Muito tem se falado sobre o que significa esse evento do dia 15 de março. É inegável sua motivação autoritária e populista. Contudo, é possível interpretá-la sob uma ótica alternativa que leve em conta algo muito mais complexo por trás de eventos como esse, a saber: a completa alienação do brasileiro em relação ao seu sistema político e a ausência do povo na condução do orçamento público.
*Por Eduardo Borges
Uma coisa é fato, em tempos
bolsonaristas qualquer copo d’água tem o poder de se transformar em uma
tempestade. O bolsonarismo tem a capacidade de tornar um debate público, por
mais natural que ele seja, em um grande conflito social cuja solução final sempre
descamba para ações de natureza autoritária e antidemocrática. Essa é a cruz
que a parcela da sociedade brasileira, que se encontra fora das hostes da seita
bolsonarista, terá que carregar até 2022.
Desde questões pitorescas como a treta
com a estética da esposa do presidente francês e a acusação de incendiário
contra o ator americano Leonardo Di Caprio até questões sérias como o recente
debate em torno do orçamento público, tudo, em tempos bolsonaristas ganha uma
dimensão que expõe as vísceras mais apodrecidas da sociedade brasileira.
O completo despreparo tanto para o
exercício do cargo quanto para lidar com a dinâmica do jogo político
democrático, transformou o Brasil de Bolsonaro em um grande vídeo game
colocando em lados opostos o presidente e seus apoiadores e o restante da
população. Não existe mais o debate político equilibrado e a busca por
conciliação. Tudo se transforma rapidamente no “nós contra eles”. Nesse
contexto, assumidamente belicista e maniqueísta, o resgate de ações de perfil
autoritário como o fechamento do Congresso Nacional e de instituições públicas
como o Supremo Tribunal Federal tornam-se alternativas naturalizadas entre uma
parcela da população.
Esse é o sintoma inicial de como as
democracias começam a morrer. Um indivíduo populista e reacionário como Jair
Bolsonaro não entende que as instituições que sustentam a democracia servem
como um equilíbrio de forças frente à diversidade de ideias que compõe uma
sociedade. Governantes populistas como Bolsonaro buscam a relação direta com o
povo, sem a intermediação das instituições, pelo simples fato de a enxergarem
como adversárias e obstáculos ao seu projeto de poder. Não é da dinâmica desses
governos e de seus apoiadores entenderem a democracia como o espaço do
contraditório e da negociação permanente. Eles só conseguem vislumbrar as
relações de poder pelo olhar obsessivo do louco, que enxerga conspiração em
qualquer ação dos que eles identificam como inimigos da nação.
No próximo dia 15 de março a malta
bolsonarista, com o apoio explícito do capitão/presidente, pretende ir às ruas
em mais um exemplo de ironia democrática, pois é a própria democracia que
assegura a essa gente o direito de aviltá-la publicamente.
Muito tem se falado sobre o que
significa esse evento do dia 15 de março. É inegável sua motivação autoritária
e populista. Contudo, é possível interpretá-la sob uma ótica alternativa que
leve em conta algo muito mais complexo por trás de eventos como esse, a saber:
a completa alienação do brasileiro em relação ao seu sistema político e a
ausência do povo na condução do orçamento público.
Nos últimos anos o protagonismo político
do TSE, ocupando o espaço negligenciado pelo Legislativo, e os inúmeros membros
do Executivo sendo investigado e condenado, tem estabelecido um estremecimento
no necessário equilíbrio entre os três poderes da República.
A chegada ao poder de um Executivo com o
perfil populista de Jair Bolsonaro, que tende a ignorar as regras do jogo
democrático e do Estado de Direito e buscar a direta interlocução com setores
populares da sociedade, ajudou a ampliar o conflito entre os três poderes.
É da dinâmica do bolsonarismo a
polarização e o maniqueísmo. É da lógica do populismo de direita transformar em
inimigos imaginários as instituições que se interponham como mediadoras entre o
poder Executivo e a sociedade.
Não só a Justiça, mas o poder
Legislativo é o grande inimigo a ser combatido. Ele é visto pela lógica
bolsonarista como um obstáculo ao desenvolvimento da nação. Os bolsonaristas
entendem o exercício de poder do Executivo como uma ação de mão única que se
estabelece de cima para baixo, sob o comando irrestrito e iluminado do
presidente ungido e sem a necessidade de negociação e conciliação com qualquer
outro poder da República.
Nesse caso, o veto presidencial à emenda
do Orçamento impositivo, pauta cara aos interesses do Legislativo, somente
explicita a já apodrecida relação entre os poderes no Brasil. O General Augusto
Heleno deu o tom do debate ao se referir aos congressistas deixando claro que o
Executivo não vai admitir se “rebaixar” para o Legislativo, disse ele: “esses caras chantagearem a gente o tempo
todo. Foda-se”. Em outras palavras, o general quer dizer que o
sistema é presidencialista e não cabe ao Parlamento tentar mudar isso na
imposição.
Por outro lado, o Parlamento, ao propor
o Orçamento impositivo, sob o pretexto de que isso ajudaria ao governo a
diversificar os investimentos da gestão, no fundo visa controlar uma bolada de
R$ 30 bilhões que muito bem faria ao projeto pessoal de poder de cada um dos
congressistas.
Otimistas bem intencionados argumentam
que ao participar do bolo orçamentário o Congresso tende a se mostrar mais
responsável com o uso do dinheiro público e deputados e senadores, aqueles que
efetivamente conhecem os profundos problemas sociais dos rincões do país, podem
alocar com mais racionalidade os recursos do orçamento. Outra observação
positiva sobre o Orçamento impositivo é o de que ele acabaria com o tradicional
balcão de negócios entre o Executivo (que controla o Orçamento) e o Legislativo
(que precisa do Orçamento para responder às suas bases). Na raiz dessa
negociação se encontra a construção da base de poder do presidente da República
no interior do Congresso Nacional.
Aqui a fragilidade do sistema político
brasileiro é devidamente explicitada. Desde 1989 que o Brasil tem um regime de
execução orçamentária controlada pelo poder Executivo. Assim se constituiu
nossa República presidencialista. O que o Congresso quer agora é interferir
nessa prática histórica. O que os parlamentares visam é ampliar seu
protagonismo na gestão pública do país. Ao vetar o Orçamento impositivo o
Executivo está somente usando suas armas para defender a manutenção do que já
vem acontecendo desde 1989.
Urge, nesse caso, um debate sério sobre
o funcionamento do sistema político brasileiro.
Desde a Constituição de 1988, que
refundou o Estado brasileiro pós Ditadura Militar, que o Brasil é administrado
sob um alto índice de rigidez fiscal. Algo em torno de 94% do orçamento da
União é de despesas obrigatórias asseguradas por lei. Ao governo resta somente
6% desse orçamento para que possa ser usado com alguma autonomia. Com o
Orçamento impositivo essa margem tende a cair ainda mais dificultando ao Estado
a possibilidade, por exemplo, de contingenciar algumas despesas que ele
identifique como necessárias.
Apesar de aparentar ser um debate
econômico a questão do Orçamento impositivo é principalmente político. A
estratégia bolsonarista de prescindir do Congresso e buscar respaldo no diálogo
direto com seus seguidores através das redes sociais provocou a quebra de
negociação entre governo e Parlamento tendo o orçamento como moeda de
troca. Contudo, a necessidade de fazer as Reformas, obrigou ao governo se
submeter à velha prática.
Por outro lado, diante de um governo tão
vacilante e desequilibrado como o de Bolsonaro, o Congresso aparenta, com ações
como essa do Orçamento impositivo, criar situações legais que lhe assegure no
futuro segurança jurídica para continuar fazendo política dentro do sistema
presidencialista. Contudo, para tanto, deixa em aberto possíveis críticas de
que estariam buscando um disfarçado parlamentarismo sob um presidencialismo
existente.
Quando a PEC 34/19 foi aprovada e passou
a obrigar ao governo a pagar todas as emendas parlamentares sejam elas
individuais ou coletivas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi ao Twitter e
postou excitado: “aprovamos em
segundo turno o orçamento impositivo. Essa proposta otimiza e democratiza o gasto
público. Nós vamos ter o poder de aprovar o próximo orçamento, as políticas
públicas do governo, os investimentos. O Parlamento recompõe a sua prerrogativa”.
A última frase é lapidar, repito: “O Parlamento recompõe a sua prerrogativa”.
A guerra estava declarada não só ao poder executivo, mas ao próprio sistema
presidencialista. Mas o que Rodrigo Maia deixou de dizer? Que em tempos
eleitorais (temos uma eleição em outubro) com a certeza de que terá assegurada
sua parte no orçamento, um deputado que seja candidato a prefeito ou que apoie
algum correligionário tem a vantagem de usar esse direito como uma promessa
futura durante a campanha. Isso corresponde a um trunfo que pode se mostrar
decisivo diante do adversário.
Existem duas espécies de Orçamento Público
o autorizativo e o impositivo. Em ambos os casos existem riscos se não tratados
de maneira equilibrada. No Brasil, o Orçamento foi sempre autorizativo e o
Congresso apenas autoriza ao executivo realizar despesas sem obrigá-lo. O
governo tem margem de manobra sobre o orçamento. É certo que isso provoca a
concentração do poder orçamentário nas mãos do Executivo e transforma o
Legislativo em simples apêndice na aprovação do orçamento.
A PEC aprovada (contra a qual os
bolsonaristas vão às ruas no dia 15) provoca a mudança para o Orçamento
impositivo e eleva o poder do Legislativo dando-lhe protagonismo na definição
das despesas orçamentárias. Isso tem sido chamado criativamente de
“parlamentarismo orçamentário”.
Mas a história tem inúmeros exemplos de
mau uso do orçamento por parte de parlamentares. Quem não se lembra dos
chamados “anões do Orçamento” que fraudaram o orçamento desviando recursos para
instituições fantasmas e proporcionando uma inesgotável lavagem de dinheiro
sujo.
Seria realmente verdade que o Orçamento
impositivo nos transformaria em um parlamentarismo disfarçado? Isso também
precisa ser melhor dimensionado. No mais famoso regime presidencialista do
mundo, o dos Estados Unidos da América, o orçamento é impositivo. Cabe ao
Parlamento elaborar o orçamento e ao governo executar. Porém, se houver risco
de desequilíbrio das contas públicas o presidente pode pedir autorização ao
Legislativo para contingenciar algumas despesas. Isso significa equilíbrio e
independência entre os poderes sobre a responsabilidade da gestão do país.
Já nos países parlamentaristas da Europa
cabe ao executivo definir a gestão do orçamento. Parece estranho? Não muito. É
tudo uma questão de conhecer a lógica de funcionamento do sistema político. No
parlamentarismo o poder executivo é uma correia de transmissão do grupo
majoritário que controla o Parlamento. Aquele que exerce a função de Primeiro
Ministro chega ao poder através da construção prévia de maioria dentro do
próprio Congresso Nacional.
Mas e a convocação do dia 15 de março?
Tem realmente razão de existir?
Certamente que os que vão às ruas nesse
dia desconhecem os reais bastidores que tem colocado em lados opostos os
poderes Executivo e Legislativo. Não têm nenhuma noção do quanto é
inconsequente e irresponsável, para a própria democracia, a defesa cega e
intransigente de apenas um dos lados em conflito. Não percebem que atacar o
Congresso e o STF e, em alguns casos, até flertar com uma famigerada
intervenção militar, apenas significa retirar do povo e de suas instituições
representativas seu próprio protagonismo.
Ao contrário de convocar atos públicos
para emparedar poderes legítimos da República, necessários ao equilíbrio
democrático e de defesa do Estado de Direito, a sociedade brasileira deveria ir
às ruas para pedir a ampliação da participação popular no debate do próprio
orçamento. Diferente da malta bolsonarista, com todos os seus traços
autoritários, que pedem pela ampliação do poder discricionário do presidente da
República em detrimento dos outros poderes, cabe à parcela mais lúcida da
sociedade brasileira não se comprometer com a briga doméstica e oportunista
entre os poderes, mas se colocar como legítima defensora da democracia.
Isso significa enxergar além dos
interesses escusos que vão estar em jogo no próximo dia 15 de março. Significa
exigir uma maior sofisticação do debate em torno do funcionamento do sistema
politico brasileiro e da natureza da política de distribuição de recursos
públicos por parte dos poderes institucionais. Significa incluir o povo como
destino principal dos recursos orçamentários. Em suma, mais do que discutir se
o orçamento deve ser autorizativo ou impositivo é saber se ele vai ser
participativo e se terá o bem estar social como principal foco de investimento.
*Eduardo Borges – Historiador
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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