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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quarta-feira, 11 de março de 2020

O ato pró-governo no dia 15 de março e a alienação popular em relação ao sistema político e ao Orçamento público brasileiro. Por Eduardo Borges

Muito tem se falado sobre o que significa esse evento do dia 15 de março. É inegável sua motivação autoritária e populista. Contudo, é possível interpretá-la sob uma ótica alternativa que leve em conta algo muito mais complexo por trás de eventos como esse, a saber: a completa alienação do brasileiro em relação ao seu sistema político e a ausência do povo na condução do orçamento público.

Uma coisa é fato, em tempos bolsonaristas qualquer copo d’água tem o poder de se transformar em uma tempestade. O bolsonarismo tem a capacidade de tornar um debate público, por mais natural que ele seja, em um grande conflito social cuja solução final sempre descamba para ações de natureza autoritária e antidemocrática. Essa é a cruz que a parcela da sociedade brasileira, que se encontra fora das hostes da seita bolsonarista, terá que carregar até 2022.

Desde questões pitorescas como a treta com a estética da esposa do presidente francês e a acusação de incendiário contra o ator americano Leonardo Di Caprio até questões sérias como o recente debate em torno do orçamento público, tudo, em tempos bolsonaristas ganha uma dimensão que expõe as vísceras mais apodrecidas da sociedade brasileira.

O completo despreparo tanto para o exercício do cargo quanto para lidar com a dinâmica do jogo político democrático, transformou o Brasil de Bolsonaro em um grande vídeo game colocando em lados opostos o presidente e seus apoiadores e o restante da população. Não existe mais o debate político equilibrado e a busca por conciliação. Tudo se transforma rapidamente no “nós contra eles”. Nesse contexto, assumidamente belicista e maniqueísta, o resgate de ações de perfil autoritário como o fechamento do Congresso Nacional e de instituições públicas como o Supremo Tribunal Federal tornam-se alternativas naturalizadas entre uma parcela da população.

Esse é o sintoma inicial de como as democracias começam a morrer. Um indivíduo populista e reacionário como Jair Bolsonaro não entende que as instituições que sustentam a democracia servem como um equilíbrio de forças frente à diversidade de ideias que compõe uma sociedade. Governantes populistas como Bolsonaro buscam a relação direta com o povo, sem a intermediação das instituições, pelo simples fato de a enxergarem como adversárias e obstáculos ao seu projeto de poder. Não é da dinâmica desses governos e de seus apoiadores entenderem a democracia como o espaço do contraditório e da negociação permanente. Eles só conseguem vislumbrar as relações de poder pelo olhar obsessivo do louco, que enxerga conspiração em qualquer ação dos que eles identificam como inimigos da nação.

No próximo dia 15 de março a malta bolsonarista, com o apoio explícito do capitão/presidente, pretende ir às ruas em mais um exemplo de ironia democrática, pois é a própria democracia que assegura a essa gente o direito de aviltá-la publicamente.

Muito tem se falado sobre o que significa esse evento do dia 15 de março. É inegável sua motivação autoritária e populista. Contudo, é possível interpretá-la sob uma ótica alternativa que leve em conta algo muito mais complexo por trás de eventos como esse, a saber: a completa alienação do brasileiro em relação ao seu sistema político e a ausência do povo na condução do orçamento público.

Nos últimos anos o protagonismo político do TSE, ocupando o espaço negligenciado pelo Legislativo, e os inúmeros membros do Executivo sendo investigado e condenado, tem estabelecido um estremecimento no necessário equilíbrio entre os três poderes da República.

A chegada ao poder de um Executivo com o perfil populista de Jair Bolsonaro, que tende a ignorar as regras do jogo democrático e do Estado de Direito e buscar a direta interlocução com setores populares da sociedade, ajudou a ampliar o conflito entre os três poderes.

É da dinâmica do bolsonarismo a polarização e o maniqueísmo. É da lógica do populismo de direita transformar em inimigos imaginários as instituições que se interponham como mediadoras entre o poder Executivo e a sociedade.

Não só a Justiça, mas o poder Legislativo é o grande inimigo a ser combatido. Ele é visto pela lógica bolsonarista como um obstáculo ao desenvolvimento da nação. Os bolsonaristas entendem o exercício de poder do Executivo como uma ação de mão única que se estabelece de cima para baixo, sob o comando irrestrito e iluminado do presidente ungido e sem a necessidade de negociação e conciliação com qualquer outro poder da República.

Nesse caso, o veto presidencial à emenda do Orçamento impositivo, pauta cara aos interesses do Legislativo, somente explicita a já apodrecida relação entre os poderes no Brasil. O General Augusto Heleno deu o tom do debate ao se referir aos congressistas deixando claro que o Executivo não vai admitir se “rebaixar” para o Legislativo, disse ele: “esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se”. Em outras palavras, o general quer dizer que o sistema é presidencialista e não cabe ao Parlamento tentar mudar isso na imposição.

Por outro lado, o Parlamento, ao propor o Orçamento impositivo, sob o pretexto de que isso ajudaria ao governo a diversificar os investimentos da gestão, no fundo visa controlar uma bolada de R$ 30 bilhões que muito bem faria ao projeto pessoal de poder de cada um dos congressistas.

Otimistas bem intencionados argumentam que ao participar do bolo orçamentário o Congresso tende a se mostrar mais responsável com o uso do dinheiro público e deputados e senadores, aqueles que efetivamente conhecem os profundos problemas sociais dos rincões do país, podem alocar com mais racionalidade os recursos do orçamento. Outra observação positiva sobre o Orçamento impositivo é o de que ele acabaria com o tradicional balcão de negócios entre o Executivo (que controla o Orçamento) e o Legislativo (que precisa do Orçamento para responder às suas bases). Na raiz dessa negociação se encontra a construção da base de poder do presidente da República no interior do Congresso Nacional.

Aqui a fragilidade do sistema político brasileiro é devidamente explicitada. Desde 1989 que o Brasil tem um regime de execução orçamentária controlada pelo poder Executivo. Assim se constituiu nossa República presidencialista. O que o Congresso quer agora é interferir nessa prática histórica. O que os parlamentares visam é ampliar seu protagonismo na gestão pública do país. Ao vetar o Orçamento impositivo o Executivo está somente usando suas armas para defender a manutenção do que já vem acontecendo desde 1989.

Urge, nesse caso, um debate sério sobre o funcionamento do sistema político brasileiro.

Desde a Constituição de 1988, que refundou o Estado brasileiro pós Ditadura Militar, que o Brasil é administrado sob um alto índice de rigidez fiscal. Algo em torno de 94% do orçamento da União é de despesas obrigatórias asseguradas por lei. Ao governo resta somente 6% desse orçamento para que possa ser usado com alguma autonomia. Com o Orçamento impositivo essa margem tende a cair ainda mais dificultando ao Estado a possibilidade, por exemplo, de contingenciar algumas despesas que ele identifique como necessárias.

Apesar de aparentar ser um debate econômico a questão do Orçamento impositivo é principalmente político. A estratégia bolsonarista de prescindir do Congresso e buscar respaldo no diálogo direto com seus seguidores através das redes sociais provocou a quebra de negociação entre governo e Parlamento tendo o orçamento como moeda de troca.  Contudo, a necessidade de fazer as Reformas, obrigou ao governo se submeter à velha prática.

Por outro lado, diante de um governo tão vacilante e desequilibrado como o de Bolsonaro, o Congresso aparenta, com ações como essa do Orçamento impositivo, criar situações legais que lhe assegure no futuro segurança jurídica para continuar fazendo política dentro do sistema presidencialista. Contudo, para tanto, deixa em aberto possíveis críticas de que estariam buscando um disfarçado parlamentarismo sob um presidencialismo existente.

Quando a PEC 34/19 foi aprovada e passou a obrigar ao governo a pagar todas as emendas parlamentares sejam elas individuais ou coletivas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi ao Twitter e postou excitado: “aprovamos em segundo turno o orçamento impositivo. Essa proposta otimiza e democratiza o gasto público. Nós vamos ter o poder de aprovar o próximo orçamento, as políticas públicas do governo, os investimentos. O Parlamento recompõe a sua prerrogativa”.

A última frase é lapidar, repito: “O Parlamento recompõe a sua prerrogativa”. A guerra estava declarada não só ao poder executivo, mas ao próprio sistema presidencialista. Mas o que Rodrigo Maia deixou de dizer? Que em tempos eleitorais (temos uma eleição em outubro) com a certeza de que terá assegurada sua parte no orçamento, um deputado que seja candidato a prefeito ou que apoie algum correligionário tem a vantagem de usar esse direito como uma promessa futura durante a campanha. Isso corresponde a um trunfo que pode se mostrar decisivo diante do adversário.

Existem duas espécies de Orçamento Público o autorizativo e o impositivo. Em ambos os casos existem riscos se não tratados de maneira equilibrada. No Brasil, o Orçamento foi sempre autorizativo e o Congresso apenas autoriza ao executivo realizar despesas sem obrigá-lo. O governo tem margem de manobra sobre o orçamento. É certo que isso provoca a concentração do poder orçamentário nas mãos do Executivo e transforma o Legislativo em simples apêndice na aprovação do orçamento.

A PEC aprovada (contra a qual os bolsonaristas vão às ruas no dia 15)  provoca a mudança para o Orçamento impositivo e eleva o poder do Legislativo dando-lhe protagonismo na definição das despesas orçamentárias. Isso tem sido chamado criativamente de “parlamentarismo orçamentário”.

Mas a história tem inúmeros exemplos de mau uso do orçamento por parte de parlamentares. Quem não se lembra dos chamados “anões do Orçamento” que fraudaram o orçamento desviando recursos para instituições fantasmas e proporcionando uma inesgotável lavagem de dinheiro sujo.

Seria realmente verdade que o Orçamento impositivo nos transformaria em um parlamentarismo disfarçado? Isso também precisa ser melhor dimensionado. No mais famoso regime presidencialista do mundo, o dos Estados Unidos da América, o orçamento é impositivo. Cabe ao Parlamento elaborar o orçamento e ao governo executar. Porém, se houver risco de desequilíbrio das contas públicas o presidente pode pedir autorização ao Legislativo para contingenciar algumas despesas. Isso significa equilíbrio e independência entre os poderes sobre a responsabilidade da gestão do país.

Já nos países parlamentaristas da Europa cabe ao executivo definir a gestão do orçamento. Parece estranho? Não muito. É tudo uma questão de conhecer a lógica de funcionamento do sistema político. No parlamentarismo o poder executivo é uma correia de transmissão do grupo majoritário que controla o Parlamento. Aquele que exerce a função de Primeiro Ministro chega ao poder através da construção prévia de maioria dentro do próprio Congresso Nacional.

Mas e a convocação do dia 15 de março? Tem realmente razão de existir?

Certamente que os que vão às ruas nesse dia desconhecem os reais bastidores que tem colocado em lados opostos os poderes Executivo e Legislativo. Não têm nenhuma noção do quanto é inconsequente e irresponsável, para a própria democracia, a defesa cega e intransigente de apenas um dos lados em conflito. Não percebem que atacar o Congresso e o STF e, em alguns casos, até flertar com uma famigerada intervenção militar, apenas significa retirar do povo e de suas instituições representativas seu próprio protagonismo.

Ao contrário de convocar atos públicos para emparedar poderes legítimos da República, necessários ao equilíbrio democrático e de defesa do Estado de Direito, a sociedade brasileira deveria ir às ruas para pedir a ampliação da participação popular no debate do próprio orçamento. Diferente da malta bolsonarista, com todos os seus traços autoritários, que pedem pela ampliação do poder discricionário do presidente da República em detrimento dos outros poderes, cabe à parcela mais lúcida da sociedade brasileira não se comprometer com a briga doméstica e oportunista entre os poderes, mas se colocar como legítima defensora da democracia.

Isso significa enxergar além dos interesses escusos que vão estar em jogo no próximo dia 15 de março. Significa exigir uma maior sofisticação do debate em torno do funcionamento do sistema politico brasileiro e da natureza da política de distribuição de recursos públicos por parte dos poderes institucionais. Significa incluir o povo como destino principal dos recursos orçamentários. Em suma, mais do que discutir se o orçamento deve ser autorizativo ou impositivo é saber se ele vai ser participativo e se terá o bem estar social como principal foco de investimento.

*Eduardo Borges – Historiador



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