Quebra da rotina pode trazer impactos
psicológicos diversos para pessoas diferentes; conheça algumas estratégias para
manter a saúde mental diante da pandemia
Você acorda, toma café, vive normalmente
sua rotina diária. Um dia, um vírus que até pouco tempo estava longe, em outro
continente, e você conhecia vagamente apenas pelos noticiários, entra na sua
casa sem bater na porta e interrompe, não apenas a sua, mas a rotina de toda
uma sociedade. Mas qual o impacto psicológico dessa quebra abrupta que a
quarentena e a pandemia trouxeram? E o mais importante: como amenizar o
problema?
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De um lado, há quem nunca foi ansioso, mas passe a ter ansiedade, insônia, reações agressivas ou se sinta desorientado; de outro, existem pessoas cujos efeitos da quarentena irão intensificar dificuldades que já estavam presentes antes – Arte sobre silhueta Flaticon e Pixabay |
Para o professor e psicanalista
Christian Ingo Lenz Dunker, do Instituto de Psicologia da USP, o momento exige
que todos reorganizem suas rotinas. “Um dos primeiros efeitos da quarentena é a
desorientação atencional. A pessoa se sente mais confusa, menos concentrada,
muito mais cansada. Ela pensa que vai trabalhar em casa e vai conseguir
descansar, mas não é isso que acontece. Porque uma série de apaziguadores que
nós temos no trabalho, como a pausa para o cafezinho ou a conversa com o
colega, são suspensos”, aponta o psicanalista.
É uma crise geral, mas é muito importante
a gente ter em mente que isso tudo vai passar. Pode demorar muito tempo, pode
demorar mais tempo do que a gente gostaria, mas vai passar”, ressalta. É como
uma guerra: uma hora termina. Dunker lembra que é uma situação que vai ter
várias fases e agora estamos apenas começando. “Ter consciência disso é muito
importante para fazer a travessia deste momento”, aponta.
Dunker destaca os possíveis efeitos da
quarentena em dois grupos de pessoas. O primeiro é de quem nunca foi ansioso,
mas passa a ter ansiedade; nunca teve insônia, mas fica com dificuldade de
dormir, apresenta reações muito agressivas ou irritadas; ou então começa a se
sentir confuso ou desorientado.
Do outro lado, estão aquelas pessoas
cujos efeitos da quarentena irão intensificar as dificuldades e fragilidades
que já estavam presentes antes. Por exemplo, para um paciente com uma
orientação paranoide (um tipo de transtorno de personalidade), é possível que a
quarentena ou incremente o sofrimento ou traga um efeito relativamente
apaziguador. Outro exemplo são as pessoas com fobia social e que diariamente
lutam para ir ao trabalho. Em casa, elas podem se ver em um ambiente mais
protegido, mais favorável.
Dunker conta que vários de seus
pacientes com algum tipo de depressão disseram a ele que agora as coisas
estavam melhores, pois antes da quarentena era muito difícil sair da cama ou de
casa e agora não precisavam mais se preocupar com isso, podiam passar o dia de
pijama, demorar mais para sair da cama, etc. O professor alerta que, no caso
dessas pessoas, o que agora está sendo sentido como um relativo alívio, pode se
tornar potencialmente mais grave com o passar do tempo.
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Christian Ingo Lenz Dunker – Foto: Reprodução via Facebook |
Uma atitude preditiva para um mal
percurso, de acordo com o psicanalista, são aqueles que negam a gravidade da
epidemia. “Esse tipo de negação é muito ruim porque, no fundo, a gente sabe que
é uma espécie de autoengano, às vezes, de autoengano coletivo. E tende a
produzir uma espécie de ruptura, de violação, de sentimento de traição, de
instabilidade psíquica derivada da ruptura das nossas referências simbólicas”,
diz.
Dunker também chama a atenção para a
forma como algumas pessoas lidam com o medo, emoção esperada diante da
situação: com excessivo compartilhamento de informações. Ele destaca que os
dados confiáveis são muito importantes, agem até como medidas protetivas. Mas
há quem, em vez de se acalmar, se aquietar e se conter, age com muita
compulsividade, seja na obtenção ou na disseminação de informações, sem uma
reflexão ou contextualização.
Tarefas a cumprir
Quem está na quarentena tem algumas
tarefas a cumprir, de acordo com o psicanalista. A primeira é a reorganização
cotidiana, pensar em horários para fazer cada coisa. A segunda tarefa é cuidar
da higiene e manter a salubridade corporal, pois vamos entrar em um período de
baixa atividade física e isso nos fragiliza. Dunker diz que o Youtube para
encontrar a técnica mais adequada para cada pessoa. Mas é preciso selecionar
bem as fontes de informação, também neste caso.
Ele também recomenda a prática da meditação
e lembra que o Conselho Regional de Psicologia autorizou o tratamento
psicológico online. Se os sintomas de ansiedade e depressão passarem da conta,
o psicanalista sugere procurar ajuda de um profissional da área e pensar em um
tratamento via internet.
Para o equilíbrio mental, o psicanalista
sugere fazer pausas ao longo do dia e encontrar atividades que não sejam
exatamente produtivas, mas sim restaurativas: pode ser uma leitura, a
jardinagem, o cuidado com os animais, ou a arrumação de armários e da casa,
mudar os móveis de lugar, etc. “Eu acho a leitura uma boa prática para isso,
diferente das telas [televisão,
celular, computador], porque a leitura convoca uma reestruturação
da atenção da pessoa. Você precisa entrar no livro, seguir o personagem.”
Outra coisa muito importante é a
recuperação dos laços afetivos e sociais. Aquele avô ou avó talvez precise de
alguns empurrões para, finalmente, entrar no mundo digital, e conversar, por
exemplo, via Skype (um comunicador de voz e imagem via internet).
Dunker lembra que há lugares onde o
Skype fica ligado durante o dia, continuamente, e não apenas durante as
ligações, assim podem ouvir e partilhar a rotina diária com pessoas que estão
em outra residência. São usos diferentes para recursos que já estamos acostumados.
Sobre as crianças, elas demandam,
segundo o professor, uma atenção especial, pois terão mais dificuldades em
substituir os laços físicos pelos digitais. É um momento para acompanhar o
filho mais de perto, contar histórias, participar das brincadeiras, interações
que foram perdidas ao longo do tempo.
“Para os pais que vivem dizendo ‘eu não
tenho tempo pra isso’, agora chegou o momento de fazer esses ajustes. Também é
necessário observá-las, se pararam de brincar, se se isolaram demais, se estão
comendo e dormindo direito, porque a quarentena é uma situação muito adversa e
elas são muito sensíveis para captar a preocupação dos adultos”, informa o
psicanalista.
Os pais precisam falar a verdade sobre a
quarentena porque, em geral, mentir nesse momento aumenta a problemática. A
criança vai ter de lidar com pensamentos como “por que será que os meus pais
estão me escondendo alguma coisa?”, além de todas as outras pressões que
atingem a todos neste momento. Os idosos também demandam muita atenção pois
geralmente mantêm uma relação muito específica com o cotidiano e são muito
sensíveis às reformulações mais radicais
Para Dunker, é um momento para
cultivarmos a solidariedade, o altruísmo e também a humildade, pois estamos
diante de algo maior e mais poderoso que nós.
É preciso fazer essa travessia em
conjunto e não viver esse momento de forma excessivamente individualizada.
O pior e o melhor de cada um
É uma situação limite, inédita, que está
trazendo o melhor e o pior do ser humano. De um lado, o aumento abusivo do
preço do álcool em gel e as pessoas estocando comida e papel higiênico. Do
outro, exemplos de solidariedade, amizade e empatia, como os daqueles que se
oferecem para fazer as compras dos vizinhos idosos. Para Dunker, isso traz
respostas criativas, mas também respostas egoístas e destrutivas. Um bom
conselho é ficarmos mais tolerantes com nós mesmos e com os outros. Ao mesmo
tempo, poderão surgir oportunistas, que se aproveitarão desse momento delicado
e da fragilidade alheia para enganar pessoas.
A tendência é os preconceitos
aumentarem.
Na história da humanidade, as pestes
sempre foram associadas com o estrangeiro. Isso às vezes se entranha nos
delírios de perseguição que já estão aí funcionando no nosso lado social. Acho
que o Brasil está em uma situação muito desvantajosa em relação a outros
lugares pela situação de polarização”, opina
Segundo o professor, outra coisa
bastante complexa, mas necessária de ser trazida à discussão, é que todos nós
vamos ficar mais pobres. Temos menos produção e as pessoas que vivem na
informalidade viverão um perigo maior, inclusive de sofrer efeitos secundários
da quarentena, como dificuldades de se alimentar, e isso pode levar a um
aumento da violência. “Esse é o lado pior. Mas, no aspecto positivo, quero crer
que essa situação possa nos ajudar a reformular completamente nossos pactos de
trabalho e financeiros”, sugere.
Dunker diz que estamos vivendo em uma
anomia (suspensão da ordem normal) e isso deve afetar e deve valorizar as novas
formas de contratos que podemos estabelecer com funcionários, patrões, ciclo
produtivos, etc. E isso não se resume a trabalhar ou dar aulas de casa. Vai
muito além, pois é uma situação que vai durar muito tempo e vamos ter de nos
preparar para isso, inclusive, reduzindo nossas expectativas de gastos e de
ganhos, e entender isso como um processo comum a todos.
Para o professor, vamos ter a
oportunidade de ver a civilidade e a incivilidade da barbárie que já estava aí
no País. Ele lembra que os esforços civilizatórios ainda podem ser tomados e as
guerras – uma boa metáfora para o enfrentamento ao coronavírus – sempre
trouxeram grandes avanços tecnológicos, inicialmente, na área da defesa, mas
que depois foram integrados à sociedade.
Dunker destaca que, atualmente, há um
esforço para disciplinar a população, de fazer ela obedecer as orientações das
autoridades de saúde e incorporar a ideia de que a quarentena está sendo feita
para o bem coletivo e não individual. Para ele, estamos em uma circunstância
que pode ser educativa para o nosso país.
Como diz Freud, [Sigmund Freud (1856-1939), médico
psiquiatra austríaco criador da psicanálise] é uma situação
que pode convocar os nossos fantasmas para a gente bater um papo com eles e
resolver assuntos pendentes.”
Ebola, SARS e quarentena
No dia 14 de março, a revista
científica The Lancet publicou
a revisão The
psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the
evidence. Dentre 3166 artigos das bases Medline, PsycINFO e Web
of Science analisados por pesquisadores do King’s College (Reino Unido), foram
selecionados 24 estudos realizados em dez países sobre pessoas que passaram por
quarentena em função da SARS, ebola, influenza H1N1, síndrome respiratória do
Oriente Médio, e de influenza equina.
A revisão mostrou que a quarentena pode
trazer impactos psicológicos negativos, como estresse pós-traumático, confusão
e raiva, entre outros. Dentre os fatores que levam ao estresse, os artigos
destacam uma maior duração da quarentena, medos de infecção, frustração, tédio,
suprimentos inadequados, perdas financeiras e estigmas. O texto destaca a
importância de uma comunicação rápida e eficaz, de as pessoas em quarentena
entenderem o porquê da situação, e os benefícios do isolamento, entre outras
considerações.
Dunker ressalta a qualidade dos artigos,
mas aponta algumas diferenças em relação ao que está ocorrendo na sociedade
brasileira, pois estamos enfrentando algo completamente distinto. Uma delas é o
tempo de duração da quarentena. Um ou outro artigo da revisão citava períodos
de 20 ou 30 dias. Aqui no Brasil, há estimativas de que a quarentena deve
ultrapassar esse período.
Outro ponto são as doenças analisadas,
entre elas SARS e ebola, muito diferentes da covid-19. No caso da ebola, cuja
letalidade é muito alta, Dunker lembra da variável cultural, pois os casos
ocorreram em países africanos, onde a sociabilidade é diferente, e o
agrupamento, a presença e o convívio com a família são bem distintos do
restante do mundo.