"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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domingo, 30 de maio de 2021

A privatização da Eletrobras será o golpe do século, por Luis Nassif

O projeto de lei de privatização da Eletrobras é um dos golpe mais ruidosos já registrados nas privatizações brasileiras. A Eletrobras tem capacidade de gerar 30,1% da energia e detém 44% das linhas de transmissão do País.

A privatização da Eletrobrás também significa a privatização da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). / Foto: Maria Hsu/Chesf

A Eletrobras sempre teve um papel regulador de preços no mercado, atuando em duas pontas. Uma delas, nas licitações de energia e a outra na oferta de energia contratada barata (aquela que é vendida para distribuidoras).

Exemplo claro ocorreu depois que foi desenvolvido o novo modelo do mercado de energia, ainda no período da então Ministra das Minas e Energia Dilma Rousseff.

No mal-sucedido modelo de liberação do mercado, no governo FHC, a Eletrobras foi incluída na relação do Plano Nacional de Desestatização (PND). Com isso, deixou de investir em novos projetos.

No modelo Dilma, havia uma licitação para a construção de novas usinas. Vencia o melhor preço oferecido no kwh – ou maior deságio em relação ao preço teto.

Segundo Nelson Hubner, um dos técnicos mais respeitados do setor, até 2003, sem a participação da Eletrobras, em apenas 2 lotes de licitação houve algum deságio significativo, entre 20% e 30%. Ainda assim, por razões bastante subjetivas. Uma delas foi a Copel, em uma linha de transmissão no Paraná; a outra a Cemig, em Minas Gerais. Em todas as demais licitações, não houve deságio sobre o preço base.

A partir da entrada da Eletrobras no jogo, o deságio médio de todas as licitações foi mais de 30%.
Com a redução, considerou-se que a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) estava calibrando mal o preço teto. Foi feita uma revisão que reduziu mais ainda o preço teto.

No leilão seguinte, julgou-se que iria diminuir o deságio, já que aumentou o preço de referência. Mas ocorreu um novo aumento do deságio.

Dois anos depois, houve a licitação do trecho Norte-Sul 3, com concorrência maior. O deságio ficou acima de 60%, dando uma ideia das margens extraordinárias praticadas pelas empreiteiras.

O maior exemplo foi na licitação das grandes elétricas estruturantes da Amazônia, inicialmente Santo Antônio e Jirau e, depois, Belo Monte.

Em Santo Antônio, a Odebrecht se associou com Furnas. Como tinha feito todos os estudos do inventário, partia com grande chance. Houve uma reunião no MInistério de Minas e Energia, tentando uma maneira de promover uma competição que derrubasse os preços.

Não havia nenhum grupo grande privado para participar. Decidiu-se que a Petrobras não participaria do leilão, mas haveria uma disputa entre os diversos grupos para levar a Eletrobras como parceria.

Conseguiu-se montar dois consórcios, o de Furnas-Odebrecht e o Chesf-Eletronorte com mais um grupo de empresas privadas menores. A Odebrecht venceu. O preço teto era de R$ 115 o mwh – apontado como exageradamente barato pelo mercado. No entanto o preço final foi de R$ 78,00. Em 30 anos, significou uma economia de R$ 30 bilhões nas tarifas.

A privatização da Eletrobras

O projeto de lei de privatização da Eletrobras é um dos golpe mais ruidosos já registrados nas privatizações brasileiras.  A Eletrobras tem capacidade de gerar 30,1% da energia e detém 44% das linhas de transmissão do País.

O Estado continuará com participação societária na Eletrobras, mas sem direito sequer a um assento no Conselho.

Mais que isso, em todos os países desenvolvidos, hidrelétricas já amortizadas são de controle do Estado, devido ao fato de fornecerem energia barata, esencial para a competitividade da economia e a universalização dos serviços.

Hoje em dia a Eletrobras dispõe de grandes usinas já amortizadas e contratos de longo prazo com as distribuidoras de energia, garantindo um freio no preço das tarfas.

A privatização irá descontratar a energia. Significará que haverá o pagamento por uma nova outorga, que recairá sobre a conta do consumidor.

Em 2014, por questões políticas a Cemig, CESP e Copel se recusaram a aceitar a renovação das outorgas nos moldes propostas pelo governo. Significaria a renovação da concessão, mas mantendo o custo baixo das hidrelétricas já amortizadas, tendo uma margem de lucro de 10%.

Recusaram. Depois, tiveram que adquirir as concessões, pagando R$ 12 bilhões, obviamente repassado ao consumidor. A tarifa operacional, que era de 29,45 reais, saltou para 107,51 reais, inclusive nos contratos para o mercado regulado..
Há inúmeros exemplos de liberalização de mercado levando à alta da energia.

Nos Estados Unidos, 73% das hidrelétricas são estatais. Em Quebec, Canadá, a exploração é estatal, o que permitiu ao estado uma enorme competitividade. A empresa é obrigada a suprir as necessidades do estado com tarifas razoáveis. A sobra poder ser vendida para os EUA a preços mais elevados.

Nos EUA, quase todo o país é coberto por Administradores do Mercado de Energia, uma espécie de agência controlada pelos estados, donas de ¾ dos ativos de transmissão em suas áreas de atuação.




domingo, 23 de maio de 2021

“Acabou a corrupção”, cai o último baluarte da antipolítica, por Marcio Valley

"Os últimos acontecimentos sinalizam que a existência de corrupção no governo Bolsonaro foi escancarada de vez. A tendência, com a CPI e o desenvolvimento das investigações mencionadas, é que o castelo de cartas desabará totalmente. Com isso, cai a última ilusão dos bolsonaristas e demais adeptos da antipolítica"

A CPI da pandemia, o Jornal Nacional de ontem (18/05), acerca de possíveis desvios de dinheiro público ocorridos no Ministério da Saúde durante a gestão Pazuello, e os jornais de hoje, dando conta de uma devassa no Ministério do Meio Ambiente e no Ibama por determinação do ministro Alexandre de Moraes do STF, fizeram-me lembrar de duas manifestações minhas anteriores à eleição de Bolsonaro. Numa delas, em texto publicado em maio de 2017, aqui, afirmei que dentre as incontáveis características deletérias da personalidade e do caráter de Bolsonaro, existiam duas coisas “boas” que dele se poderia falar, ainda que de duvidoso mérito, a saber, transparência sobre si e nacionalismo. Falarei sobre essas duas características mais à frente, inclusive penitenciando-me por equívoco em relação a uma delas.

Na outra, publicada de forma limitada como podcast, sustentei à época que o então candidato do pastor Malafaia, não poderia sequer ser considerado um político liberal, como faziam seus simpatizantes. Um dos pilares do jornalismo liberal, a revista capitalista britânica The Economist, o classificou como radical, religioso nacionalista, demagogo de direita, apologista de ditadores e ameaça à democracia. Afora tantas “qualidades” pouco elogiáveis, disse eu que, especificamente no quesito honestidade no desempenho da função pública, o atual presidente jamais pareceu um modelo adequado de retidão moral. Não se poderia afirmar que fosse desonesto, porém, repito, não parecia ser. Diz o velho ditado romano: à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta.

Em tese, não haveria por que, sob o aspecto da honestidade, os eleitores depositarem nele a esperança da incorruptibilidade que desejavam em um novo governo pós-PT e pós-Temer. Isso porque, sempre tendo sido servidor público, primeiramente como militar e, depois, durante quase trinta anos, como parlamentar até 2019, quando chegou a presidente, e os filhos basicamente na mesma situação, ainda assim a família Bolsonaro amealhou um patrimônio invejável. E isso considerando que os Bolsonaro jamais alçaram voos políticos consideráveis, sempre “costeando o alambrado” (obrigado, Brizola) do baixo clero, ou seja, sem acesso ao controle de orçamentos. Ainda assim, o patrimônio familiar foi avaliado em janeiro de 2018 em mais de 15 milhões de reais[1]. Não que seja uma riqueza tão extensa assim, comparada com a dos bilionários, porém valores altos devem ser contextualizados, para melhor compreensão. Quatro pessoas ganhando 10 mil reais mensais cada um devem economizar 100% do salário (40 mil por mês) durante mais de 31 anos para acumular essa fortuna. Não posso responder por todos, mas digo que nem eu nem as pessoas ao meu redor conseguem economizar mais do que 15% do salário; afinal, temos que comer, morar, vestir, estudar, ter lazer e todas essas outras coisas cujo sentido costuma ser reunido na palavra “viver”. E o valor do patrimônio, ao que parece, foi subavaliado, pois dele constam pelo menos dois imóveis na Barra da Tijuca, bairro rico do Rio de Janeiro, avaliados à época em míseros 400 e 500 mil reais, respectivamente. Os valores foram considerados muito abaixo do preço de mercado pelo Conselho Federal de Corretores de Imóveis, que reconheceu a possibilidade de se tratar de lavagem de dinheiro. Ainda que não fosse considerada a subavaliação dos imóveis, o patrimônio já teria magnitude capaz de acender a luz de alerta. Não parece compatível com o salário de servidores públicos.

Bolsonaro esteve ainda envolvido na Lista de Furnas[2] e nas doações da JBS, empresa envolvida na Operação Carne Fraca, da Polícia Federal. Em abril de 2017, foi denunciado por usar a cota parlamentar para pagar viagens pelo país. Em janeiro de 2018, houve denúncia de que o deputado contratou uma servidora “fantasma” em Brasília. Como parlamentar, recebeu da Câmara auxílio-moradia de 1995 até o fim do mandato, com valor final de cerca de 3 mil reais, apesar de ter um apartamento de dois quartos em Brasília desde 1998. Indagado por jornalistas por que recebia o auxílio se possuía imóvel, disse, com toda a sua já conhecida elegância e comedimento, que utilizava o dinheiro para “comer gente”. Como se vê, ele não é “gente como a gente”, mas “gente que come gente” com dinheiro público. Essa pessoa é o presidente do Brasil…

Sem falar no já notório envolvimento da família no sistema de “rachadinhas”, através do qual o parlamentar se apropria do salário dos servidores de seu gabinete, total ou parcialmente. Tais evidências, aliada à conhecida associação com milicianos que exploram economicamente várias zonas territoriais do Rio de Janeiro, nas quais obtêm lucros consideráveis que partilham entre si e seus apoiadores, deveriam produzir, minimamente, uma dúvida razoável nos eleitores sobre a incorruptibilidade que os bolsonaristas costumam a ele atribuir. Contudo, foi eleito.

Ocorre que, após eleito, o atual presidente passou a adotar ações políticas, de âmbito nacional e internacional, bastante controvertidas e que, não somente não parecem produzir efeitos positivos para os brasileiros, como, pelo contrário, podem ser facilmente classificáveis como daninhas. Tais ações, inclusive, dada a possibilidade de ocultarem interesses financeiros ilícitos ocultos, reforçam as dúvidas sobre a retidão moral do atual ocupante do Palácio do Planalto.

Chegou o momento de voltar ao texto de 2017. Nele, a segunda coisa boa que apontei sobre Bolsonaro seria o fato de possuir uma inacreditável transparência sobre si mesmo, não exercitando a fácil hipocrisia para ocultar a própria malignidade. Pelo contrário, parece ter algum prazer secreto em causar horror no interlocutor ao se apresentar cruamente como é, revelando inteiramente suas opiniões anti-humanitárias. Isso, mantenho in totum: ele continua exercitando toda a sua sinceridade em se apresentar como o ser desprezível que é. Só não vê quem não quer ou quem lhe é igual e, por isso, torna-se incapaz de enxergar a malignidade que também carrega.

Todavia, apontei como sua primeira faceta favorável o fato de defender ideias nacionalistas e de proteção dos interesses nacionais. E é aqui que entra minha penitência. O exercício da presidência demonstrou amplamente o meu gigantesco equívoco. Sinceras desculpas. Muito longe de ser o nacionalista que parecia ser, revelou-se, como presidente, um entreguista extremado, ao ponto de provocar dúvidas razoáveis sobre a lisura dos comportamentos, tão estranhos são. Piorando essa condição, demonstrou-se um bajulador profundo do presidente de um outro país, Donald Trump, tanto que arriscou o interesse nacional em troca de um puxa-saquismo explícito, deslumbrado e vergonhoso de seu crush. Um presidente brasileiro dizer “I love you” para um congênere estrangeiro certamente marcará a história dos dois países envolvidos. Trump, visivelmente constrangido, devolveu com um acanhado e rápido “bom te ver de novo”, sumindo por entre os corredores, enquanto o “incomível” Bolsonaro, parado, o acompanhava com o olhar embevecido. Para o Brasil, constrangimento eterno; para os americanos, chacota e confirmação do sentimento de superioridade que sentem sobre nós, os cucarachas.

Num dos exemplos mais significativos de entreguismo, Bolsonaro cedeu para os americanos, de forma praticamente gratuita, o controle sobre o centro de lançamentos da base de Alcântara. Não houve sequer a exigência de transferência de tecnologia para o Brasil. Na verdade, dizem que, em troca, o Brasil receberia recursos para investimento no Programa Espacial Brasileiro, mas nada ficou muito claro para a população; qual seria o valor desse investimento? Não se sabe. Além do prejuízo com a perda de soberania sobre parte do território nacional, alguns brasileiros foram diretamente prejudicados pelo acordo; mais de 30 comunidades quilombolas tradicionais, por volta de 800 pessoas, foram ou serão remanejadas do local. Em resumo: os americanos ganharam de presente a possibilidade de lançarem foguetes, satélites e espaçonaves em princípio por uma fração ínfima do que gastariam lançando-os de seu próprio território; os brasileiros, por outro lado, receberão uma miséria e não aprenderão nada com esses lançamentos. Pasmem, nós ainda custearemos as altíssimas despesas de manutenção da base. Os mexicanos, briosos e altivos, se recusaram a arcar com o “Muro da Vergonha”, como queria Trump; os brasileiros pagarão sem reclamações as despesas para manter a “Base de Lançamento da Humilhação” em perfeitas condições para ser usada e abusada pelos yankees. Bolsonaro entregou de mão beijada, sem pedir nada em troca, valores e interesses nacionais vinculados à aquisição de tecnologia aeroespacial brasileira que os americanos sempre cobiçaram e que todos os presidentes anteriores a Temer (ao que parece, foi em seu governo que se iniciou a negociação) recusaram-se a ceder a eles ou a qualquer outra nação, aí incluídos os ditadores do regime militar. Além disso, em plebiscito realizado em 2002, 99% dos eleitores posicionaram-se contra a entrega da base aos americanos, de modo que violou seu dever como mandatário ao praticar ato contrário à vontade dos outorgantes do mandato, vontade em tese ainda vigente, pois não realizado novo plebiscito sobre o tema. Em princípio, creia quem quiser, foi um inacreditável negócio da China assinado pelo sinofóbico Ernesto Araújo em favor dos EUA, sem visível contrapartida benéfica para os brasileiros. Parodiando Juca Chaves[3]: ah, mas que ladrões (eles, os americanos, claro)…

Bolsonaro também favoreceu os EUA através da isenção de imposto de importação sobre o etanol americano, que foi simplesmente zerado até uma determinada cota, suficientemente grande para agradá-los. E também liberou o açúcar americano de imposto, novamente até uma determinada cota de importação, envolvendo quantidades altíssimas. Tais medidas geraram evidente desvantagem competitiva para o setor agrícola brasileiro, colocando em posição vantajosa os produtores rurais daquele país e provocando prejuízo para os nossos, principalmente os pequenos produtores, que já vinham amargurando a queda do consumo de combustível provocada pela pandemia. A medida contrariou posicionamento expresso da Frente Parlamentar Agropecuária, Sociedade Rural Brasileira e União da Indústria da Cana-de-açúcar, dentre outros. Os americanos, por sua vez, soberanamente como costumam agir os soberanos incontestados, não exerceram reciprocidade tarifária alguma em nosso favor. Esse contrato também teve a participação do valoroso Ernesto Araújo, sempre cioso dos interesses nacionais, como disse de si próprio em sua recente inquirição perante o Senado. Na interpretação mais simplória, Bolsonaro teria objetivado beneficiar a campanha de Trump à reeleição, contra Biden. Ainda que fosse assim, seria contrária aos interesses brasileiros, primeiro, por prejudicar nossos produtores e, portanto, nossos empregos; segundo, porque o Brasil deve manter relações amistosas com países, não com presidentes, como ensinou a senadora Kátia Abreu ao ex-ministro olavista.

Em outra demonstração de servilidade, e aparentemente sem pedido da diplomacia americana, Bolsonaro concedeu isenção de visto para turistas americanos, sem exigir reciprocidade para os brasileiros que desejassem ingressar no território americano. Ao fim das contas, o gesto simboliza a ideia de que os estadunidenses são melhores do que os brasileiros; eles não precisam enfrentar filas, pagar taxas ou obter autorização especial para vir aqui, mas nós temos que nos sujeitar às exigências deles para colocar os pés em solo americano. Vale lembrar que o inciso V do artigo 4º da Constituição determina a igualdade entre os Estados, enquanto seu artigo 178 exige que a ordenação do transporte internacional observe os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. A decisão, pois, ao menos em tese, fere a soberania nacional nos contornos definidos pela Carta Magna e ofende violentamente o sentimento de amor-próprio e orgulho de ser brasileiro que muitos de nós, isentos dessa síndrome de cachorro vira-latas que induz tantos a se sentirem menos valiosos do que americanos e europeus, carrega nos espíritos. Novamente, indaga-se: qual a contrapartida favorável para o Brasil? Incentivo à economia através do turismo americano, como alegam? Quais estudos embasavam essa visão? Se for assim, não seria ainda maior incentivo a abertura de portos e aeroportos para todas as nações, indiscriminadamente? Por que motivo beneficiar especificamente os americanos?

Outra renúncia estranha praticada por Bolsonaro foi abdicar, a pedido de seu crush, Trump, do status de “país em desenvolvimento” perante a Organização Mundial do Comércio (OMC). O enquadramento dava ao Brasil condições especiais frente aos países centrais, com tratamento mais leniente na análise dos contratos internacionais, como os relativos a impostos, concessão de subsídios, prazos para pagar eventuais multas e outros. A perda da condição tornou mais gravosos os contratos, encarecendo as negociações de nossos produtores. A desculpa dada foi o desejo de obter apoio americano ao ingresso do país no seleto grupo de 36 países que compõem a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Interessante destacar que, assim como ocorreu na negociata da base de Alcântara, nenhum presidente anterior a Temer tentou ingressar na OCDE; o prejuízo imediato era evidente aos olhos de qualquer ministro das relações exteriores que não se chame Ernesto Araújo. Não bastasse isso, já por si prejudicial aos nossos interesses, Bolsonaro ainda concedeu, com o mesmo objetivo, isenção tarifária ao trigo americano, prejudicando nossa parceira do Mercosul, a Argentina. E os EUA, o que fizeram em benefício do Brasil? Absolutamente nada. O governo Trump limitou-se a afirmar, em março de 2019, que apoiaria a admissão do Brasil na OCDE; contudo, descaradamente, sete meses depois, em outubro, apoiou a Argentina.

Qual a contrapartida para decisões tão prejudiciais aos cofres públicos, aos interesses do país e impopulares entre nossos produtores? À mostra, no papel, nenhuma; por trás dos panos, quem poderá dizer? E sobre tais tratativas de alta envergadura, com concessões desfavoráveis ao Brasil e sem contrapartida aparente alguma, existem provas de corrupção? Concretamente, é preciso reconhecer, não. Porém, existem zero investigações em andamento até onde se sabe, tampouco informação de que algum órgão fiscalizador ou algum jornalista as tenha investigado a fundo, inclusive dadas as dificuldades que seriam encontradas, envolvendo sigilo de estado de duas imensas nações mundiais. É sempre possível manter a aura de honestidade enquanto nenhuma investigação séria e aprofundada é realizada.

O que diferencia um governante honesto de outro desonesto não é a existência de manchetes noticiando a corrupção, nem mesmo a multiplicação de procedimentos penais. É sempre possível criar factoides e escandalizar o banal, basta querer, principalmente nesse novo mundo de fake news e gabinetes de ódio. Chama-se “sofisma do mundo ideal”, significando que, como nada é perfeito, sempre se pode produzir críticas, mesmo a partir de fatos positivos e maravilhosos. Quando é um amigo no poder, tudo é percebido como bom e as críticas silenciam; quando é um inimigo, tudo é ruim e as críticas se multiplicam. Sendo assim, o melhor meio de aferir a honestidade ou desonestidade de um governante é a partir da visualização do modo como ele encara a fiscalização levada a efeito pelas instituições. O governante honesto não interferirá nos trabalhos, confiando no império do direito e da justiça, mesmo quando tudo indica estarem acumpliciados para prejudicá-lo. A confiança é de que, em algum momento, o sistema funcionará. O desonesto, por sua vez, fará de tudo para impedir a averiguação e dificultar o trabalho institucional; tentará evitar acusações contra si, contra sua família, contra seus amigos e cúmplices; orientará seu Ministro da Justiça a iniciar procedimentos criminais contra todos os que ousarem produzir críticas ao seu governo; buscará influir na direção das polícias para ser cientificado com rapidez sobre toda e qualquer investigação que se aproxime de si ou dos seus, objetivando tanto impedi-las como facilitar a ocultação de provas; tentará nomear para a Procuradoria-Geral da República e para os tribunais superiores pessoas pusilânimes, orientados pela covardia moral ou que rezem pela mesma cartilha ideológica; criará entraves para o acesso aos dados do governo, classificando o máximo possível como sigiloso e por longo tempo; enfim, adotará todas as medidas ao seu alcance para que as instituições se voltem somente contra os inimigos, jamais contra si e contra os seus. Um governante verdadeiramente honesto e de caráter induvidoso jamais puniria ou transferiria para local distante um fiscal que o multou por alguma irregularidade ocorrida antes ou depois de sua eleição e mesmo se isso fosse feito à sua revelia, buscaria reverter a situação para sequer passar a impressão aos eleitores de que persegue um simples servidor que cumpriu sua missão; como todo bom cidadão, compete-lhe recorrer da multa administrativa ou judicialmente e, caso mantida a multa, pagá-la pacificamente, como é obrigação de todo infrator.
         
As ações políticas duvidosas a que me referi acima dificilmente serão investigadas. Felizmente, porém, outras já se encontram sob investigação. A CPI da pandemia investigará a intensa, obsessiva e inexplicável propaganda governamental sobre a cloroquina, absurdamente contrária às recomendações científicas parametrizadas pela própria OMS. Existem indícios de interesses corporativos por detrás desse furor bolsonarista e se isso for confirmado pela CPI, o próximo e óbvio passo será investigar a possibilidade de corrupção para o fomento da droga ao custo da saúde e da vida dos brasileiros.

E mais, finalmente parece que o ministro do “passa a boiada”, Ricardo Salles, responderá por seus atos irresponsáveis na administração do meio-ambiente. A pergunta de alguns milhões de dólares é: por que Bolsonaro insistiu em mantê-lo no governo, mesmo ciente da insatisfação generalizada do povo brasileiro, da imprensa, dos dirigentes de outros países, de organismos internacionais, parceiros comerciais e também da classe política brasileira? Será que é só teimosia e turra? Ou existirão interesses inconfessáveis por trás da proteção aos devastadores e ao rico comércio da madeira ilegal? Tudo indica que o ministro Alexandre de Moraes, dado o seu histórico no STF, não deixará barato essa história e investigará até o final. Esperemos. Porém, é importante salientar a origem da investigação. Teria partido da briosa corporação comandada por Augusto Aras, tão célere quando é um governante de esquerda o suspeito? Da polícia federal, das controladorias, dos tribunais de contas, afinal, que pessoa ou entidade solicitou essa investigação? Infelizmente para nós, apesar de todas as diatribes praticadas por nosso ministro, o pedido não partiu de nenhuma instituição brasileira, mas de autoridades estrangeiras escandalizadas com a quantidade de madeira ilegal que desaguou em seus países. Em pouco mais de um ano, a partir de 2019, esses países receberam mais de 8 mil cargas de madeira exportadas ilegalmente, com evidências gritantes de desvio de conduta de servidores públicos brasileiros. Alguém se lembra de Salles à frente daquela montanha de madeira ilegal, defendendo os devastadores, enquanto afastava o delegado que denunciou o esquema? Pois é, alguns ainda se revoltam com o fato de que os organismos internacionais deixaram de enviar recursos para a proteção dos nossos biomas…

E a mais nova suspeita de negócios escusos envolvendo o governo Bolsonaro foi noticiada ontem no Jornal Nacional. Trata-se de um obscuro contrato envolvendo a reforma de galpões que serviriam para o Ministério da Saúde. Como costuma ocorrer nesses episódios esquisitos, os contratos são milionários (por volta de 30 milhões de reais), não há licitação e as empresas contratadas são obscuras, não parecendo ter a estrutura necessária para a conclusão do negócio. Uma das empresas pertence aos mesmos sócios de uma outra empresa que foi condenada por venda de material de informática para a Aeronáutica e que jamais foi entregue; por isso foi impedida de contratar com a administração pública. Solução? A de sempre: montaram outra empresa e já estão negociando novamente com os militares. A investigação prosseguirá.

Os últimos acontecimentos sinalizam que a existência de corrupção no governo Bolsonaro foi escancarada de vez. A tendência, com a CPI e o desenvolvimento das investigações mencionadas, é que o castelo de cartas desabará totalmente. Com isso, cai a última ilusão dos bolsonaristas e demais adeptos da antipolítica: a de que seria possível ao governo de um país com as dimensões do Brasil deixar de conviver com a corrupção. Não se trata de aceitá-la, nem tampouco de comemorar a notícia de corrupção, sempre lamentável. Trata-se de entender que a doença somente começa a ser combatida quando se admite a sua existência; de perceber que a corrupção é resiliente e resiste, entranhada na estrutura da administração; de admitir que nem sempre sua constatação implica vício do governante (embora ocasionalmente possa ser). A corrupção é um mal inerente ao sistema que adotamos para a sociedade humana e há de ser combatida como os demais males sociais, como homicídio, roubo e outras violências contra a pessoa e contra o patrimônio. Ou seja, sem histeria, dentro da normalidade democrática e utilizando as armas da investigação policial e do sistema judicial, porém sempre sob o domínio do devido processo legal, do direito à ampla defesa e exercício do contraditório. Estivemos nos últimos anos brincando com o fascismo da condenação inquisitorial, com redução ou sonegação de direitos e algumas vezes até sem provas. Como consequência, chegamos ao ponto possivelmente mais decadente no que toca aos direitos conquistados pela força do avanço civilizatório.

É hora da virada em direção ao retorno à normalidade democrática. Creio estar demonstrado, para além de qualquer dúvida, pelos problemas do atual governo ou pelos exemplos históricos dos governos antecedentes, recentes ou mais distantes no passado, que a corrupção não é domínio exclusivo de um único partido, de uma determinada ideologia ou de um específico governante. Independentemente de quem vença as próximas eleições, de 2022 ou as posteriores, será sempre um problema a ser enfrentado. É claro que algum desonesto pode ser eleito, como antes já foi. A possibilidade dramatiza uma situação por si ruim. Porém, mesmo os honestos não podem garantir que seu governo será isento de casos de desonestidade no trato da coisa pública. Seja num caso, seja no outro, a questão deve ser enfrentada exclusivamente pela via institucional, que embora não seja perfeita, por ora é melhor do que as alternativas da injustiça moralista ou da ditadura que amordaça. Justamente para evitar o trabalho das instituições é que governantes desonestos tendem a desejar impor uma ditadura: isso impossibilita investigações. Ditaduras, de modo geral, sempre podem invocar a honestidade como um benefício, pois eventuais acusações de desvios dificilmente produzem condenações: acusadores e testemunhas costumam sumir. Essa é uma das razões pelas quais algumas pessoas continuam a acreditar na ausência de corrupção dos governos militares. Nunca faltou corrupção, mas faltou manchete, investigação, acusação e condenação.

Para finalizar, entendo que, paradoxalmente, os últimos e desalentadores acontecimentos podem ser um alento. Ao que tudo indica, a desilusão de alguns pode estar sinalizando o retorno à sanidade de muitos. Para o bem de todos, que assim seja!

[1]     Matéria do jornal Último Segundo, disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-01-07/jair-bolsonaro-patrimonio-familia.html, acesso em 19/05/2021.

[2]     Esquema de corrupção e lavagem de dinheiro ocorrido em 2002, envolvendo a estatal Furnas Centrais Elétricas, daí o nome, cujo objetivo era o financiamento ilegal de campanhas políticas.

[3]     Canção “Brasil Já Vai a Guerra”, do compositor e comediante Juca Chaves, e que criticava a compra pelo Brasil, em 1956, do porta-aviões Minas Gerais por preço considerado superfaturado, cuja primeira estrofe é assim: “Brasil já vai a guerra, comprou porta-aviões / Um viva pra Inglaterra, de oitenta e dois bilhões / Ah, mas que ladrões (os ingleses)”.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN.

Efeito Bolsonaro: Carestia elimina carne do prato do brasileiro. Por Milton Alves

"Serviçal do agronegócio e dos especuladores financeiros, o governo Bolsonaro não tem nenhum compromisso no enfrentamento da questão da fome e da inflação de alimentos", escreve o colunista Milton Alves

(Foto: ABr | Reuters)

O dia estava ensolarado em Brasília no dia das mães, e o presidente Jair Bolsonaro aproveitou para reunir um grupo de amigos, até aí nada de mais. A surpresa daquele dia não foi uma nenhuma declaração bombástica ou provocadora de Bolsonaro, o que chamou a atenção foi a ostentação do presidente que degustou uma macia e suculenta peça de picanha de gado importado do Japão ao preço de R$ de 1.800 o quilo – o corte da raça Wagyu é uma iguaria para poucos, pouquíssimos.

Enquanto isso, a maioria da população brasileira viu a carne bovina, uma proteína tão apreciada no país, desaparecer do seu prato, assolada por uma inflação galopante, um desemprego recorde e uma pandemia que já bateu a marca de quase 450 mil mortos.

Ou seja, uma crise econômica e sanitária que penaliza severamente a imensa maioria da população, principalmente da classe trabalhadora. O gesto esnobe e boçal do presidente foi revelador do seu desprezo pelas agruras do povo.

Levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que o consumo de carne atingiu o seu menor nível em 25 anos. Só nos primeiros quatro meses do ano, o consumo per capita de carne bovina caiu mais de 4% em relação a 2020, informa o órgão governamental.

Segundo dados da Conab, hoje, cada brasileiro consome 26,4 quilos desta proteína ao ano, queda de quase 14% em relação a 2019, quando ainda não havia crise sanitária. Este é o menor nível desde 1996, início da série histórica da Conab.

A volta da inflação é mais um dos efeitos da política econômica desastrosa de Bolsonaro, que fez a opção de atrelar os preços dos produtos nacionais aos preços internacionais das commodities, elevando os custos das carnes, grãos e combustíveis no mercado interno. Além disso, a desvalorização do real reforçou a política do agronegócio de surfar na alta demanda internacional por alimentos, obtendo fabulosas margens de lucros no mercado externo.

Neste sentido, os preços dos produtos que integram a cesta básica do brasileiro ficaram mais caros. Segundo a última pesquisa feita pelo IBGE, o preço das carnes em geral subiu 35% no país nos 12 meses até o mês de abril.

Com o preço proibitivo da carne, os brasileiros optaram pelo consumo de frangos, suínos e ovos – o campeão de consumo das famílias nesta temporada de alta inflacionária. No entanto, isso não significou nenhum alívio para a bolsa do povo. O mesmo levantamento do IBGE constata uma disparada nos preços das carnes de frango e porco. Em 12 meses, a carne de porco acumula alta de 29,88%. O frango inteiro e frango em pedaços acumulam altas de 13,38% e 14,62%, respectivamente. Já o ovo de galinha subiu 5,27% neste período.

O surto de carestia é apenas uma das faces do problema, o mais grave é a volta da fome e do fenômeno da insegurança alimentar cotidiana, que afeta mais de 120 milhões de brasileiros – mais da metade da população. Um crime premeditado pela ganância capitalista contra o povo num país que produz milhões de toneladas de safras de grãos e possui rebanho suficiente para garantir com fartura a alimentação de todos os brasileiros.

O governo Bolsonaro, serviçal do agronegócio e dos especuladores financeiros, não tem nenhum compromisso no enfrentamento da questão da fome e da inflação de alimentos. Ao contrário, a política econômica bolsonarista é a responsável direta por tudo isso. Com Bolsonaro no governo, é mais carestia, fome e prato vazio na mesa.

Ao lado do combate pelo fim do governo Bolsonaro, é urgente a demanda por políticas imediatas como o tabelamento dos produtos da cesta básica, o congelamento das tarifas de gás, água e energia elétrica, a distribuição pelos governos de cestas básicas para as famílias em situação de fome, a volta do auxílio emergencial de R$ 600 e medidas para ampliar o financiamento da agricultura familiar.

*Jornalista e sociólogo



quarta-feira, 12 de maio de 2021

Postura anticiência não é coincidência, é projeto. Por Madalena Guasco Peixoto

'É o próprio governo que se escancara incompatível com a ciência, com a tecnologia, com o desenvolvimento sustentável e com qualquer combate à desigualdade.'

Por Madalena Guasco Peixoto*
Foto: Sergio Lima/AFP

Esteve em todos os noticiários desta semana o depoimento do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, confirmando, com todas as palavras, o que o Brasil e o mundo já sabiam: que o presidente Jair Bolsonaro contrariou orientações baseadas na ciência para o combate à pandemia do coronavírus. Uma das declarações de Mandetta foi, por exemplo, de ter mostrado a Bolsonaro projeções sobre a evolução da pandemia no Brasil, indicando que o Brasil poderia atingir 180 mil mortes até o fim de 2020. O presidente, contudo, duvidou — dos infectologistas, dos microbiologistas, das autoridades sanitárias, das estatísticas, dos prognósticos científicos, da própria ciência —, do mesmo modo como o fez quando cogitou modificar a bula da cloroquina por meio de decreto presidencial para indicar o uso do medicamento contra a Covid-19 só porque quis assim.

Podem parecer assuntos desconexos, mas as revelações da CPI da Covid nos últimos dias têm muito a ver com o constrangimento representado pela nomeação, há algumas semanas, da advogada Cláudia Mansani Queda de Toledo, para a presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E não é pelo fato de a nova presidente ter tido um curso de pós-graduação que coordenava com recomendação de descredenciamento pela própria Capes em 2017 em razão de não ter atingido a nota mínima para continuar em funcionamento. É, na verdade, pelo que esse fato evidencia: o desprezo do atual governo pela pós-graduação e pela pesquisa.

Levantamento feito pelo professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Nelson Cardoso Amaral, mestre em física e doutor em educação, e publicado no site “A terra é redonda”, mostra que os recursos financeiros da Capes sofreram uma queda de 65,3% de 2015 a 2021 — consequência direta, portanto, do golpe de 2016 e da posterior eleição de Bolsonaro — o que significou menos R$ 7,2 bilhões em investimentos. De forma semelhante, os recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sofreram uma redução de 69,4% de 2014 a 2021, passando de R$ 3 bilhões para um valor de R$ 918,1 milhões. Por sua vez, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) também teve uma forte redução em seus recursos, passando de quase R$ 4 bilhões em 2014 para um valor menor do que R$ 500 milhões em 2021, uma redução de 90,6%. Isso sem falar o corte em investimentos nas universidades federais como um todo, bem como em toda a educação e a saúde. Embora já pareça um clichê exaustivo, é importante repeti-lo: não é coincidência, é projeto.

Nas palavras da Carta Aberta em Defesa da Capes, assinada por mais de uma dezena de entidades educacionais e científicas, a nomeação representou “um exemplo contraditório para a juventude brasileira”, uma vez que essa juventude enxerga na Capes “uma instituição que lhes possa acenar com um futuro compatível com o projeto de nação e em sintonia com o trabalho indispensável da ciência e tecnologia para alavancar os rumos do país e combater os abismos de desigualdade que marcam nossa sociedade”. Como reforçado pelas entidades, a nomeação de alguém desqualificado para o cargo rompe com a tradição de pesquisa e ameaça a sustentabilidade da produção científica brasileira.

É justamente esse, no entanto, o projeto de poder de Bolsonaro. Não é apenas o currículo de Cláudia Toledo que se mostra incompatível para o comando da Capes. Ou, para manter o paralelo, não são somente as ações contra a Covid-19 que se evidenciam incompatíveis com as recomendações sanitárias defendidas até mesmo pelos primeiros ministros da Saúde que, por isso mesmo, deixaram o cargo (embora eles próprios não tenham conseguido, por conveniência ou por covardia, conduzir o enfrentamento à pandemia da melhor forma). É o próprio governo que se escancara incompatível com a ciência, com a tecnologia, com o desenvolvimento sustentável e com qualquer combate à desigualdade. O que a Covid-19 veio desnudar é que não são apenas as ciências humanas as atingidas pelo desse governo. O desprezo em questão é generalizado e as áreas de exatas e da saúde também o estão sentindo na pele.

*Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Contee e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP





segunda-feira, 10 de maio de 2021

Breve apresentação para entender o pensamento e a produção de Paulo Freire, artigo de Sérgio Ribeiro

'O ato de educar e aprender é um ato político sempre. Seja para manter a estrutura social dominante e o status quo ou para se formar cidadãos críticos'

(Copyright – Paulo Freire / Instituto Paulo Freire)

Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) é o acadêmico brasileiro mais conhecido, reconhecido e estudado internacionalmente, sendo o terceiro nas áreas humanas em todo o mundo em citações. Paradoxalmente, em território nacional seu nome e sua obra foram apropriados, tanto por segmentos políticos da esquerda quanto da direita. Contudo, seja em termos laudatórios ou para detrações, a obra freiriana carece de estudos mais críticos e não muitos se dedicam a esta tarefa, relegando assim seu autor ao embate de representações. A propósito, Freire teve sua obra proibida na comunista Alemanha Oriental, pela sua defesa do livre pensamento.

Para entender o pensamento e a produção de Paulo Freire alguns cuidados iniciais devem ser tomados. Em primeiro lugar, a tão alardeada “Metodologia Paulo Freire” foi um programa de alfabetização para adultos, e não para crianças, tendo como projeto piloto uma comunidade de cortadores de cana-de-açúcar, na cidade de Angicos, RN, no início da década de 1960.

O resultado foi a alfabetização de 300 adultos, no período de 40 dias em aulas noturnas. Cabe destacar que essa ação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) foi adotada pelo Programa Nacional de Alfabetização e durou até 1964. O método consistia em, a partir da realidade e necessidades locais, tendo por base o próprio vocabulário, alfabetizar o adulto tendo como ponto de partida o seu próprio mundo (um exemplo do uso deste método foi a alfabetização pela leitura da Bíblia). Contudo, o objetivo não era apenas ensinar a ler textos, e sim, ensinar a ler o mundo.

Para se entender o pensamento freiriano na Pedagogia do Oprimido, sua obra mais conhecida, mas que reflete seu pensamento no início de sua trajetória acadêmica, se faz necessário um conhecimento a priori da filosofia hegeliana, marxista, fenomenológica e existencialista. Neste livro é perceptível a adoção de uma análise que busca interpretar a sociedade como um reflexo que tem por base o modo de produção. Também é presente a tese da luta entre opressores e oprimidos e a necessidade que o indivíduo tem de ter consciência de si, de classe e do mundo em que vive, vendo a si mesmo como agente transformador da realidade à sua volta e construtor da sua história.

Contudo, o pensamento de Freire se desenvolve, teses são revistas e outras ideias são mais bem elaboradas. Podemos citar a sua denúncia ao que ele chamava de “educação bancária”, ou seja, os alunos apenas como repositórios passivos de conteúdo, sem a necessidade de elaborá-los e sobre eles refletir. Neste sentido, sua análise é de que não existe educação neutra. O ato de educar e aprender é um ato político sempre. Seja para manter a estrutura social dominante e o status quo ou para se formar cidadãos críticos, reflexivos, capazes de assumirem o controle de suas próprias vidas e de transformar a realidade social em que estão inseridos.

Deve-se destacar ainda que, para Freire, não existe educação no autoritarismo e no totalitarismo, apenas reprodução. Aprender é um ato dialógico, em que professor e aluno caminham juntos, descobrem juntos e aprendem juntos, ou seja, ela deve ser democrática e dialógica. Não significa o desprezo pelo conteúdo, e sim não ensinar o conteúdo apenas pelo conteúdo.

Entre 1964 e 1980 Paulo Freire viveu exilado no Exterior, onde lecionou em renomadas universidades do mundo, como em Harvard e Cambridge, trabalhou como assessor na ONU para a Agricultura e Combate à Fome e em Genebra, no Concílio Mundial de Igrejas (CMI). Como secretário da Educação em São Paulo, criou o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos que serviu como base para o conhecido EJA (Educação de Jovens e Adultos). Atualmente, os estudos em Aprendizagem Transformadora têm por base os estudos de Paulo Freire e, recentemente, o sociólogo da educação, o britânico Michael Young, professor na London School, em palestra no Brasil afirmou que “nenhum país no mundo tem um educador tão conhecido e reconhecido mundialmente, e que faríamos bem em prestar atenção um pouco mais nisso”.

Pode-se não concordar com Paulo Freire, mas para isso deve haver a honestidade intelectual de se refutar à mesma altura e com as mesmas qualidades de estudo e argumentos, num ambiente em que o debate das ideias seja livre e democrático e sem preconceitos.

A simples estigmatização sem o devido conhecimento de sua obra em nada contribui para a educação. Aliás, nunca houve um método Paulo Freire nas escolas, mesmo porque, em sua fase mais produtiva, nem no Brasil ele estava. Os imensos gargalos educacionais do nosso país se devem muito mais ao fato de que a educação nunca foi um projeto de Estado. Inclusive, culpar o socialismo ou políticas de esquerda pelo mau desempenho nesta área é desconhecer o contexto geral.

Basta olharmos para as sociais-democracias escandinavas, para Rússia, China e mesmo Cuba e vermos que a questão exige um debate bem mais amplo. Mas, retomando, ninguém seria laureado com mais de 30 doutorados honoris causa e com diversos centros de estudo ao redor do mundo com o seu nome, como na Finlândia, Dinamarca, EUA, Alemanha, Reino Unido, entre outros países, se não tivesse o seu valor. Aliás, infelizmente, como ocorre com boa parte dos talentos brasileiros, muitos destes são mais reconhecidos no Exterior do que em seu país.

Por fim, a obra de um acadêmico deve ser estudada em seu todo, no seu próprio contexto e com honestidade. Mesmo porque, o próprio autor revê suas teses ao longo de sua trajetória e produção. Freire trabalhou com alguns princípios marxistas de interpretação da realidade social, mas também trabalhou com outros teóricos e a eles se alinhou.

Defendeu uma escola pública de qualidade, igualdade de oportunidades, uma formação reflexiva e crítica, lutou pelo reconhecimento e dignificação do ofício de professor, nunca pôs o seu talento a serviço das elites e sempre se importou com aqueles que estiveram à margem da sociedade. Desagradou muitos que estavam à sua direita ou à sua esquerda. Mas deixou o seu legado e o reconhecimento de uma obra inegável.

*Sérgio Ribeiro é coordenador e professor do curso de História da Universidade Presbiteriana Mackenzie.