A crise causada pela epidemia Covid-19
precipitou entre os analistas de todo mundo a discussão que se vinha travando
sobre os limites da globalização dos mercados
Por Mário Lúcio de Avelar ǀ Artigos - GGN
A crise causada pela epidemia Covid-19
precipitou entre os analistas de todo mundo a discussão que se vinha travando
sobre os limites da globalização dos mercados, o liberalismo econômico e a
necessidade da emergência de um modelo de desenvolvimento baseado na
sustentabilidade. No momento não é possível saber que caminhos o mundo vai
trilhar.
A urgência que agora se impõe é outra.
Os países cuidam de diagnosticar a extensão da crise em curso e de adotar
medidas sanitárias e econômicas para o fim de evitar um desastre humanitário
maior. A realidade tem mostrado que o isolamento social e a realização de
testes trazem os melhores resultados, ante a inexistência de vacina ou remédio
disponível.
Os números trazidos pelos modelos
epidemiológicos elaborados pelo Imperial College de Londres dizem por si a
extensão da tragédia humana. Diante da ausência de medidas de contenção da
epidemia, o Covid-19 poderia levar a morte 40 milhões de pessoas no mundo. Em
caso de nenhuma estratégia de isolamento e de enfrentamento da pandemia, o
Brasil poderia ter mais de 1,15 milhão de mortes. Com medidas rígidas de
circulação para toda a população – necessárias para bloquear o a circulação do
vírus –, o estudo diz que o número de mortes poderia ser reduzido para 44,2
mil.
Na prática, se nada for feito, os
ensaios estatísticos indicam que os países mais atingidos poderiam ter um
número de mortes de cinco a dez vezes mais elevado que o ordinário. Isso
significa que, em poucos meses, o Brasil teria um número de mortos a mais
próximo daquele registrado pela média anual.
A possibilidade do colapso dos sistemas
de saúde convenceu os governantes de que não se trata de uma simples gripe, e
que é necessário medidas urgentes de isolamento da população.
É certo que ninguém sabe qual será o
número de vidas humanas perdidas. Atualmente o mundo tem mais de 100.000
mortos. Para ficarmos entre os países mais desenvolvidos, a Itália tem quase
20.000 mortos, a Espanha 17.000, os EUA 20.000 e a França 14.000. Todos eles,
com maior ou menor grau, em maior ou menor tempo, adotaram medidas de
restrição.
De acordo com o Imperial College de
Londres somente uma política massiva de testes e de isolamento de pessoas
contaminadas permitiriam reduzir fortemente o número de mortes. Isto é, não
bastam medidas de confinamento. A realização de testes é condição para evitar
mortes, mas também a única luz capaz de permitir aos tomadores de decisão o
levantamento de restrições e do isolamento social.
Os estudiosos costumam extrapolar os
dados da gripe espanhola de 1918-1920 e seus ensinamentos para tentar entender
melhor o comportamento da epidemia do coronavírus. O ensaio tem lá seus
limites; afinal a realidade do mundo moderno é outra; também diversa é a
natureza do vírus e seu comportamento na população.
A gripe espanhola, que de espanhola só
tem o nome – porque nascida nos EUA -, matou quase 50 milhões de pessoas. Este
número mais visível, que representava à época algo em torno de 2% da população
mundial, esconde outras informações menos conhecidas. Trata-se das disparidades
da doença nos diversos países: a doença matou entre 0,5% e 1% da população dos
EUA e da Europa, contra 3% da Indonésia e África do Sul, e mais de 5% da
população da Índia.
A crise nos força a refletir sobre as
condições sanitárias e educativas no mundo e, particularmente, no Brasil. Temos
motivos de sobra para nos preocupar: o país conta com cerca de 13 milhões de
pessoas vivendo em favelas; além disso, temos 77 milhões de pessoas inscritas
no Cadastro Único do Governo Federal, um catálogo com a lista de pessoas em
situação de vulnerabilidade; outros 66 milhões de pessoas possuem uma renda
muito baixa, de menos de meio salário mínimo por pessoa da família; 41 milhões
de pessoas recebem o Bolsa Família; e o país ainda tem 41 milhões de
trabalhadores informais.
O anúncio de que o governo disponibilizará
R$ 600,00 mensais aos trabalhadores informais inscritos no Cadastro Único é uma
boa medida. No entanto, está longe de resolver a situação do conjunto dos
brasileiros cuja realidade é marcada por enorme desigualdade social, alta taxa
de desemprego e condições sub-humanas de moradia.
Não se sabe até o momento como a
epidemia se comportará diante de um quadro em que grandes massas de pessoas
vivem em condições degradantes; onde grande número de pessoas convive em
pequenas pocilgas; em regiões onde faltam saneamento, água para higiene,
recursos para a compra de álcool gel, máscaras etc.
As medidas de isolamento social
aplicadas em ambientes de vulnerabilidade social tais como os existentes no
Brasil podem se revelar totalmente inadaptadas. Na ausência de renda, teme-se
que os pobres saiam de suas casas em busca de trabalho e contribuam para
difundir a epidemia.
Além do problema social jamais
equacionado, o Brasil enfrenta grave problema político. Na presidência da
República, Jair Bolsonaro trata a pandemia com displicência. Através de atos e
palavras investe contra o isolamento social e as recomendações das autoridades
de saúde. Aposta no desespero da população e espera colher dividendos políticos
com a desobediência generalizada às medidas de contenção do vírus imposta pelos
governadores.
Sem um comando único das diversas
esferas de governo no campo da saúde, o povo não sabe ao certo que diretriz
sanitária seguir. Mais grave. Contra a opinião da ciência, o presidente da
República engana a população e estimula a volta à uma normalidade que não
existe; anuncia a cloroquina como o elixir da cura para desferir um golpe à
política do isolamento social; tudo na esperança de que o caos lhe traga
dividendo político.
A experiência insólita em curso no
Brasil tem alto potencial de dano social e humanitário; ela pode agravar a
difusão do vírus num ambiente social clivado pela pobreza de grande parcela da
população, e que sofre com políticas de austeridade impostas pela ideologia
dominante dos últimos anos.
O terrível desafio imposto pela pandemia
impõe como urgente a revisão das políticas neoliberais e o fim da austeridade
fiscal. Tais políticas deprimiram a capacidade de investimento do estado,
enfraqueceram os serviços públicos e se não se mostraram capazes de gerar
emprego e renda. Somente de 2014 para cá, o estado deixou de investir R$ 63
bilhões na geração de obras e serviços. A jabuticaba brasileira do teto dos
gastos, tal qual posto pela PEC 95, sorveu do SUS somente no ano passado a
importância de R$ 9 bilhões.
Passada esta fase mais aguda da crise, o
país precisará construir um novo contrato social. Mais do que nunca será também
necessário discutir uma nova forma de financiamento do estado. Não é possível
que os mais ricos continuem pagando impostos de menos com alíquotas
regressivas; não se pode mais permitir que o estado puna o trabalho e o
investimento em detrimento da renda e do patrimônio.
A crise pode ser a ocasião para
refletirmos sobre a necessidade da adoção de novos instrumentos capazes de
fazer com que os objetivos da República sejam enfim alcançados: a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da
marginalização; e a promoção do bem de todos (art. 3.º, CF). Condições de
saneamento, educação, moradia mínimas para o povo brasileiro devem ser
financiadas pelo estado, atores econômicos e pelos grandes grupos financeiros.
É preciso interromper o ciclo interminável de valorização dos ativos
monetários, do dinheiro que gera a valorização do dinheiro, e não riqueza.
Esta crise deverá também fazer-nos
refletir sobre nosso sistema econômico predatório, que subjuga a natureza,
destrói as florestas, polui os rios, para enfim permitir a criação de uma nova
forma de relação baseada na sustentabilidade econômica, social e ecológica. Não
é admissível que o país continue destruindo a floresta amazônica e seus povos
originários em prejuízo do patrimônio da nação e benefício de tão poucos.
O conjunto de transformações que cumpre
ao país realizar exigirá do povo brasileiro a capacidade de questionar não
somente a política daqueles que nos conduzem ao caos sanitário, mas também as
políticas econômicas que nos negam o desenvolvimento. A construção do nosso
futuro como nação independente e soberana não pode ser a escolha entre o
reacionarismo dos tolos e o fundamentalismo mercado. Ambos não nos servem.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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