aumento é reflexo do relaxamento do distanciamento social.

"O aumento do número de casos vem do aumento do número de encontros. Quanto mais andamos fora de casa, quanto mais fazemos aglomeração, quanto mais não usamos máscaras, mais casos vamos ter. Não tem outro jeito de controlar a não ser fechando", disse

Para o ex-presidente da Anvisa, os governadores estão tendo que tomar medidas "contra a vontade popular" para proteger vidas, para ele a prioridade número um em uma pandemia.

"Nós temos que proteger a vida. Se não protegermos a vida, não adianta atravessarmos a pandemia, porque estaremos mortos do lado de lá. Não todos, mas uma parte. Temos que criar condições para esperar as vacinas e isso significa reduzir o número de casos", disse.




Miguel Nicolelis: Brasil vai se transformar no maior reservatório biológico do coronavírus no mundo

Para o neurocientista, a falha do governo Bolsonaro em conter a pandemia da Covid-19 ameaça não somente os brasileiros, mas também o restante do mundo. Segundo ele, o risco de novas variantes mais letais emergirem deve crescer, e a comunidade internacional deve tomar medidas efetivas contra Bolsonaro
Miguel Nicolelis e cemitério em Manaus (AM) em meio à pandemia de coronavírus (Foto: Brasil 247 | REUTERS/Bruno Kelly)

247 - O cientista Miguel Nicolelis, um dos mais renomados neurocientistas do mundo e atualmente grande especialista da pandemia do coronavírus, afirmou que a falha do governo Bolsonaro em conter a pandemia da Covid-19 transforma o Brasil em um "laboratório a céu aberto" para o coronavírus se proliferar e eventualmente mutar em novas variantes, ameaçando a volta à normalidade ao redor do mundo.

As declarações foram feitas em entrevista ao jornal britânico The Guardian, que deu destaque de capa à reportagem em seu portal. “O Brasil é um laboratório a céu aberto para o vírus se proliferar e eventualmente criar mutações mais letais”, disse, alertando que agora não se trata mais de um problema nacional."”Isso é sobre o mundo. É global", acrescentou.

Segundo o especialista, a situação brasileira irá chocar o mundo, que se prepara para voltar à normalidade: "Minha previsão é que se o mundo ficou chocado com o que aconteceu em Bérgamo, na Itália, e com o que aconteceu em Manaus há algumas semanas, ficará ainda mais chocado com o resto do Brasil se nada for feito". Ele ainda previu que, “se São Paulo capital colapsar, Manaus vai ser história da carochinha”.

Nicolelis instou a comunidade internacional a tomar medidas efetivas contra o governo Bolsonaro, descrito por ele como um "líder tão obtuso, tão atrasado". "O mundo deve se manifestar com veemência sobre os riscos que o Brasil representa para o combate à pandemia", completou.

Horas depois, em entrevista à TV Democracia, no Youtube, Nicolelis acrescentou que “até a Índia, que tinha chances de ter uma explosão [de casos], conseguiu debelar. E agora o mundo está preocupado porque os Estados Unidos estão com queda no número de mortes, e infelizmente o Brasil vai se transformando no pária mundial”.

“O Brasil está a dias de um colapso sanitário nacional e a maior tragédia humanitária de sua história”, ressaltou, prevendo que o País chegará muito em breve aos 2 mil óbitos diários - hoje o Ministério da Saúde já confirmou 1.910 - e também muito rapidamente aos 3 mil, se não se fechar completamente por ao menos 15 dias.



"Enoja", diz deputado sobre almoço de Bolsonaro com “leitão e gargalhadas”

"Não é tanto pelo leitão, mas pela descontração festiva da mesa farta de altas gargalhadas no mesmo dia em que os cemitérios brasileiros mais receberam corpos vitimados pelo vírus. É isto que choca. É isto que afronta. É isto que enoja", disse Fabio Trad (PSD-MS)

(Foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados)

247 - Crítico do governo Jair Bolsonaro, o deputado Fábio Trad (PSD-MS) usou as redes sociais para comentar o almoço organizado por Bolsonaro, nessa terça-feira (2), no Palácio do Planalto, em meio ao avanço da pandemia do novo coronavírus.

Trad afirmou que a atitude de Bolsonaro "enoja", se referindo ao comportamento de Bolsonaro que, segundo parlamentares que participaram do encontro, era “alegre” e “bem descontraído”.

No dia do almoço, nesta terça, o Brasil registrou 1.726 mortes pela Covid-19, o maior número diário de vidas perdidas de toda a pandemia até agora.

"Não é tanto pelo leitão, mas pela descontração festiva da mesa farta de altas gargalhadas no mesmo dia em que os cemitérios brasileiros mais receberam corpos vitimados pelo vírus. É isto que choca. É isto que afronta. É isto que enoja", escreveu o parlamentar.

O cardápio do almoço preparado pelo deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) teve leitão, feijão tropeiro, linguiça e carne moída com quiabo.

O encontro de Bolsonaro aconteceu no mesmo dia em que o Brasil atingiu o pico de mortes por coronavírus, com 1726 mortes.




***

Retrato da 'pátria amada brasil': Enquanto faltam alimentos na mesa do povo, com o país em meio ao caos econômico, social e sanitário, o agravamento da pandemia, homens sórdidos, zombam, gargalham, festejam, como se nada disso estivesse acontecendo, e seguem desfrutando suntuosos banquetes, privilégios e regalias, às custas do dinheiro público, revelando todo o desprezo pela população. Lamentável!

Mercadante: novamente autoritarismo de Bolsonaro ataca a educação

"Ao tentar reprimir a liberdade de expressão e de opinião no ambiente universitário, Bolsonaro recorre a métodos típicos de estados exceção."

247 - O ex-ministro e presidente da Fundação Perseu Abramo, Aloizio Mercadante, denuncia mais uma ação autoritária do governo Bolsonaro, que desta vez tenta intimidar o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, ao proibir “atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino”.

O Ministério da Educação, por meio da Rede de Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), encaminhou no último dia 7 de fevereiro um ofício em que pede a tomada de providências com objetivo de “prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino".

O processo na CGU contra o professor foi motivado por uma representação do deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS). 

Leia a íntegra da nota assinada por Mercadante e publicada nesta quarta-feira (3):

Novamente a truculência e o autoritarismo de Bolsonaro atacam a educação brasileira. Desta vez, tenta intimidar o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, por meio de Termo de Ajuste de Conduta em razão de suposta “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao presidente da República, quando se pronunciava como reitor, durante transmissão ao vivo de live nos canais oficiais do YouTube e do Facebook da Instituição”.

Hallal entrou na mira de Bolsonaro em razão das pesquisas que conduziu sobre a pandemia de coronavírus e por suas críticas à inexpressiva atuação do governo federal no combate à covid-19. É o ex-reitor que coordena a pesquisa Epicovid, referência no mapeamento da doença em todo o país.

Como é de conhecimento público, Bolsonaro é um negacionista, que se posiciona cotidianamente contra as medidas prudenciais de distanciamento social, contra o uso de máscaras e até mesmo contra o uso de algumas vacinas, além de promover aglomerações e o uso de remédios sem comprovação da medicina. Para Bolsonaro, combater o obscurantismo e o negacionismo com a luz da ciência passou a ser uma “manifestação desrespeitosa e de desapreço direcionada ao presidente da República”.

Ao tentar reprimir a liberdade de expressão e de opinião no ambiente universitário, Bolsonaro recorre a métodos típicos de estados exceção. É inevitável a comprovação dessa tentativa de censura de Bolsonaro com o Decreto-Lei nº 477 de 1969, que, durante a ditadura militar, controlou e reprimiu as atividades comunitárias nas universidades.

Tem sido uma triste marca do governo Bolsonaro o patrocínio, inclusive com indícios de práticas ilícitas, de campanhas do ódio e de difamação. Também ataques e agressões contra jornalistas e contra a imprensa  e a tentativa de tutela sobre a justiça, especialmente com avanços antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal. 

São esses tentáculos autoritários que Bolsonaro tenta agora estender sobre a educação, depois de não ter conseguido aprovar o nefasto projeto da Escola Sem Partido. Esse constante flerte de Bolsonaro com o autoritarismo também pode ser constatado na nomeação de 22 reitores biônicos, impostos pelo governo, desrespeitando o resultado das eleições universidades, inclusive na UFPel. 

Volto a reiterar que o ambiente da universidade deve respirar liberdade, respeitar a pluralidade de pensamentos, assegurar espaço para todas as correntes do pensamento e o contraditório. Temos que resistir às constantes tentativas de tutela sobre a educação, como a recomendação do Ministério Público Federal (MPF) em Goiás, em junho do ano passado, para a criação de um canal de denúncias nas universidades sobre a realização de atos de natureza político-partidária, sejam eles favoráveis ou contrários ao governo, mediante o uso de prédios, equipamentos, redes de comunicação, imagem, símbolos institucionais etc.

Com base nessa recomendação do MPF, o governo Bolsonaro tomou outra medida grave contra a educação. É que Ministério da Educação encaminhou para a rede federal de ensino superior um ofício em que pede a tomada de providências com objetivo de “prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino", mais uma tentativa autoritária e inaceitável de amordaçar a comunidade acadêmica e de institucionalizar a censura nas universidades.

Por isso, precisamos desencadear uma ampla mobilização em defesa do ex-reitor da UFPel e da liberdade em nossas universidades. Não podemos aceitar esse tipo de ameaça, intimidação e constrangimento, que já havia ocorrido recentemente, quando o Mendonça Filho queria proibir cursos que tratassem do golpe de 2016. Deixo minha solidariedade ao ex-reitor e vamos à luta!


Fonte: Publicado no Brasil 247



terça-feira, 2 de março de 2021

Toque de recolher e fechamento de bares e festas: veja as novas medidas de prevenção contra a Covid-19 no Pará

Entre as principais medidas apresentadas estão o toque de recolher entre 22 horas e 5 da manhã

Por Igor Wilson | Notícias Pará
(Foto: Reprodução)

O Governo do Pará anunciou novas medidas de prevenção para tentar conter o avanço da covid-19 no Estado.  Acompanhado dos prefeitos de Belém, Ananindeua, Marituba e Santa Bárbara, além de secretários de saúde dos municípios da região metropolitana, Helder Barbalho realizou uma transmissão na noite desta terça-feira (2) para anunciar as medidas, definidas durante reunião por vídeoconferência entre o governador e os 144 prefeitos do Estado na manhã de hoje.

Entre as principais medidas apresentadas estão o toque de recolher entre 22 horas e 5 da manhã; o fechamento de bares e festas a partir das 18h; venda de bebida alcoólica somente até as 18h, além de mudanças no bandeiramento de todo Estado: todas passarão para cor vermelha, de alerta máximo. O governador lembrou que esta segunda onda está muito mais grave que a primeira e que as medidas são necessárias neste momento.

"O número de mortes que o país atingiu hoje preocupa a todos os brasileiros. São mais de 1.700 vidas perdidas em um único dia. Devemos estar atentos para a gravidade do momento em que estamos vivendo. Temos a obrigação de evitar o caos na saúde pública no estado do Pará. E por essa razão estamos divulgando a partir de amanhã o novo decreto de abrangência estadual", disse o governador na transmissão. 
Helder debateu com os prefeitos o conteúdo do novo decreto com medidas para conter o avanço da doença e diminuir a pressão sobre a Rede Pública de Saúde. Quase 80% dos leitos de UTI para adultos estão ocupados neste momento. Em Belém a situação é pior: 94% dos leitos clínicos estão ocupados. O objetivo é evitar um colapso a exemplo do que está acontecendo em estados como Amazonas e Santa Catarina. 

"Primeiramente elevaremos o banderiamento para bandeira vermelha em todo o território. A proibição de manifestações, carreatas e toda aglomeração com mais de dez pessoas em locais públicos". Helder também explicou as novas medidas para práticas esportivas e funcionamentos de estabelecimentos.

"Voltaremos a restrição de práticas esportivas, serão permitidas até duas pessoas no máximo. Sobre os estabelecimentos, ficam autorizados a funcionar restaurantes, lanchonetes e estabelecimentos afins, respeitando a lotação máxima de 50% de sua capacidade até o horário de 18h".

O decreto será publicado nesta quarta-feira (3) e, inicialmente, deverá durar por sete dias, mas será avaliado.

CONFIRA AS NOVAS MEDIDAS:

- Toque de recolher das 22h às 5h

- Funcionamento de bares, lanchonetes, restaurantes e afins até às18h e com 50% da capacidade

- Proibição de venda de bebida alcoólica após as 18h

- Prática esportiva permitida com no máximo duas pessoas

- Bandeiramento vermelho em todo o Estado

- Proibição de manifestações e aglomerações com mais de 10 pessoas em locais públicos



Coronavírus: Brasil apostou em estratégia 'genocida' para combater covid-19, diz Atila Iamarino

Por Luis Barrucho - @luisbarrucho
Da BBC News Brasil em Londres
Doutor em microbiologia pela USP, Iamarino estuda a disseminação de vírus e a forma como evoluem. (Foto: Reprodução)

O Brasil adotou uma estratégia "genocida" ao apostar na chamada imunidade de rebanho para combater a covid-19, o que possibilitou o surgimento de uma nova variante mais perigosa e que vem causando mais mortes, diz à BBC News Brasil o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino.

A imunidade de grupo (também chamada imunidade de rebanho) ocorre quando uma parcela grande o suficiente da população desenvolver uma defesa imunológica contra o coronavírus. Nesse cenário, a doença não consegue se espalhar porque a maioria das pessoas é imune e ela passa a ter grande dificuldade para encontrar alguém suscetível.

O problema dessa estratégia, apontado desde o início por especialistas, é que ela teria um enorme custo humano — muitas mortes aconteceriam até que uma eventual imunidade de rebanho fosse alcançada. Outra questão importante nesse sentido é que não se sabe por quanto tempo a imunidade de alguém infectado pelo Sars-CoV-2 dura, se ela é de curto, médio ou longo prazo.

Em meio ao que especialistas consideram o pior momento da pandemia no país, Iamarino defende a adoção de um confinamento mais rígido e a aceleração da vacinação.

Ele critica ainda o governo federal, que acusa de ter "sabotado" Estados e municípios.

E vaticina que uma catástrofe pode estar prestes a acontecer se o que vimos em Manaus se repetir no restante do Brasil.

Doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), Iamarino concluiu dois pós-doutorados estudando a disseminação (ele prefere o termo "espalhamento") dos vírus e a forma como esses organismos evoluem. Um desses pós-doutorados foi na própria USP, e o outro na Universidade Yale, nos Estados Unidos.

Em sua carreira, o pesquisador de 37 anos estudou vírus como ebola e HIV.

Iamarino se tornou conhecido por sua participação no canal de YouTube do Nerdologia, um dos maiores do país. Desde o início da pandemia, tem feito transmissões ao vivo sobre o novo coronavírus, com milhões de visualizações.

Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

BBC News Brasil - O Brasil parece viver o pior momento da pandemia, tendo registrado um recorde na média móvel de mortes. A que se deve isso?

Atila Iamarino - Sabemos que há um componente sazonal no novo coronavírus, com mais casos no inverno do que no verão. Portanto, o Brasil está muito adiantado no aumento de casos — isso só deveria estar acontecendo daqui a alguns meses. Mas por que os casos estão subindo tão cedo e tão rápido?

A resposta se deve a uma combinação de fatores. De um lado, houve um movimento de abertura no fim do ano passado, com mais pessoas circulando sem restrições. De outro — e que considero o principal fator — temos a variante P.1, inicialmente observada em Manaus.

Estudos recentes apontam que se trata de uma cepa mais transmissível e que "dribla" o sistema imunológico, reinfectando quem já se curou.

Quando falamos de vírus, é natural que eles sofram mutações e se tornem mais transmissíveis. O que não precisa ser um processo natural é termos linhagens que escapam da imunidade. Essas linhagens só serão selecionadas quando o vírus continua circulando na presença de pessoas que já tiveram o vírus.

Foi o que aconteceu no Brasil e na África do Sul.

Nesse sentido, a nossa variante é fruto direto da estratégia genocida do Brasil de contar com as pessoas circulando livremente e construindo imunidade. Não é por acaso que surgiu aqui uma das variantes mais perigosas, demonstradamente perigosa.

BBC News Brasil - O que as autoridades deveriam ter feito?

Iamarino - O Brasil deveria ter se preparado melhor. Em vez disso, adotamos uma estratégia que cultivou um monstro e que, ao que tudo indica, está causando um surto de casos fora de temporada.

De fato, os hábitos sociais permitiram uma maior circulação do vírus. Apesar de estarmos em um período de baixa transmissão de doenças respiratórias, várias cidades do país já registravam alta ocupação de leitos de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo).

Em vez de decretar um lockdown para restringir a movimentação das pessoas e conter o vírus, a aposta do governo para prover o mínimo de dignidade humana foi e continua sendo criar mais leitos.

Isso é jogar nos profissionais de saúde toda a responsabilidade de resolver o problema. Não se resolvem mortes no trânsito criando mais leitos UTI, mas sim com leis de trânsito. O mesmo se aplica à covid-19. É preciso diminuir o número de casos.

Mas o Ministério da Saúde não faz campanha para o uso de máscara e distanciamento social. Tampouco reconhece o lockdown como medida necessária para conter o avanço da pandemia. Falta coordenação federal para ações locais.

Temos agora um país economicamente pior, socialmente mais cansado e com profissionais de saúde exaustos, explorados e usados da pior maneira possível.

BBC News Brasil - O que nos resta fazer, então?

Iamarino - O que o restante do mundo fez: decretar um lockdown mais rígido e correr com a vacinação. Isso é o mínimo. O problema é essa falta de coordenação a nível federal.

De que adianta um município ou um Estado decretar um confinamento se as pessoas de municípios ou Estados vizinhos continuarem circulando? Isso faz com que a localidade tenha todo o prejuízo econômico e político de confinar sua população, mas sem o sucesso que poderia ter se essa ação fosse coordenada. A falsa impressão é que o esforço não funciona, quando, na verdade, ele está sendo sabotado a nível federal.

Por isso, digo que temos dois inimigos para enfrentar no Brasil. Um é a nova variante e o outro é a falta de estratégia do governo federal.

Como resultado, temos pronta a receita para que mais variantes perigosas surjam.

BBC News Brasil - Se nada for feito, o que acontecer?

Iamarino - Nossa estratégia genocida já causou mais de 250 mil mortes. Manaus (AM) e Araraquara (SP) já registraram mais mortes no início deste ano do que durante todo o ano passado. Se isso se repetir no país todo, vai ser um outro massacre.

Mas o principal problema desse tipo de estratégia é que estamos dando ao vírus a oportunidade de sofrer novas mutações, mais perigosas. Eventualmente, as vacinas podem não ser mais eficazes — e, se esse cenário se concretizar, poderemos não ter mais solução.

O Brasil criou sua própria derrota. Estamos demorando para vacinar e deixando o vírus circular livremente.

Agora, com a escassez global de vacinas, entendo que a situação esteja muito mais difícil. E estamos tentando comprar uma vacina que ainda não tem eficácia comprovada (a indiana Covaxin).

Diferentemente dos Estados Unidos, o Brasil tem capilaridade de vacinação. Há postos de saúde por todo o território nacional que podem dar vazão as doses. Mas agora faltam as doses.

BBC News Brasil - Alguns países, como Israel, já começaram a flexibilizar as regras. O Reino Unido também anunciou o afrouxamento de suas medidas. Em um contexto em que o mundo tenta retomar a normalidade, o Brasil pode se tornar uma pária internacional?

Iamarino - Eu diria que o Brasil vai continuar a pária que virou. Já não podemos viajar para a maioria dos países, nem em condição emergencial, desde antes do surgimento dessa nova variante.

Essa nova linhagem só reforçou o fechamento das fronteiras e essa situação deve permanecer daqui em diante. Se não mudarmos as condições que propiciaram o surgimento dessa variante, vamos gerar outras e estaremos sempre renovando os motivos para o mundo não receber brasileiros.

BBC News Brasil - O senhor foi duramente criticado quando, no início da pandemia, previu que o Brasil teria 1 milhão de mortos. Essa previsão nunca se concretizou. Por quê? Acredita ter se equivocado?

Iamarino - Acredito que os extremos dessas previsões continuam muito válidos. De um lado, países como Coreia do Sul, Taiwan, Austrália, etc, mostraram que o número de mortes pode ser mínimo. Do outro, a mortalidade em locais como Manaus evidenciou que o cenário mais pessimista não é fantasioso.

A capital do Amazonas tem um excesso de enterros até o mês de fevereiro de mais de 430 pessoas por 100 mil habitantes. Se extrapolarmos isso para a totalidade da população brasileira, temos 900 mil mortos.

Se os extremos continuam válidos, o meio do caminho é onde está a faixa de erro e a incerteza. Disso dependem as ações humanas. Há uma série de fatores de que não sabíamos.

Por exemplo, a eficácia das máscaras se revelou muito maior do que esperávamos, principalmente para evitar contaminados de transmitir o vírus para os outros. Tampouco sabíamos qual eficácia as medidas de confinamento teriam.

Estávamos, portanto, lidando com uma doença nova, para a qual não havia dados preliminares.

De qualquer forma, sabemos hoje que o melhor cenário é viável e existe, como observamos na Ásia. E que o pior cenário é possível, como também observamos no interior do Peru, no interior da Bolívia, em Manaus, em países que não são transparentes com os dados e em regiões onde não há estatísticas disponíveis.