Ao fim e ao cabo, nós mesmos temos que nos imbuir do espírito de editores e, de acordo com nossas referências, prestigiar o que é sério e descartar, isso mesmo, descartar o que é fake ou desconfiamos que seja. Devemos perguntar-nos uma, duas, três vezes: essa informação é séria, a notícia é verossímel? O que eu sei sobre esse assunto que me causa estranheza em relação a esse post? Quem o está divulgando?
Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e
superintendente de Comunicação Social da USP
“Redobre a atenção com as mensagens
falsas, e não só no grupo da família. Todo mundo anda meio paranoico
ultimamente e até pessoas mais instruídas ou com mais familiaridade com as redes
estão compartilhando conteúdos duvidosos. ”Esse conselho está no blog Hashtag
Mídias Sociais e a Vida em Rede, no site da Folha de S. Paulo, num
texto de Mateus Camillo sobre como “Fazer com que as redes sociais façam mais
bem do que mal durante a quarentena”.
Eis aí um bom desafio, que vale além da
quarentena, também. Conteúdos duvidosos, quando não falsos, mentirosos, mal
intencionados, criminosos etc., invadiram as redes desde que elas ganharam
visibilidade e se mostraram um ágil e universal meio de divulgação.
Assim como a invenção da impressora
permitiu o acesso ao conhecimento que era de posse de poucas instituições e
ampliou o espaço de debate nas sociedades, as redes possibilitam que bilhões
entrem na arena. Democratizou-se definitivamente o debate, possibilitando que
cada indivíduo faça sua narrativa? Teoricamente sim, mas é preciso lembrar os
lamentos do escritor e intelectual italiano, Umberto Eco, que nos deixou em
2017: “As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente,
falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade.
[…] agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.
Sempre se pode classificar essa frase
como elitista, emitida por um intelectual que se julgava acima de seus
contemporâneos, membro ilustre do olimpo do saber. Mas o que vemos em
nossos devices cotidianamente mostra que ele apontou na direção
certa. “Imbecis” talvez seja uma palavra muito forte. Há muitos, é claro, mas a
maioria está espertamente interessada em distorcer, difamar, tirar vantagens do
espraiamento de inverdades, meias verdades – nunca construir. Só semear
discórdia e buscar mais poder ou dinheiro ou seja lá o que for.
Tomemos dois exemplos na política
internacional que mostram faces diversas do mesmo mundo digital. Pioneiro no
uso intensivo da internet em campanha, Barack Obama inovou até no método de
arrecadar recursos para suas campanhas presidenciais, abrindo as portas para
milhares de pequenos doadores por todo território dos Estados Unidos, escapando
da dependência exclusiva dos grandes doadores. Já seu sucessor, Donald Trump,
usou largamente as redes sociais para destruir seus adversários, nunca debater
propostas de governo.
A mesma ferramenta, dois usos
absolutamente contrastantes. Por aqui, no Brasil, a campanha do presidente
Bolsonaro usou e abusou das redes sociais, construindo grande vantagem sobre as
campanhas de candidatos que ainda não haviam se lançado convictamente no mundo
da internet – aliás, me parece que o mundo político ainda não aderiu
integralmente a essa nova arena das campanhas eleitorais.
O imenso benefício que a internet e as
redes sociais entregam para a comunicação global, em todos os campos do saber e
da sociabilidade humana, de certa forma naturalizou-se, é um novo normal que
faz parte do cotidiano. É bom que seja assim. Diariamente, milhões de mensagens
trafegam pelas mídias sociais com informações úteis, debates, conferências,
contatos pessoais, familiares, negócios, enfim, uma relação infinita de conexões
proveitosas. Em meio à pandemia desta covid-19, escolas e universidades
garantem aulas a distância aos seus alunos graças à internet, empresas de
serviços continuam operando em sistema home office, só para citar dois
exemplos do momento.
Mas, por ser o novo normal, essa
característica benéfica não tem a mesma visibilidade que o lado desonesto,
destruidor, da internet e das redes sociais. Tanto é assim que boa parte da
mídia e de instituições sérias dedicam espaço e tempo para desmentir e
desautorizar fake news, tentando reconstruir verdades irresponsavelmente
dilapidadas com o auxílio de robôs assassinos de reputações e verdades.
Atualmente, o jornalismo que busca
informar corretamente, seja por intermédio da mídia clássica ou das sociais,
chega a ser valorado não por esse mérito intrínseco à sua atividade, mas em
contraposição ao perigo representado pelas fake news – o que é uma
evidente inversão de valores, pois são as fake news, sob qualquer formato,
que envenenam o mundo das comunicações.
Historicamente, cabia a editores em
postos-chave das redações clássicas o trabalho de verificar a qualidade das
milhares de informações que a eles chegavam, sejam de seus repórteres ou de
serviços de distribuição de notícias, assessorias de imprensa e, recorrendo a
um jargão, separar o joio do trigo. Dizem os críticos da imprensa que os
editores publicam o joio, mas minha longa experiência profissional me mostrou
que – excetuada a imprensa marrom e sensacionalista – essa é uma crítica
irresponsável, de quem não gosta de conviver com fatos e verdades.
Esse critério ainda existe nas mídias,
que tentam sobreviver e se reinventar financeira, editorial e tecnologicamente
neste mundo transfigurado pela internet – e um dos valores essenciais dessa
travessia é a credibilidade, pois sem ela os leitores, aliás, a audiência, no
jargão atual, desaparece. Raciocínio que vale, também, para as publicações
digitais que procuram e ganham espaço nas mídias sociais. Publicações que se
multiplicam e enriquecem o leque de opções editoriais para os leitores.
Mas no mundo dos blogs, WhatsApp, do
Twitter, do Facebook e outras tantas redes essa prática, esse controle de
qualidade, não existe. Historicamente, o Facebook tem-se mostrado resistente a
controlar editorialmente os posts que abriga, principalmente anúncios políticos
e eleitorais. Só recentemente, junto com Twitter e Instagram tiraram do ar
posts com notícias falsas ou enganosas sobre a covid-19. A gravidade da crise
sanitária os sensibilizou. Nem Bolsonaro escapou. Normalmente, contudo, joio e
trigo circulam livremente e são compartilhados aos milhares e a audiência,
desavisada, engole gato por lebre.
Ao fim e ao cabo, nós mesmos temos que
nos imbuir do espírito de editores e, de acordo com nossas referências,
prestigiar o que é sério e descartar, isso mesmo, descartar o que é fake ou
desconfiamos que seja. Devemos perguntar-nos uma, duas, três vezes: essa
informação é séria, a notícia é verossímel? O que eu sei sobre esse assunto que
me causa estranheza em relação a esse post? Quem o está divulgando?
Já que agora todos, involuntariamente,
fazemos parte do circuito das notícias, vamos ser um pouco editores também.
Quem sabe controlamos a pandemia das fake news?
Fonte: Publicado no
Jornal da USP
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