A Constituição tem sido
vilipendiada diretamente quanto ao seu conteúdo, ou seja, os mandamentos
firmados na formação do regime pós-ditatorial estão rapidamente perdendo força
e rompendo com o pacto firmado para a redemocratização do país, em especial com
o crescimento frenético de partidos e governantes com tendências autoritárias,
com ponto fulcral a partir do término das eleições de 2014.
*Por Bruno Luis Talpai
A insensatez, o discurso de ódio e a violência institucional
mostram-se os baluartes e os principais fatores da derrocada do Estado
brasileiro sem a expressa perda de vigência da Constituição de 1988. A crise
política, somado às inúmeras reinterpretações de direitos e garantias
fundamentais de governos legitimados sob uma cortina de fumaça democrática,
simplesmente sobre o aspecto formal, mostram-se veementemente autoritários e
representam risco iminente à ordem constitucional, pairando o estado de
exceção a poucos passos.
Para melhor elucidar o que deveria ser o
parâmetro legal a ser rigorosamente seguido em uma democracia viril, a
organização democrática, por assim dizer, deve pautar-se no diálogo e na
alternância, nos ditames do princípio republicano. Tanto mais perfeita será
quanto melhor assegurar a efetiva participação de cada um na composição da
estrutura. Por meio do voto, da pluralidade de partidos e do jogo dialético, a
democracia desatina em um procedimento análogo ao judicial, cuja justiça não se
pode determinar a priori,
mas apenas no decurso de um processo.
Contudo, ainda que os aspectos
procedimentais tenham certa estabilidade, a Constituição tem sido vilipendiada
diretamente quanto ao seu conteúdo, ou seja, os mandamentos firmados na
formação do regime pós-ditatorial estão rapidamente perdendo força e rompendo
com o pacto firmado para a redemocratização do país, em especial com o
crescimento frenético de partidos e governantes com tendências autoritárias,
com ponto fulcral a partir do término das eleições de 2014.
Extraconstitucionais
Alguns pontos são perceptíveis: as
regras democráticas do jogo são constantemente questionadas com tendências a
rejeitar ou violar expressamente as disposições da Constituição,
principalmente, com a justificativa de que há a necessidade de medidas
extraconstitucionais, tais como o cancelamento eleições, a suspensão da
normatividade da Constituição com a restrição de direitos políticos, a
banalização de garantias constitucionais fundamentais, com foco na
relativização do devido processo legal e do Estado de Direito, a criminalização
de movimentos sindicais e sociais enquanto solução “eficaz” para retomar a
estabilidade política e financeira no país.
Outro aspecto concomitante é a negação
ou deslegitimação dos oponentes políticos, descrevendo-os enquanto subversivos
– e aqui aplica-se a velha teoria política da criação do inimigo em comum como
esperança de unificação das massas -, criminosos que utilizam do poder
constituído democraticamente pelo voto com finalidades obscuras. Ainda, em
conjunto, tal negação é legitimada e encoraja a violência com patrocínio de
seus partidários e ataques em multidões contra seus oponentes, seja com o uso
do aparato institucional de repressão com técnicas militarizadas ou com o apoio
de instituições paralelas ao Estado militarizadas com propósitos contrários à
ordem constitucional.
Síncrono aos aspectos acima, a cooptação
de instituições estratégicas que detém força institucional com poderes de
investigação e de denúncia de abusos também é outro mecanismo amplamente
utilizado em governos autoritários, ainda que revestidos com “ares de
legalidade”. A indicação política por parte do governante tem autorização
constitucional, mas a substância e o apoio incondicional das instituições, que
na maioria das vezes é dirigida por pessoas com carisma popular, mostra-se
flagrantemente contrária aos princípios básicos de uma república e do Estado
democrático de Direito quando apoiam incondicionalmente e pessoalmente a figura
de um governante, “o salvador da pátria”, sem qualquer pudor quanto a eventuais
violações à Constituição.
Outra vez
A história se repete com outros
mecanismos, contudo a essência é a mesma. Vale destacar a forte semelhança do
momento político atual com os movimentos políticos das décadas de 40, 50 e 60.
Sob o pretexto da moralização, do combate a corrupção e da descrença de que a
política – na acepção e termos políticos são insuficientes para solucionar os
problemas, contrariando frontalmente um dos maiores ensinamentos do gênio
Aristóteles em que “o homem é um animal político”, medidas flagrantemente
inconstitucionais mediante a cortina de fumaça do suposto apoio popular são
gradativamente implementadas.
Como bem salientou o filósofo e jurista
italiano Norberto Bobbio, “o fascista fala o tempo todo em corrupção. Fez isso
na Itália em 1992, na Alemanha em 1993 e no brasil e 1964, ele acusa, insulta,
agride como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso, um
sociopata que persegue a carreira política. No poder, não hesita em torturar,
estuprar e roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos. Mais que a
corrupção, o fascista pratica a maldade”. O trecho é elucidativo, vale a
comparação com as declarações e a política nacional.
Com isso, somado a descrença popular nas
instituições democráticas e ao Estado de bem-estar social, que diariamente é
assolado com o avassalador crescimento do neoliberalismo, o povo perdeu o sentimento
de participação social e de sua função essencial enquanto atores no
desenvolvimento do país. Relegados ao trabalho árduo, as dificuldades diárias e
ao papel da propaganda política midiática nefasta e contrárias ao interesse da
diminuição da desigualdade social, resta a inércia ao povo, ou pelo menos sua
esmagadora maioria afastada dos assuntos públicos em razão de sua complexidade
– e não seria diferente em um país em que a privatização e o desmonte da
educação são os pilares fundamentais da política de alienação – que assiste à
revogação informal da materialidade da Constituição brasileira com mãos e pés
parcialmente atados.
Perda de vigência
O cenário de antidemocrático ganha
contornos reais, a diária afronta por parte do Poder Executivo Federal aos
Poderes Judiciário e Legislativo com chamamentos públicos de protestos contra
decisões tomadas em seus respectivos âmbitos de atuação conferidos pela
Constituição, sob o pretexto de que os demais poderes interferem na governança
e impedem “prosperidade” da nação instalam um regime de conflito
inconstitucional que desmorona o sistema de freios e contrapesos, que é
primordial ao controle do poder político de forma a prevenir abusos
constitucionais, tais quais a personalização da Administração Pública e recrudescimento
das instituições democráticas.
Diante deste cenário, violações e
declarações que ensejam crime de responsabilidade frente ao descaso e a
leviandade dos que assumem importantes cargos na nação brasileira, com foco no
Poder Executivo Federal, são diariamente noticiadas e não apuradas em razão do
uso de forças políticas dentro das instituições, alcançando um cenário
tormentoso e de violações de princípios básicos como o da igualdade e do devido
processo legal.
Os ovos da serpente se chocaram e estão
crescendo, a necropolítica e a política da destruição rapidamente torna-se uma
realidade no Brasil. O Poder político que deveria ser impessoal torna-se, mais
uma vez, patrimonialista e pessoal na tomada de decisões. Ou seja, “O Estado
sou Eu” ou “aos amigos do Rei tudo e aos inimigos a lei (devidamente
interpretada nos parâmetros dos que detém o Poder)” representam os ditames da
morte política.
Ainda existem alternativas, a criação de um “cordão sanitário” formado por partidos políticos com posições institucionais contrárias, mas com compromisso democrático e de defesa das instituições. A mobilização e engajamento político deve ser voraz na defesa do Estado democrático de Direito enquanto ainda há tempo. Caso contrário, a Constituição brasileira que até o momento obteve maior sucesso em termos de lapso temporal em vigência corre sério perigo de perda de vigência.
*Bruno Luis Talpai é advogado,
bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP,
Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP, Mestrando
em Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo – PUC/SP e Pós-Graduando em Ciência Política pela Fundação Escola
de Sociologia de São Paulo – FESPSP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário