"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Bolsonaro e o Centrão: tudo a ver, por Antonio Lassance

Em seus quase 30 anos como deputado federal, Bolsonaro passou por seis partidos, todos do Centrão, antes de pular para o PSL

*Por Antonio Lassance | Artigos - GGN
Foto: BBC
Se engana quem pensa que Bolsonaro e o famigerado Centrão são como água e óleo. Sabe de nada o inocente que acha difícil o presidente fechar acordo com o bloco do “é dando que se recebe” (mantra de um dos pais fundadores do Centrão, o deputado Roberto Cardoso Alves). A operação não é nenhum bicho de sete cabeças. O bolsonarismo já tem até um discurso de arroz de festa para jogar quando Bolsonaro e o Centrão saírem de mãos dadas.

Em primeiro lugar, é bom lembrar que o Centrão já estava no governo Bolsonaro desde o início, com os três mosqueteiros: Onyx Lorenzoni, Luiz Henrique Mandetta e Osmar Terra.

Certamente, ninguém do Centrão reivindicava a paternidade e se dizia satisfeito quanto a quaisquer dessas indicações. De fato, o dia em que o Centrão se disser satisfeito com os cargos que tem, já não será mais o Centrão. Mas o bloco manifestou seu desagrado quando Onyx Lorenzoni foi deslocado da Casa Civil para o Ministério da Cidadania. Osmar Terra foi defenestrado, mas curiosamente seu empenho em agradar Bolsonaro só fez aumentar. Mandetta foi lançado aos tubarões, mas seu o ex-chefe de gabinete foi nomeado na Anvisa, atendendo a pedido do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM).

Em seus quase 30 anos como deputado federal, Bolsonaro passou por seis partidos, todos do Centrão, antes de pular para o PSL:  PPR (1993-95), PPB (1995-2003), PTB (2003-2005), PFL (2005), PP (2005-2016) e PSC (2016-2017). Pode-se dizer que Bolsonaro sempre foi Centrão ou, na melhor das hipóteses, sempre soube exatamente como lidar com ele, por dentro. Note que, só no Partido Progressista (PP), partido de Maluf, Ciro Nogueira, Arthur Lira, Eduardo da Fonte, Pedro Corrêa, entre outros expoentes, Bolsonaro passou mais de uma década.

Detalhe importante: na Câmara, onde fica o botão que aciona a máquina do “impeachment”, mais de dois terços dos parlamentares “terrivelmente evangélicos” habitam hoje justamente o Centrão.

É um senhor cacife e uma bela desculpa para se propor namoro, noivado e casamento ao Centrão em tempo recorde. O mais bacana é que, na entrevista coletiva lá na grade do Alvorada, o “affair” não seria anunciado como troca-troca, e sim, dízimo, para os aplausos e “améns” da claque.

A propósito, da última vez em que o botão do “impeachment” foi acionado, quem comandava o Centrão e ditava a agenda do país, a partir da Câmara dos Deputados, era um senhor de nome Eduardo Cunha (MDB-RJ). Além de Centrão, Cunha era o maior expoente justamente da bancada evangélica daquela legislatura. Acabaria preso e acusado, entre outras coisas, de ter dinheiro de propina e também um Porsche em nome de uma empresa chamada “Jesus.com”.

Atualmente, dos 200 deputados que se calcula integrarem o Centrão naquela casa, mais de 26% (cerca de 52 deputados) são da bancada evangélica. Ou seja, em cada quatro deputados desse bloco que é sempre o fiel ou o infiel de qualquer balança, um é evangélico (vide tabela ao final).

Em suma, Bolsonaro e o Centrão não estão longe de um acordo. Os dois se conhecem e sabem do que estão falando. A questão só tem um enrosco: não é tão fácil alinhar essa narrativa às preferências de todos os parlamentares do bloco, mesmo dentro da bancada evangélica. A Bíblia do Centrão, na verdade, chama-se Diário Oficial.

Fonte: tabela do autor com base em dados do Diap, Radiografia do Novo Congresso: Legislatura 2019-2023. Brasília-DF: DIAP, 2018. 164 p. Disponível em:  https://www.urbanitariosdf.org.br/wp-content/uploads/radiografia_do_novo_congresso_-_legislatura_de_2019_a_2023.pdf

Obs1: ao contrário do que é mais comum entre os analistas, o DIAP não costuma incluir o MDB no Centrão. Historicamente, o Centrão era uma aliança que reunia setores de direita de vários partidos, tendo alguns de seus principais expoentes parlamentares do PMDB, como Expedito Machado (PMDB-CE), Luis Roberto Ponte (PMDB-RS) e Daso Coimbra (PDMB-RJ).

Obs 2: A respeito da história do Centrão, leia o excelente artigo de Antônio Augusto de Queiroz (o Toninho do Diap), “Centrão: passado, presente e futuro”. Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/centrao-passado-presente-e-futuro/

Obs3: Atualmente, não todo o MDB, mas uma parcela importante – e certamente a parte evangélica do MDB – tem se articulado em torno desse bloco informal conhecido pelo nome de Centrão. Por isso esses parlamentares aparecem na tabela.

*Antonio Lassance é cientista político.



quarta-feira, 29 de abril de 2020

E daí? Por Régis Barros

Em meio ao caos e as incertezas sobre o futuro, eis que desdenhosamente escutamos isso.

*Por Régis Barros
Publicado originalmente na página do Facebook da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia - ABMMD - CE.


Guardem essa expressão. Ela pode parecer boba, mas diz muito. Ela foi dita hoje (28). Vocês viram e escutaram. Isso não é uma invenção minha ou da imprensa. Ela foi falada. Ao ser questionado, aquele que deveria liderar as ações contra a COVID-19 iniciou sua fala mórbida com esse “e daí?”. Depois, todos podem checar o restante da fala. Ela é digna de pena e de revolta. Desrespeito e ausência de empatia. Já temos mais de 5.000 óbitos e mais de 70.000 casos registrados. E olhe que a subnotificação de ambos os números é importante. Ou seja, estamos começando a alcançar aquilo que alguns países europeus viveram semanas atrás. Mortes, desespero e dor. A morte de uma pessoa amada já traz naturalmente dor, porém, nas circunstâncias de colapso do sistema, produzido pela COVID-19, é muito mais doloroso. Escolhas de quem vive e de quem morre, mortes solitárias, ausência de velórios e impotência preenchem a realidade. Nenhum chefe de estado desdenhou desse cenário. Nenhum chefe de estado teve postura pouco empática com aqueles que morreram e com os seus familiares.

Portanto, “e daí?” é “o raio que o parta”! Quanta cretinice. Quanta safadeza. Em meio ao caos e as incertezas sobre o futuro, eis que desdenhosamente escutamos isso. Quem falou isso, certamente, tem em sua estrutura uma marca bem comum na sociopatia – o desrespeito pelo alheio preenchido pela falta de remorso e de culpa. Chegamos num ponto em que não temos mais uma pauta política e ideológica, mas sim uma questão de lutar por humanidade. Deixo aqui os meus sinceros sentimentos a todos os familiares dos mais de 5.000 falecidos pela COVID-19 no Brasil.

*Régis Barros é médico psiquiatra, mestre e doutor em saúde mental.

sábado, 25 de abril de 2020

O futuro de Bolsonaro. Por Fernando Hideo

Por Fernando Hideo
Publicado originalmente no Blog do autor:
Sérgio Moro já entrou para a história como juiz que condena sem provas. Entrará para a história também como político que acusa sem provas? Ou conseguirá usar a cabeça de Bolsonaro como trampolim para seu projeto pessoal de poder?

Ao deixar o cargo de Ministro da Justiça, Moro apostou alto e fez graves acusações de crimes comuns e crimes de responsabilidade praticados pelo presidente.

Na sequência, vazou ao Jornal Nacional conversa de WhatsApp em que Bolsonaro aponta a investigação de deputados aliados como motivo para a troca no comando da Polícia Federal.

É grave? Sem dúvida. Revela uma interferência do presidente na Polícia Federal para favorecer seus interesses pessoais.

É crime? Sim. Advocacia administrativa: Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário. Pena - detenção, de um a três meses, ou multa (Código Penal).

É crime de responsabilidade? Sim. Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: V - A probidade na administração (Lei 1.079/1950).

É suficiente para o afastamento de Bolsonaro? Ainda é cedo para dizer, porque depende da Câmara dos Deputados. Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade (Constituição Federal).

Além da renúncia, existem dois caminhos que já estão em andamento para a saída de Bolsonaro:

1. Afastamento pela prática de crime comum: o Ministério Público Federal formulou pedido de instauração de inquérito no STF para apurar os crimes de Bolsonaro narrados por Sérgio Moro. Na manifestação do PGR, são mencionados expressamente crimes que Bolsonaro teria cometido de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), coação no curso do processo (art. 344 do CP), advocacia administrativa (art. 321 do CP), prevaricação (art. 319 do CP), obstrução de Justiça (art. 1o, § 2o, da Lei 12.850/2013) corrupção passiva privilegiada (art. 313, § 2o, do CP). Caberá ao Min. Celso de Mello — o mesmo que, segundo pronunciamento de Bolsonaro, Moro gostaria de suceder em novembro —, decidir sobre a abertura do inquérito contra Bolsonaro e a oitiva formal de Sérgio Moro para confirmação dos fatos e apresentação de provas. Após a abertura e conclusão do inquérito, poderá haver denúncia do MPF contra Bolsonaro. Então caberia à Câmara dos Deputados, por 2/3 dos seus membros, admitir a acusação contra Bolsonaro. Uma vez admitida a acusação por crime comum, caberá ao STF receber a denúncia e julgar o presidente. Se a denúncia for recebida, Bolsonaro é automaticamente afastado do cargo e Mourão assume.

2. Afastamento pela prática de crime de responsabilidade: já há 25 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, pendentes de análise do presidente da Câmara. Se Rodrigo Maia abrir processo contra Bolsonaro, caberá à Câmara dos Deputados, também por 2/3 dos seus membros, admitir a acusação contra Bolsonaro. Uma vez admitida a acusação por crime de responsabilidade, caberá ao Senado Federal julgar o presidente. Após instauração do impeachment no Senado, Bolsonaro é automaticamente afastado do cargo e Mourão assume.

Sob o ponto de vista jurídico, as declarações de Sérgio Moro caracterizam sem sombra de dúvida a prática de crime comum e de crime de responsabilidade por Jair Bolsonaro. Mas isso não basta para afastar o presidente, é preciso que 2/3 dos Deputados Federais admitam as acusações.

Embora ainda seja prematura qualquer conclusão sobre o impacto decisivo perante a Câmara dos Deputados, é certo que o ataque de Moro vai interferir na temperatura do jogo político.

A guerra Moro x Bolsonaro está em aberto. Isso fica claro na manifestação do MPF, que embora aponte uma série de crimes supostamente cometidos por Jair Bolsonaro, afirma expressamente que, se as acusações não forem provadas, Sérgio Moro poderá responder por denunciação caluniosa e crimes contra a honra. Ou seja, para o MPF os dois devem ser investigados perante o STF.

Moro partiu para um ataque kamikaze. Além de responder por denunciação caluniosa e crimes contra a honra (já mencionados pelo MPF), suas confissões poderão voltar contra si em acusação de prevaricação ou condescendência criminosa por ter se calado durante tanto tempo frente a tantas e tamanhas ilegalidades. Mas não é ingênuo, sabe que conta com o apoio da Globo e do mercado, que o tem como embalagem mais palatável para o mesmo projeto golpista de extrema direita que está se esfacelando em razão da incompetência de Bolsonaro.

Alea jacta est.

PS - A contradição de Moro: não deixa de ser emblemático que as “provas” de Moro seja prints de conversas por aplicativo, as mesmas que ele desdenhou quando foi desmascarado pelo The Intercept. 

PS 2 - A coerência de Moro: a ética (ou a canalhice?) peculiar dos delatores incentivada pelo juiz Moro com prisões ilegais é a mesma usada pelo político Moro quando pressionado, utilizando de revelação de conversa íntima com alguem de quem foi padrinho de casamento.

PS 3 - O futuro de Moro: certamente o fantasma de Joaquim Barbosa, que foi dos holofotes ao ostracismo, assombrará o ex-juiz e ex-ministro.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Acabou Chorare: memórias sentimentais com Moraes Moreira (1947-2020). Por Cynara Menezes

"Moraes Moreira nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval baiano, que transformou uma festa popular numa farra milionária que separava com cordas o povo de quem podia pagar pelos abadás", escreve a jornalista Cynara Menezes

*Por Cynara Menezes
no Socialista Morena e para o Jornalistas pela Democracia 
 
Não bastasse toda a tristeza do coronavírus, ainda perdemos o Moraes Moreira em plena pandemia… Há alguns dias o cantor e compositor, baiano de Ituaçu, publicou um cordel no instagram falando da quarentena. “Eu temo o coronavírus/ E zelo por minha vida”, dizia Moraes nos versos, um manifesto contra a misoginia, o preconceito e outros males que nos assolam além do vírus, como a impunidade dos mandantes do assassinato de Marielle Franco.
A música de Moraes Moreira me transporta imediatamente à infância. Moraes cantava numa linguagem que agradava às gentes de qualquer idade. No meu caso, eu tinha uns 6 anos quando ouvi Pombo Correio pela primeira vez no velho trio elétrico instrumental, sem cantor, apenas com alto-falantes. O trio passava na porta das casas nas cidades do interior da Bahia, literalmente arrastando o povo pra rua…
Em 1975, um ano após deixar os Novos Baianos, Moraes criou letra para a música composta em 1952 pela dupla Dodô e Osmar, com o título de Double Morse. “Existia uma melodia composta por Dodô e Osmar em 1952 chamada Double Morse, inspirada no código Morse. Pensei em comunicação, e veio a imagem do pombo correio levando uma carta de amor. A música estourou, virou tema de abertura do telejornal Hoje e propaganda institucional dos Correios e Telégrafos”, contou Moraes ao jornalista Guilherme Bryan, da Rede Brasil Atual, na época do lançamento de seu segundo livro, Sonhos Elétricos, em 2011.
Poucos anos antes, ainda menorzinha, eu já tinha ouvido a maioria das músicas dos Novos Baianos, que fizeram um sucesso estrondoso e tocavam nas rádios de todo o país, mesmo sob a ditadura militar. Na voz de Moraes, Preta Pretinha cairia no gosto popular. Quem não sabe essa letra de cor?
Lançado em 1972, o álbum Acabou Chorareinfluenciado por João Gilberto, é um dos discos mais geniais da música brasileira e mundial. Vivendo em comunidade no Rio, Moraes, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Pepeu Gomes fizeram um som irrepetível, influência para toda a nova geração de músicos que os seguiram. O próprio Moraes Moreira considerava o disco “uma Bíblia” à qual todo mundo volta para consultar…
Na adolescência, continuei a curtir Moraes Moreira como autor da maior parte das marchinhas de carnaval na Bahia. Vassourinha ElétricaGrito de GuerraChame Gente e Balança o Chão da Praça de fato faziam o chão da Praça Castro Alves, tremer, com Moraes acompanhando o trio de seus velhos parceiros Armandinho, Dodô e Osmar.
Imaginem uma catarse coletiva e vocês não chegarão nem perto do que era o carnaval de Salvador nesta época. Eu voltava pra casa de manhã, com a unha do pé preta de tanto levar pisão no meio da turba. E quem disse que eu sentia na hora? Só depois…
Moraes Moreira continuou participando de minha vida em outro momento, quando tive o primeiro filho, em 1991. Duas canções na voz dele adoçaram a infância do meu menino, que até hoje se emociona ao ouvi-las. A primeira é As Abelhas, do especial Arca de Noé, da Globo, com músicas feitas a partir de poemas de Vinicius de Moraes, que eu também tinha adorado quando criança.
 A outra canção é Lenda do Pégaso, parceria de Moraes com Jorge Mautner que meu filho, aos 4, 5 anos, ouvia sempre com os olhos marejados. Achava a letra tristíssima. “Era uma vez, vejam vocês,/um passarinho feio/ Que não sabia o que era, nem de onde veio/ Então vivia, vivia a sonhar em ser o que não era/ Voando, voando com as asas, asas da quimera…”
Nos anos 1990, Moraes ficou retado com o carnaval baiano, se sentindo excluído quando a turma do axé dominou a folia, transformando-a numa farra milionária onde era preciso comprar abadás para pular, isolados do povo pelas cordas. Ele nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval, a elitização e sobretudo a falta de espontaneidade gerada por este comércio.
O músico ficou afastado durante mais de 10 anos, quando preferia tocar em Recife e Olinda, cujo carnaval era mais digno do seu respeito.  “Até o final dos anos 1970, o carnaval era lúdico, o pessoal saía para a rua para brincar de graça. Ninguém pagava para ir atrás de trio elétrico. A partir daí vieram os blocos de cordas e abadás, em que se paga, e tomaram conta. O poder público não viu isso e os foliões pipoca, que pulam fora da corda, perderam o carnaval e os trios. Como ninguém podia reclamar de nada e a Bahia vivia uma oligarquia pesada, eu fui retirado do carnaval”, contou.
Moraes Moreira nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval baiano, que transformou uma festa popular numa farra milionária que separava com cordas o povo de quem podia pagar pelos abadás
Ele só voltou a cantar no carnaval da Bahia em 2010. “Encontrei João Ubaldo Ribeiro e disse que iria voltar. Ele me falou ‘Você vai voltar nos braços do povo’, e realmente aconteceu. Foram seis dias de uma coisa deliciosa, muita gente acompanhando o trio, todo mundo cantando as músicas. Foi uma sensação muito boa de permanência do meu trabalho, da minha música. Continua tudo aí, apesar das trezentas coisas que aconteceram na Bahia, o povo ainda quer ouvir Chame GentePombo Correio e Preta Pretinha“, ele comentou com a repórter Laís Vita, do Bahia Notícias, também em 2011.
Naquela entrevista, ele anteviu o movimento que de fato acabou acontecendo nos últimos anos, da rejeição do folião baiano ao modelo excludente dos abadás e das cordas que reinou durante tanto tempo. “Você pode ver que o folião pipoca já tá querendo ver o trio independente dele, tá querendo sair com a roupa que ele quiser, dançar a dança que ele quiser. Ele não quer mais ficar naquela de ‘faz isso’, ‘faz aquilo’, ‘agora levanta a mão’, ‘agora não-sei-o-quê’. Eu tô sentindo que está havendo uma reação para a ‘apadronização’ do carnaval da Bahia. Agora é tudo muito padronizado: a roupa, a música, a dança, a coreografia, ficou tudo marcado demais. Agora vamos desmanchar tudo e fazer tudo de novo!”
Em janeiro deste ano, em entrevista a Maria Fortuna, do jornal O Globo, Moraes Moreira falou de sua preocupação com o Brasil de Bolsonaro, “pior que no tempo da ditadura. Primeiro porque naquele tempo tocava música brasileira no rádio. E hoje tem essa coisa que a gente não sabe direito… Amanhã a Ancine pode acabar, depois da amanhã pode não ter mais teatro. É uma pressão psicológica.”
É triste ver o Brasil descendo a ladeira, né, Moraes? Obrigada por fazer parte da trilha sonora da minha vida, conterrâneo. Acabou chorare.
Para ler mais sobre Moraes Moreira e Novos Baianos, clique aqui.
*Baiana de Ipiaú, formou-se em jornalismo pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e já percorreu as redações de vários veículos de imprensa, como Jornal da Bahia, Jornal de Brasília, Folha de S.Paulo, Estadão, revistas IstoÉ/Senhor, Veja, Vip, Carta Capital e Caros Amigos. Editora do site Socialista Morena. Autora dos livros Zen Socialismo, O Que É Ser Arquiteto e O Que É Ser Geógrafo

“Lá vem o Brasil descendo a ladeira”: Moraes Moreira não merecia viver no país de Bolsonaro. Por Kiko Nogueira

Que descanse em paz o grande Moraes. O país que ele sonhou não era este.

Moraes Moreira
Moraes Moreira não merecia viver no mesmo país que Jair Bolsonaro.

Morreu hoje (13) aos 72 anos de causa ainda não revelada.

Com Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão formou os Novos Baianos.

Ficou na banda entre 1969 a 1975. Juntamente com Luiz Galvão, foi compositor de quase todas as canções.

“Acabou Chorare”, de 1972, é fácil, fácil dos melhores álbuns da música brasileira em todos os tempos.

O grupo levou adiante o tropicalismo com mais rock’n’roll, mais suingue, menos política e muita maconha.

Na carreira solo, estourou com “Pombo Correio”, “Vassourinha Elétrica” e “Bloco do Prazer”, dentre outras.

Eu me lembro do Moraes de “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira”, de 1979, uma ode à chamada brasilidade, inspirada, dizia ele, por João Gilberto, seu guru.

O clipe no Fantástico era de um menino negro num carrinho de rolimã, se minha memória me serve bem.

O Brasil desceu a ladeira — mas não parou e foi parar no esgoto do bolsonarismo.

Que descanse em paz o grande Moraes. O país que ele sonhou não era este.

Na dia 18 de março, ele postou um poema no Instagram:

Quarentena (Moraes Moreira)

Eu temo o coronavirus
E zelo por minha vida
Mas tenho medo de tiros
Também de bala perdida,
A nossa fé é vacina
O professor que me ensina
Será minha própria lida

Assombra-me a pandemia
Que agora domina o mundo
Mas tenho uma garantia
Não sou nenhum vagabundo,
Porque todo cidadão
Merece mas atenção
O sentimento é profundo

Eu não queria essa praga
Que não é mais do Egito
Não quero que ela traga
O mal que sempre eu evito,
Os males não são eternos
Pois os recursos modernos
Estão aí, acredito

De quem será esse lucro
Ou mesmo a teoria?
Detesto falar de estrupo
Eu gosto é de poesia,
Mas creio na consciência
E digo não a todo dia

Eu tenho medo do excesso
Que seja em qualquer sentido
Mas também do retrocesso
Que por aí escondido,
As vezes é o que notamos
Passar o que já passamos
Jamais será esquecido

Até aceito a polícia
Mas quando muda de letra
E se transforma em milícia
Odeio essa mutreta,
Pra combater o que alarma
Só tenho mesmo uma arma
Que é a minha caneta

Com tanta coisa inda cismo….
Estão na ordem do dia
Eu digo não ao machismo
Também a misoginia,
Tem outros que eu não aceito
É o tal do preconceito
E as sombras da hipocrisia

As coisas já forem postas
Mas prevalecem os relés
Queremos sim ter respostas
Sobre as nossas Marielles,
Em meio a um mundo efêmero
Não é só questão de gênero
Nem de homens ou mulheres

O que vale é o ser humano
E sua dignidade
Vivemos num mundo insano
Queremos mais liberdade,
Pra que tudo isso mude
Certeza, ninguém se ilude
Não tem tempo, nem idade”



É preciso despolitizar a luta contra o Covid-19. Por Marco Aurélio de Carvalho

O clã Bolsonaro nunca fez questão de mostrar apreço pela ciência, e muito menos pela democracia. Disso todos nós já sabemos. Mas sua peroração pró-cloroquina tem muito a dizer sobre seus métodos de fazer política

Artigo escrito com Fabiano Silva dos Santos, advogado mestre e doutorando em Direito
Existem dezenas de estudos sobre a eficácia da cloroquina contra a Covid-19. Poucos, entretanto, foram finalizados. E mesmo em relação a esses, os resultados não foram conclusivos.

Essa é a palavra da ciência: não há garantia de que a droga funcione, nem ao menos de que seja segura. Vários países do mundo, inclusive, suspenderam sua utilização.

Apesar disso, por falta de outra abordagem terapêutica, muitos médicos têm feito prescrições do medicamento, o que até pode ser razoável em um ambiente milimetricamente calculado. Neste cenário, é fundamental, evidentemente, que se estude os expressivos efeitos colaterais deste medicamento frente a eventuais comorbidades.

Discussão técnica. Científica. Com rigor, método e metodologia.

Por outro lado, quando o presidente da República ocupa espaço em cadeia nacional de rádio e televisão para vender uma esperança de cura baseada em experiências incompletas, a história é outra...

Mais do que mera irresponsabilidade, este ato pode trazer consequências muito graves e irreversíveis.

O Presidente parece não se dar conta disso...

Determinou, inclusive, que o Exército Brasileiro produzisse grandes quantidades deste duvidoso “remédio”. Em coro com o Presidente americano, deus ares milagrosos à suposta descoberta.

Há paralelos na história recente da humanidade...

No final da década 50, quando uma outra gripe, a Influenza, ameaçava a Europa, um laboratório farmacêutico alemão ganhou mercado com um fármaco antigripal que parecia inovador e adequadamente apropriado para o enorme desfio que se apresentava.

Mais tarde, a mesma droga foi reapresentada como um poderoso sedativo e tornou-se um sucesso de vendas em vários países.

Até que começaram a surgir relatos preocupantes sobre crianças que nasceram com graves más-formações congênitas.

São os filhos da Talidomida, a droga que nasceu para tratar de resfriados e que acabou ganhando outras utilidades sem estudos que atestassem sua segurança.

São quase 10 mil crianças atingidas, cujas mães fizeram uso da droga durante a gestação. A tragédia só não foi maior porque o governo americano não autorizou o uso do medicamento, alegando que não existiam evidências científicas de que seu uso era realmente seguro.

Entre a ciência e a promessa, com sinais muito confusos e até mesmo contraditórios, Bolsonaro se posicionou como mascate da esperança.

Além de uma gripe ameaçadora e de um medicamento usado de forma experimental, há um outro ponto dessa história que se cruza com a da Talidomida: a poderosa “arma” da propaganda.

A indústria investiu pesado em mídia para demonstrar que a talidomida era segura. No Brasil, a droga foi apresentada em anúncios dos jornais de maior circulação, em folhetos e em amostras para médicos. Muita propaganda, pouca ciência e pelo menos 10 mil vítimas. Até agora, a cloroquina de Bolsonaro é isso: muita propaganda, mais dúvidas do que certezas e nenhuma conclusão científica. O que virá a seguir, ninguém pode efetivamente dizer.

O clã Bolsonaro nunca fez questão de mostrar apreço pela ciência, e muito menos pela democracia. Disso todos nós já sabemos.

Mas sua peroração pró-cloroquina tem muito a dizer sobre seus métodos de fazer política.

O exemplo é fresquinho.

Nessa semana, um representante do clã foi ao Twitter para ”denunciar” que a ex-primeira dama Marisa Letícia teria 256 milhões de reais investidos em CDBs do Banco Bradesco.

Seria cômico se não fosse repugnante.

Mais uma vez atentaram contra a memória de alguém que em vida já havia sentido o peso da injustiça...

Segundo os combativos advogados que atuam no caso, Valeska Teixeira e Cristiano Zanin, os bens que integram o espólio de D. Marisa, e que já deveriam ter sido partilhados inclusive, “foram apresentados nos autos do inventário e constam das últimas declarações protocoladas em 02/03/20020, nos termos da lei. O despacho proferido em 06 de abril faz referência, por equívoco, a escrituras de debêntures que o próprio Juízo reconhece não ter relação com os bens a partilhar (“não há debêntures a partilhar, quer em nome da falecida, quer em nome do inventariante”) “.

Os carneirinhos do rebanho digital do “gabinete do ódio” replicaram a informação sem fazer questionamentos, até que o assunto se tornou um dos mais discutidos nas redes sociais por alguns momentos. Os tais milhões não existem, e jamais existiram, mas qual dos “Bolsonaros” se importa realmente com a verdade?

Se o pai tem a ousadia de ocupar a TV para destilar ódio, contrariar as orientações da Organização Mundial de Saúde e para pregar ao Brasil o uso de um tratamento medicamentoso experimental, o que se pode esperar de sua entourage?

Provavelmente, as contas dos familiares do ex-presidente Lula já foram muito mais estudadas do que a cloroquina de Bolsonaro. Há décadas, o Ministério Público, inúmeras CPIs, a Força-tarefa da Lava Jato e a própria Polícia Federal em diversas outras operações vasculham documentos e informações. Pirotecnias dos mais variados tipos e espécies não foram capazes, no decorrer dos últimos anos, de dar suporte probatório mínimo para as criativas teses de acusação...

Entretanto, com o avanço da politização do judiciário e da judicialização da política, a condenação criminosa do ex-presidente Lula o levou indevidamente à prisão por longos e sofridos 580 dias.

A esperança é que o episódio possa, de alguma forma, promover uma ampla e profunda reforma no nosso Sistema de Justiça.

Bolsonaro precisa se informar sobre a Talidomida e sobre como alguns funcionários do serviço de saúde dos Estados Unidos foram fundamentais para evitar uma tragédia ainda maior. Ele poderia aprender com a história e talvez assim acabasse convencido de que é preciso ter mais cautela quando a saúde de uma nação está em sua mãos.

Mas talvez ele até já conheça essa história. Talvez isso seja tudo que ele possa dar em uma crise... comportar-se como o garoto propaganda de um remédio em um programa de auditório...

No Brasil, o desafio é combater o vírus, o ódio, a intolerância e a idiotice.

Tarefa árdua, sobretudo por contar com a militante e disciplinada oposição do chefe da nação.

Oremos!!!



Brasil: entre o fanatismo dos tolos e a urgência do futuro. Por Mário Lúcio de Avelar

A crise causada pela epidemia Covid-19 precipitou entre os analistas de todo mundo a discussão que se vinha travando sobre os limites da globalização dos mercados

Por Mário Lúcio de Avelar ǀ Artigos - GGN
A crise causada pela epidemia Covid-19 precipitou entre os analistas de todo mundo a discussão que se vinha travando sobre os limites da globalização dos mercados, o liberalismo econômico e a necessidade da emergência de um modelo de desenvolvimento baseado na sustentabilidade. No momento não é possível saber que caminhos o mundo vai trilhar.

A urgência que agora se impõe é outra. Os países cuidam de diagnosticar a extensão da crise em curso e de adotar medidas sanitárias e econômicas para o fim de evitar um desastre humanitário maior. A realidade tem mostrado que o isolamento social e a realização de testes trazem os melhores resultados, ante a inexistência de vacina ou remédio disponível.

Os números trazidos pelos modelos epidemiológicos elaborados pelo Imperial College de Londres dizem por si a extensão da tragédia humana. Diante da ausência de medidas de contenção da epidemia, o Covid-19 poderia levar a morte 40 milhões de pessoas no mundo. Em caso de nenhuma estratégia de isolamento e de enfrentamento da pandemia, o Brasil poderia ter mais de 1,15 milhão de mortes. Com medidas rígidas de circulação para toda a população – necessárias para bloquear o a circulação do vírus –, o estudo diz que o número de mortes poderia ser reduzido para 44,2 mil.

Na prática, se nada for feito, os ensaios estatísticos indicam que os países mais atingidos poderiam ter um número de mortes de cinco a dez vezes mais elevado que o ordinário. Isso significa que, em poucos meses, o Brasil teria um número de mortos a mais próximo daquele registrado pela média anual.

A possibilidade do colapso dos sistemas de saúde convenceu os governantes de que não se trata de uma simples gripe, e que é necessário medidas urgentes de isolamento da população.

É certo que ninguém sabe qual será o número de vidas humanas perdidas. Atualmente o mundo tem mais de 100.000 mortos. Para ficarmos entre os países mais desenvolvidos, a Itália tem quase 20.000 mortos, a Espanha 17.000, os EUA 20.000 e a França 14.000. Todos eles, com maior ou menor grau, em maior ou menor tempo, adotaram medidas de restrição.

De acordo com o Imperial College de Londres somente uma política massiva de testes e de isolamento de pessoas contaminadas permitiriam reduzir fortemente o número de mortes. Isto é, não bastam medidas de confinamento. A realização de testes é condição para evitar mortes, mas também a única luz capaz de permitir aos tomadores de decisão o levantamento de restrições e do isolamento social.

Os estudiosos costumam extrapolar os dados da gripe espanhola de 1918-1920 e seus ensinamentos para tentar entender melhor o comportamento da epidemia do coronavírus. O ensaio tem lá seus limites; afinal a realidade do mundo moderno é outra; também diversa é a natureza do vírus e seu comportamento na população.

A gripe espanhola, que de espanhola só tem o nome – porque nascida nos EUA -, matou quase 50 milhões de pessoas. Este número mais visível, que representava à época algo em torno de 2% da população mundial, esconde outras informações menos conhecidas. Trata-se das disparidades da doença nos diversos países: a doença matou entre 0,5% e 1% da população dos EUA e da Europa, contra 3% da Indonésia e África do Sul, e mais de 5% da população da Índia.

A crise nos força a refletir sobre as condições sanitárias e educativas no mundo e, particularmente, no Brasil. Temos motivos de sobra para nos preocupar: o país conta com cerca de 13 milhões de pessoas vivendo em favelas; além disso, temos 77 milhões de pessoas inscritas no Cadastro Único do Governo Federal, um catálogo com a lista de pessoas em situação de vulnerabilidade; outros 66 milhões de pessoas possuem uma renda muito baixa, de menos de meio salário mínimo por pessoa da família; 41 milhões de pessoas recebem o Bolsa Família; e o país ainda tem 41 milhões de trabalhadores informais.

O anúncio de que o governo disponibilizará R$ 600,00 mensais aos trabalhadores informais inscritos no Cadastro Único é uma boa medida. No entanto, está longe de resolver a situação do conjunto dos brasileiros cuja realidade é marcada por enorme desigualdade social, alta taxa de desemprego e condições sub-humanas de moradia.

Não se sabe até o momento como a epidemia se comportará diante de um quadro em que grandes massas de pessoas vivem em condições degradantes; onde grande número de pessoas convive em pequenas pocilgas; em regiões onde faltam saneamento, água para higiene, recursos para a compra de álcool gel, máscaras etc.

As medidas de isolamento social aplicadas em ambientes de vulnerabilidade social tais como os existentes no Brasil podem se revelar totalmente inadaptadas. Na ausência de renda, teme-se que os pobres saiam de suas casas em busca de trabalho e contribuam para difundir a epidemia.

Além do problema social jamais equacionado, o Brasil enfrenta grave problema político. Na presidência da República, Jair Bolsonaro trata a pandemia com displicência. Através de atos e palavras investe contra o isolamento social e as recomendações das autoridades de saúde. Aposta no desespero da população e espera colher dividendos políticos com a desobediência generalizada às medidas de contenção do vírus imposta pelos governadores.

Sem um comando único das diversas esferas de governo no campo da saúde, o povo não sabe ao certo que diretriz sanitária seguir. Mais grave. Contra a opinião da ciência, o presidente da República engana a população e estimula a volta à uma normalidade que não existe; anuncia a cloroquina como o elixir da cura para desferir um golpe à política do isolamento social; tudo na esperança de que o caos lhe traga dividendo político.

A experiência insólita em curso no Brasil tem alto potencial de dano social e humanitário; ela pode agravar a difusão do vírus num ambiente social clivado pela pobreza de grande parcela da população, e que sofre com políticas de austeridade impostas pela ideologia dominante dos últimos anos.

O terrível desafio imposto pela pandemia impõe como urgente a revisão das políticas neoliberais e o fim da austeridade fiscal. Tais políticas deprimiram a capacidade de investimento do estado, enfraqueceram os serviços públicos e se não se mostraram capazes de gerar emprego e renda. Somente de 2014 para cá, o estado deixou de investir R$ 63 bilhões na geração de obras e serviços. A jabuticaba brasileira do teto dos gastos, tal qual posto pela PEC 95, sorveu do SUS somente no ano passado a importância de R$ 9 bilhões.

Passada esta fase mais aguda da crise, o país precisará construir um novo contrato social. Mais do que nunca será também necessário discutir uma nova forma de financiamento do estado. Não é possível que os mais ricos continuem pagando impostos de menos com alíquotas regressivas; não se pode mais permitir que o estado puna o trabalho e o investimento em detrimento da renda e do patrimônio.

A crise pode ser a ocasião para refletirmos sobre a necessidade da adoção de novos instrumentos capazes de fazer com que os objetivos da República sejam enfim alcançados: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização; e a promoção do bem de todos (art. 3.º, CF). Condições de saneamento, educação, moradia mínimas para o povo brasileiro devem ser financiadas pelo estado, atores econômicos e pelos grandes grupos financeiros. É preciso interromper o ciclo interminável de valorização dos ativos monetários, do dinheiro que gera a valorização do dinheiro, e não riqueza.

Esta crise deverá também fazer-nos refletir sobre nosso sistema econômico predatório, que subjuga a natureza, destrói as florestas, polui os rios, para enfim permitir a criação de uma nova forma de relação baseada na sustentabilidade econômica, social e ecológica. Não é admissível que o país continue destruindo a floresta amazônica e seus povos originários em prejuízo do patrimônio da nação e benefício de tão poucos.

O conjunto de transformações que cumpre ao país realizar exigirá do povo brasileiro a capacidade de questionar não somente a política daqueles que nos conduzem ao caos sanitário, mas também as políticas econômicas que nos negam o desenvolvimento. A construção do nosso futuro como nação independente e soberana não pode ser a escolha entre o reacionarismo dos tolos e o fundamentalismo mercado. Ambos não nos servem.