"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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sábado, 30 de novembro de 2019

Democracia e Bolsonaro são incompatíveis; Brasil tem que escolher um ou outro. Por Ricardo Kotscho

Diante de tantos ataques, dia após dia, a jovem democracia brasileira parece órfã neste momento.

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto. (Foto: Carolina Antunes/PR)
“Jair Bolsonaro não entende, como demonstra a cada dia, os limites que a República impõe ao exercício da Presidência. Trata-se de uma personalidade que combina leviandade com autoritarismo. Será preciso então que as regras do Estado democrático de Direito lhe sejam impingidas de fora par dentro, como os limites que se dão a uma criança”.

Assim começa o editorial “Fantasia de imperador”, publicado na Folha deste sábado, o mais duro ataque já feito pela grande imprensa a esse protótipo de ditador bananeiro.

Após 11 meses de horror, ameaças e destruição, completados hoje, o indigitado ocupante do Planalto parte para a ofensiva final contra as instituições democráticas.

São incompatíveis o presidente e a democracia, enxovalhada por atos de pura demência da família imperial e seus ministros, que não passam de asseclas deslumbrados, recrutados em algum manicômio judicial.

Apesar de dar seguidas demonstrações de insanidade, durante a campanha eleitoral e em seus 30 anos como parlamentar do baixo clero, depois de ter sido afastado do Exército por insubordinação, este desqualificado foi tratado com extrema indulgência pelos profissionais da mídia, que não alertou o país sobre o perigo que estávamos correndo com a sua eleição fraudada.

No segundo turno, trataram o professor e o ex-tenente como se fossem iguais, e não os representantes de dois polos absolutamente opostos: o da civilização e o da barbárie anunciada.

Aqui neste modesto Balaio fui muito criticado por alguns leitores quando a campanha começou, por dar espaço ao então inexpressivo e folclórico candidato, que ninguém levava a sério.

“Você fica dando muito espaço para esse cara, sem partido nem tempo de TV,  que não tem a menor condição de chegar ao segundo turno”, me diziam.

Por conhecer bem a sua história e ter informações de empresas que monitoram as redes sociais, eu chamava a atenção para o grande esquema que estava sendo montado no submundo da internet, já antes da facada de Juiz de Fora e da prisão de Lula, os dois episódios que o levaram à liderança nas pesquisas e à vitória.

No dia mesmo da posse, com o filho Carluxo 02, chefe das milícias virtuais, empoleirado no Rolls-Royce presidencial, já dava para ter uma pequena ideia do desastre que nos aguardava.

Tratado pela imprensa como um ser exótico, mas inofensivo, Bolsonaro se cercou de generais (são mais de 2,5 mil militares no governo) e olavetes alucinados, a quem entregou Educação, Cultura e o Itamaraty.

Nunca um “astrólogo filosófico” como Olavo de Carvalho, caçador de ursos nos Estados Unidos e comparsa de Steve Bannon, o guru de Trump, havia nomeado tanta gente na história da humanidade.

A elite brasileira achava tudo meio estranho, mas ficou feliz com a entrega da política econômica, de porteira fechada, a um dos seus, o economista Paulo Guedes, um bufão que nunca foi levado a sério pela academia nem pelos seus pares do mercado financeiro.

Tendo como modelos o Brasil da ditadura militar de Brilhante Ustra, o Chile de Pinochet e os Estados Unidos do amigo Trump, ficaram pendurados na brocha, sem saber como tirar a economia do atoleiro.

Assim como se elegeram, governam por fake news, vendendo ilusões à sua seita de fanáticos.

Autor do livro “Existe democracia sem verdade factual?”, o jornalista e professor Eugenio Bucci lembrou ao colunista João Domingos, do Estadão, que a democracia é uma construção histórica, um engenho social, um projeto humano:

“Sem cuidados, ela pode perder vigor e desaparecer. A democracia existe porque existiram e existem seres humanos que cuidam dela, com muito trabalho. Sem eles, nada feito”.

Diante de tantos ataques, dia após dia, a jovem democracia brasileira parece órfã neste momento.

Sem oposição, sem freios, sem limites, controlando os três poderes, a tropa bolsonariana avança rumo a um autoritarismo feroz.

Respondo à pergunta do título do livro de Bucci: não, não existe democracia sem verdade factual quando, num de seus delírios, o presidente acusa, com a maior leviandade, o ator Leonardo DiCaprio de tacar fogo na Amazônia.

Em tempo: nesta segunda, Eugenio Bucci estará no programa “Ricardinho e Ricardão”, que apresento junto com o jornalista Ricardo Carvalho (no Youtube da AllTV, às 19 horas).

Bom fim de semana.

E vida que segue.



quinta-feira, 28 de novembro de 2019

TRF-4 e a condenação de Lula no caso de Atibaia: as contradições que confirmam a exceção, por Tania Maria de Oliveira

O julgamento desta quarta-feira nada disse sobre Lula ou crimes, mas disse tudo sobre os desembargadores da 8ª Turma do TRF-4

*Por Tania Maria de Oliveira ǀ Justiça - GGN 
Em setembro de 2016, respondendo às inúmeras ilegalidades cometidas na investigação, como grampos em escritórios de advocacia, divulgação de interceptação telefônica e importação de provas da Suíça, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu que a operação Lava Jato não precisava seguir as regras dos processos comuns. Para a Corte Especial do órgão, os processos “trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”.

Ao julgar, nesta quarta-feira (27), a apelação criminal do processo do Sítio de Atibaia, no qual é réu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os três desembargadores, que compõem a 8ª Turma daquele mesmo Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmaram, com mais clareza do que antes, a tese de 2016, que as ações da Lava Jato em geral e do ex-presidente Lula em particular, são processos de exceção. Para sedimentar esse caminho, contradisseram sua própria jurisprudência, não antiga, mas recente. E, de forma imponderada e arrogante, pretenderam decidir o momento da aplicabilidade de julgado do Supremo Tribunal Federal, ao negar-lhe vigência.

Além de exaustiva fundamentação, diante da ausência de provas a configurar os crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro, o Tribunal aumentou a pena de 12 anos e 11 meses para 17 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, em regime inicial fechado, e pagamento de 422 dias-multa.

A pretensão de explicação para prosseguir na persecução, e realizar a análise do mérito sobre a propriedade do Sítio e o cometimento de crimes, exigiu dos juízes a superação das preliminares apresentadas pela defesa, dentre as quais o fato de que a juíza Gabriela Hardt copiou, formal e materialmente, trechos da sentença do juiz Sérgio Moro, proferida no caso do Triplex, e de que houve descumprimento da ordem sucessiva das alegações finais, tendo em vista que delatores falaram no mesmo prazo do delatado.

No dia 13 de novembro de 2019, os mesmos juízes anularam sentença em Apelação, oriunda também da 13ª Vara Federal de Curitiba, em decorrência de ter a juíza Gabriela Hardt copiado e colado argumentos de outras peças processuais. O entendimento foi de que “reproduzir, como seus, argumentos de terceiro, copiando peça processual sem indicação da fonte, não é admissível”, e que a sentença afrontaria, portanto, o artigo 93, IX, da Constituição Federal, que determina que todos os julgamentos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões.

Tratava-se se de uma ação que não faz parte daquelas vinculadas à operação Lava Jato, em que a juíza reproduziu trechos da manifestação de alegações finais do Ministério Público Federal.

Na oportunidade, o desembargador Leandro Paulsen, acompanhando integralmente o voto do relator João Pedro Gebran Neto, salientou que decidiu se manifestar no acórdão para que em futuras sentenças o mesmo vício não seja reproduzido.

Em fevereiro de 2019, a defesa do ex-presidente Lula solicitou a juntada aos autos de uma perícia feita pelo Instituto Del Picchia, que demonstra cabalmente que a mesma magistrada copiara trechos da sentença do então juiz Sergio Moro, no caso do tríplex do Guarujá, tanto formal quanto materialmente, chegando ao absurdo de trechos repetidos, e citação  ao “apartamento”, e de tratar José Aldemário e Leo Pinheiro como sendo duas pessoas distintas. A resposta dos desembargadores nesta quarta de que a juíza poderia estar “cansada” e que repetição de trecho é “mera coincidência” é um escárnio com a seriedade que a Justiça demanda.

No dia 26 de setembro último, por maioria de 7 votos a 3 o STF decidiu qual deve ser a ordem das alegações finais em ação penal: primeiro devem se manifestar os delatores e, posteriormente, o delatado.

No caso da Ação Penal do Sítio de Atibaia, a manifestação do ex-presidente Lula se dera no mesmo prazo dos réus delatores. No entanto, a 8ª Turma do TRF-4 afirmou que não houve prejuízo comprovado, coisa que absolutamente não foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal como requisito ou condicionante para o exercício do Direito e reconhecimento da nulidade. Apenas o voto da ministra Carmen Lúcia falou de nulidade relativa, condicionada à comprovação de prejuízo, o que não modificaria a maioria. O Acórdão não foi lavrado porque o presidente Dias Toffoli disse que faria ponderações ao julgado, mas não houve condições para a decretação da nulidade.

Por outro lado, quando o relator Gebran afirma discordância que a decisão do STF já tenha validade para casos passados, defendendo que a medida seja adotada apenas em julgamentos futuros, ele burla ao mesmo tempo a aplicação do conceito de anterioridade em matéria penal em favor do réu, que garante sua necessária estabilidade e coerência, bem como o respeito ao princípio da legalidade, tão caro ao Direito Penal democrático, e indevidamente interfere na aplicação a ser dada aos casos em andamento por decisão da Suprema Corte.

O julgamento desta quarta-feira nada disse sobre Lula ou crimes, mas disse tudo sobre os desembargadores da 8ª Turma do TRF-4: eles levarão a farsa que é a Lava Jato até o fim, condenarão Lula contra toda lógica, razoabilidade e independente da inexistência de quaisquer provas. Para isso estão dispostos a passar por cima de tudo, a rejeitar a mínima coerência com o que dizem, pensam e escrevem em idênticos processos. Pior, estão propensos a aniquilar o Direito.

*Integrante da Executiva Nacional da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)



Alter do Chão: os sinais da tramoia

Com diálogos fora de contexto e nenhum indício que configure crime, prisão de brigadistas ligados à ONG, sob acusação de incêndio proposital, é suspeita. Tudo ocorreu sob circo midiático, um dia antes de Bolsonaro retornar à Amazônia…

Por Tatiana Dias e Alexandre de Santi, no The Intercept Brasil
Bombeiros contém incêndio em Alter do Chão em outubro de 2019. Foto: Bruno Cecim/Futura Press/Folhapress
Documentos, vídeos, interceptações telefônicas, uma investigação de dois meses. Policiais de óculos escuros, mídia devidamente avisada e pautada, fotografias de divulgação, coletiva de imprensa marcada. Tudo pronto para a notícia: polícia prendeu quatro brigadistas ligados à ONGs acusados de atearem fogo na mata em Alter do Chão para receber dinheiro. Saiu em todos os jornais. No dia seguinte, Bolsonaro pisaria pela primeira vez na Amazônia desde a crise internacional provocada pelas queimadas na região. Um roteiro estranhamente sincronizado.

Os presos são Daniel Gutierrez Govino, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Aron Cwerner, membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, no Pará. Eles foram detidos ontem sob a acusação de terem provocado um incêndio criminoso na Área de Proteção Ambiental da região – levados à cadeia, tiveram os cabelos raspados. A polícia também apreendeu equipamentos na ONG Saúde e Alegria, que atua na região, e na qual um dos brigadistas trabalha.

Segundo a Polícia Civil, responsável pela investigação, os brigadistas, ligados à ONG, teriam elaborado plano de colocar fogo na floresta para escandalizar o planeta e receber doações de ONGs internacionais para combater o incêndio que eles mesmos teriam iniciado. “A pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações como do ator Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às queimadas na Amazônia”, disse o delegado José Humberto Melo Jr. na coletiva de imprensa.

Melo Jr. falou à Globonews que a polícia investigava a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso quando desconfiou de um grupo que, segundo ele, tinha “vantagens financeiras” com os incêndios. Grampearam os brigadistas e usaram os diálogos para fundamentar a acusação. Enquanto ele dava entrevista, a Globonews cravou no letreiro na tela: “brigadistas desviavam as doações para combate a incêndios”.

Como provas, a polícia divulgou gravações de conversas dos brigadistas. Também mencionou um vídeo divulgado pelo próprio grupo. “Eles gravaram o início de um fogo, de uma queimada. Só que só estavam eles”, disse o delegado. “Ali não teria como começar um fogo se não fosse por eles”. Esse é um dos vídeos que os brigadistas divulgaram na época:
A defesa dos brigadistas diz que eles são inocentes e que não teve acesso aos vídeos usados como evidências pela polícia e que, por isso, tem duas hipóteses. A primeira é de que “as imagens sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo controlados são criados para exercícios práticos”, feitas com apoio dos bombeiros e com licenças emitidas pelos órgãos responsáveis. A outra é de que a ação mostre uma tática conhecida como “fogo contra fogo”, também realizada em conjunto com os bombeiros para proteger áreas.
As conversas do grupo também foram divulgadas com pirotecnia. A mídia noticiou frases ditas pelos brigadistas que, segundo a polícia, comprovariam a intenção deles de provocar incêndio para ganhar dinheiro. “A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Vaquinha nossa. Tá maravilhoso!”, diz um dos brigadistas em uma conversa. “Tirem suas próprias conclusões”, tuitou o ministro Ricardo Salles:
Mas o blog Ambiência, da Folha, teve acesso aos diálogos completos. E eles mostram que, de fato, os brigadistas falaram sobre dinheiro de doações — mas discutiam quais exatamente seriam as contrapartidas para ele. “Com dúvidas básicas que mostram inexperiência e preocupação com a correção, um dos brigadistas chega a perguntar se precisaria devolver o equipamento após o contrato, ao que o representante da WWF responde ‘não, é de vocês’”, diz o texto. Essas partes da conversa, é claro, não foram divulgadas.

A brigada, criada em 2018, faz parte da ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, criada para articular ações de combate a incêndios na região. Em nota, a defesa dos brigadistas afirma que fez a declaração dos valores recebidos no fim de setembro e que as doações posteriores ainda estão sendo consolidadas em um relatório. Segundo os brigadistas, o valor recebido da WWF foi uma parceria com o instituto para aquisição de equipamentos para a brigada, e as contas serão prestadas no dia 10 de dezembro.

Uma ONG para chamar de culpada

Nesta manhã, a justiça do Pará decidiu manter os quatro brigadistas — todos sem antecedentes criminais — presos. “Mantive as prisões porque as acusações são muito graves de uma possível prática reiterada de incêndios criminosos. O que não significa que eles sejam culpados”, disse o juiz Alexandre Rizzi.

Hoje, o presidente Jair Bolsonaro chega à Amazônia. É a primeira vez que ele pisa na região depois da crise internacional provocada pelos incêndios e pelo desmatamento na área, que chegaram a alimentar, até mesmo, a paranóia de militares e do governo sobre a internacionalização da Amazônia.

Entre agosto e setembro deste ano, o mundo assistiu estarrecido às imagens de queimadas e a divulgação de números do aumento do desmatamento na região. Uma das primeiras reações do presidente foi acusar ONGs que atuam na região de provocarem os incêndios para “chamar a atenção” e conseguir dinheiro. Bolsonaro, como de hábito, não apresentou provas da sua acusação.

“O crime existe, e isso aí nós temos que fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro”, ele disse.

Não foi a única vez: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, também insinuou que o Greenpeace seria responsável pelo derramamento de óleo na costa do Nordeste, outro desastre ambiental deste governo.

Com a midiática operação policial que prendeu os brigadistas, Bolsonaro e Salles podem agora justificar a acusação contra as supostas ONGs criminosas. A prisão se encaixa perfeitamente na estratégia do governo de demonizar e enfraquecer organizações não governamentais, um estágio fundamental para implantar o plano do Governo Bolsonaro para a floresta: abrir espaço para mais monocultura, pecuária e mineração. E a polícia civil do Pará deu o que eles precisavam para mostrar serviço na primeira visita do presidente à região depois da crise.

Há uma investigação paralela que corre no Pará para encontrar os responsáveis pelo Dia do Fogo, ação de fazendeiros da região para provocar incêndios ao longo da BR-163. Tocada pela Polícia Federal, ela mostrou que os responsáveis articularam a queimada via WhatsApp — em um grupo que tinha, inclusive, um delegado da Polícia Civil — para dificultar a fiscalização. O grupo é apoiador das políticas de Bolsonaro para a região. Até agora, ninguém foi preso e nenhum acusado foi exibido como troféu na mídia.

As prisões dos brigadistas são suspeitas. Não há nada nos diálogos que configurem provas robustas contra eles. O que existe é apenas interpretação de trechos de diálogos que, dependendo da inclinação ideológica do leitor, pode significar uma coisa ou outra. O material, que é dúbio, não deveria ser suficiente para um juiz privar um cidadão da liberdade sem condenação.

Mas as prisões criam lastro para uma acusação rocambolesca que favorece o presidente – um presidente que tinha viagem marcada para a região em poucos dias. Até que a polícia apresente provas mais fortes, o que temos é uma tentativa da polícia e do juiz de mostrar serviço para agradar Bolsonaro e justificar a ideologia de criminalização de ONGs, uma tese estranhamente popular entre autoridades das profundezas da Amazônia. Uma tese que, enquanto não for provada, é simplesmente falsa.



A proliferação do fascismo brasileiro, por Luis Nassif

Ignoram-se os sinais evidentes de espalhamento das medidas ditatoriais por todo o país.

Os idiotas da objetividade analisam as dificuldades de Jair Bolsonaro com o Parlamento para apregoarem sua obediência aos limites da democracia. Todas as demais evidências, declarações contra a democracia, iniciativas em torno da GLO (Garanrtia da Lei e da Ordem), eliminação de conselhos de participação, são ignoradas.

Pior, ignoram-se os sinais evidentes de espalhamento das medidas ditatoriais por todo o país.

No Pará, a Policia Civil armou uma arapuca óbvia e evidente contra uma das ONGs que defendem o meio ambiente.

Segundo a blogueira Ana Carolina Amaral, da UOL, a “prova” do envolvimento da ONG com as queimadas está no seguinte diálogo, captado por um grampo. 

A conversa se dá entre Gustavo e uma interlocutora chamada Cecília:

GUSTAVO: Tá triste, foi triste, a galera está num momento pós-traumático, mas tudo bem.
CECÍLIA: Mas já controlou?

GUSTAVO: Tá extinto, é.

CECÍLIA: Que bom.

GUSTAVO: Mas quando vocês chegarem vai ter bastante fogo, se preparem, nas rotas, nas rotas inclusive.

CECÍLIA: É mesmo?

GUSTAVO: Vai, o horizonte vai tá todo embaçado…

CECÍLIA: Puta merda

GUSTAVO: Mas normal, né?

CECÍLIA: Não começou a chover ainda? Porque em Manaus…

GUSTAVO: É, vai começar a chover em dezembro pra janeiro. Se vocês tiverem sorte, chove um pouco antes ou depois que vocês ir embora (sic).

Para a polícia, o diálogo deixa “perceptível referir-se a queimadas orquestradas, uma vez que não é admissível prever, mesmo nessa época do ano, data e local onde ocorrerão incêndios”. A conclusão policial não cita o trecho seguinte da conversa, em que o mesmo suspeito faz previsão semelhante sobre a chegada das chuvas.

Em Porto Alegre, a Brigada Militar espanca e manda para hospital duas professoras que tinham comparecido ao Palácio do Governo para negociar com o governador.

No Rio de Janeiro, a Policia Militar de Wilson Witzel acaba com a festa da torcida do Flamengo, jogando bombas de gás lacrimogênio sobre uma multidão pacífica, no meio da qual estavam famílias, idosos e crianças.

Em São Paulo, o Tribunal de Justiça manda para a prisão Preta e Carmen, duas das maiores lideranças pacíficas do Movimento dos Sem Teto do Centro, com base em um inquérito policial manipulado.

Em Brasília, Bolsonaro tenta o excludente de ilicitude para policiais que reprimirem manifestações de rua, permitindo invadir atribuição de Estados para desalojar invasores de terra.

No Rio de Janeiro, há uma discussão entre a Polícia Federal de Moro, e o Ministério Público Estadual, para saber quem blinda primeiro Bolsonaro nas investigações de Marielle Franco.

Em Porto Alegre, prossegue o aparelhamento do TRF4, com manobras para manter a 8ª Turma (que julga os processos de Lula) sob controle de desembargadores parciais, afastando desembargadores isentos.

Insisto: o país caminha para o fascismo. E o impulso maior vem da cabeça da serpente, a presidência da República, espalhando a sensação de impunidade e estimulando a repressão por todos os poros da República. 

Cada dia de vida do governo Bolsonaro é um passo a mais rumo ao fascismo. Meses atrás, a correlação de forças entre instituições e o governo assegurariam o impeachment, ante um sem-número de episódios de quebra de decoro, especialmente nos ataques à democracia.

O Bolsonaro de hoje está mais forte, e mais forte estará amanhã.

O caso Marielle Franco é a última oportunidade antes da Marcha Sobre Roma do fascismo brasileiro.



quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O Brasil em um processo acelerado de desconstrução

Por Manoel Paixão
Meu caro leitor e minha cara leitora,
Antes de qualquer coisa, é preciso relembrar que o presidente Bolsonaro já admitiu, que chegou ao poder não para construir e sim para desconstruir. "O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa", afirmou em início de governo, durante jantar com representantes da extrema-direita nos Estados Unidos.
Perto de completar um ano, a política destrutiva do governo de plantão está provocando um retrocesso histórico no Brasil.
Como podemos observar, Bolsonaro não governa, pois está muito ocupado com sua guerrilha ideológica absurda, contra "isso tudo que tá aí", que chega às raias da insanidade.
As sandices do presidente, só atrapalham o país e a vida da população, pois agravam ainda mais os reais problemas existentes, que deixam de ser devidamente enfrentados, nas esferas política, econômica e social.
Os indicadores apontam para o aprofundamento do abismo econômico e social, dado aos efeitos da estagnação econômica, da perda de credibilidade, da desindustrialização, do corte nos investimentos públicos em áreas essenciais, da retirada de direitos do povo, da precarização das condições de trabalho, da redução de salários, e do aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade.
Não bastasse essa situação de penúria, vemos ainda a violência crescente, a escalada do ódio e da intolerância, o avanço da extrema-direita, a fascistização do Estado, os abusos e arbitrariedades por parte de autoridades, os constantes ataques às instituições públicas, as ameças à liberdade de expressão e de imprensa, a restrição dos mecanismos representativos de participação popular e controle social, a concentração maior da riqueza nas mãos de poucos, as doenças consideradas erradicadas voltando, o desmatamento e desastres ambientais sem precedentes, a deterioração do nome do país lá fora, e etc..
O país está sendo conduzido a reboque, seguindo o casamento entre uma agenda neoliberal, tocada pelo ministro Paulo Guedes, também endossada na Câmara e no Senado, por seus respectivos presidentes, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, e uma agenda ideológica, tocada pelo que há de mais retrógrado, reacionário e autoritário, nas bancadas do Congresso Nacional e nos núcleos militares e fundamentalistas religiosos do governo.
O custo disso para o país é a desconstrução da Constituição Federal de 1988, do Estado Democrático de Direito, do Estado de Bem-Estar Social, do sistema de garantias e proteção da classe trabalhadora, da soberania nacional e do processo civilizatório.
Se o país continuar seguindo por esse caminho, da antipolítica social, com a destruição das políticas públicas e a imposição de um Estado mínimo, e do entreguismo do patrimônio público, em pouco tempo estará fadado à ruína.
Na rapidez com que as coisas acontecem, tudo de acordo com os interesses das elites financeiras e contra o povo brasileiro, as consequências podem ser muito mais danosas do que pensamos. 
A pergunta é: até quando vamos suportar esse estado de coisas? 
Não podemos mais viver assim, reféns desse governo de práticas autoritárias, antipopulares, antinacionais e antidemocráticas, e desse quadro de retrocessos, que vai cada vez mais se intensificando no país.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Desemprego, subocupação e precarização: os impactos da volta do neoliberalismo sobre o trabalho

O desemprego generalizado que se combina às formas diversas de subocupação e precarização da classe trabalhadora brasileira não é enfrentado pela política econômica e social do governo Bolsonaro

Com a economia nacional funcionando a quase 4 pontos percentuais abaixo do verificado em 2014, não há milagre que permita manter o nível de ocupação adequado à incorporação da totalidade da força de trabalho. (CHARGE: VITOR TEIXEIRA)
Após significativa trajetória de redução na sua participação relativa no desemprego global, o Brasil encerra a década de 2010 com presença relativa inédita na quantidade de trabalhadores sem ocupação no mundo. Isso porque em 2019, por exemplo, o país detém o equivalente a 7,2% do total dos desempregados do planeta, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho.

Há dez anos, em 2009, o Brasil respondia por 4,9% do número global de desempregados, enquanto em 1999, o último ano do século passado, a participação do país no total dos trabalhadores ativos sem ocupação foi de 5,6%. Assim, a presença do Brasil no desemprego mundial decresceu 13,4% entre 1999 e 2009, ao passo que na comparação entre 2009 e 2019 houve crescimento de 48,3%.

Essa brutal inflexão na trajetória do país em relação ao desemprego deveu-se fundamentalmente à alteração da política econômica e social adotada no Brasil. Na década de 2000, o abandono da política neoliberal praticada durante a “era dos Fernandos” (Color, 1990-1992, e Cardoso, 1995-2002) permitiu ao país trazer de volta o crescimento econômico com ampliada geração de empregos combinada com significativa inclusão social.

No saldo da década de 2010, o retorno ao neoliberalismo emergiu em 2015 e impulsionou, por consequência, o decrescimento econômico e o significativo desemprego e a exclusão social. Tanto assim que em 2014, por exemplo, a participação do Brasil no desemprego mundial era de 3,7%, o que representou acentuada queda de 23,9% se comparada ao ano de 2009 (4,9%), seguindo-se uma extrema elevação de 94,9% se relacionada ao ano de 2019 (7,2%).

Essa situação não é mais grave ainda porque as informações adotadas para revelar o excedente de mão de obra às necessidades da economia brasileira concentram-se apenas no conceito do desemprego aberto (pessoas ativas que não exercem alguma ocupação, procuram por trabalho e estão disponíveis para exercer atividade laboral). Com isso, a quantidades de trabalhadores subutilizados, como nos casos do exercício simultâneo de algum “bico” para sobreviver e manter a procura ativa por ocupação, termina sendo desconsiderada da contabilidade do desemprego aberto.

Por outro lado, importa dizer que a manifestação massiva do Brasil desempregado encontra-se distante da batida tese do progresso tecnológico destruidor de ocupações. Aliás, países com maiores indicações de impulsão e internalização do salto tecnológico são aqueles cuja situação ocupacional encontra-se próxima do pleno emprego, como nos EUA e China, com taxa de desemprego abaixo de 4% da População Economicamente Ativa.

Nesses países há uma diversidade de problemas no interior do mundo do trabalho, na maioria das vezes associados à ampliação da condição de precarização das ocupações, porém sem a escassez de ocupações como atualmente registrada atualmente no Brasil. Com a economia nacional funcionando a quase 4 pontos percentuais abaixo do verificado em 2014, não há milagre que permita manter o nível de ocupação adequado à incorporação da totalidade da força de trabalho.

O desemprego generalizado que se combina às formas diversas de subocupação e precarização da classe trabalhadora brasileira não encontra enfrentamento por parte da política econômica e social do governo Bolsonaro. Ao contrário, a ausência das políticas econômicas voltadas à recuperação do nível de consumo e investimento articula-se cada vez mais com o conjunto das medidas destrutivas dos direitos sociais e trabalhistas.

*Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos da Universidade Estadual de Campinas.



quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Dos cristais à porcelana: a América Latina na mira dos milicianos. Por Luís Fernando Vitagliano

As milícias se tornaram a ponta de lança do golpe boliviano e um modelo para toda a região. Travestidas de religiosidade, estão ligadas ao fortalecimento do neoliberalismo e à opressão de minorias

Ao que tudo indica, o que está acontecendo na Bolívia de hoje não é um levante popular. Foram as milícias as responsáveis pelos atos que geraram a total desestabilização do sistema político boliviano. Nos dias que sucederam as eleições, inúmeros representantes do governo, do judiciário e dos parlamentares eleitos foram atacados em suas casas, com suas famílias, por milicianos e renunciaram aos seus mandatos. Não por pressão política, mas por violência explícita. O caso mais escandaloso noticiado pela imprensa brasileira é o da prefeita Patrícia Arce, da pequena cidade de Vinto, próxima a Cochabamba, que foi arrastada pelas ruas, agredida, humilhada e teve seu cabelo cortado. Considerou-se a sua renúncia, mas como se pode discutir renúncia nesse contexto de violência?

As milícias se tornaram a ponta de lança do golpe boliviano. E este é o ensaio – a antessala dos movimentos golpistas. México em primeiro lugar e Brasil em seguida têm a mesma estrutura da boliviana. Um misto de milicianismo messiânico invade o Estado com seus tentáculos pela ação política e o método da repressão.

O que preocupa e deve ocupar nossa atenção é o modelo. Não estamos diante dos golpes institucionais (que podem ser mais lentos e custosos) ou dos golpes militares (que têm sua legitimidade previamente questionada). As milícias podem se camuflar do clamor das ruas, são militarizadas, mas bem menos burocráticas que os aparelhos estatais e conseguem se mobilizar rapidamente. Com uma faísca política acesa é possível acionar essa estrutura de violência que tem por objetivo provocar um choque que cala a própria democracia.

Para as milícias atuarem é preciso que as forças de segurança nacional e local não atuem de forma a garantir o Estado de Direito. Dada a interpretação peculiar de que parte das forças armadas tem espaço dentro das milícias, inclusive com membros correlatos em ambas as instituições. Não existem milícias sem a leniência no Estado e sem ações de apropriação do bem público. Milícias são máfias que vendem proteção contra a violência delas próprias e com isso se apropriam de vários outros negócios onde a regulação pública não consegue ou não quer atuar.

Guardadas as devidas proporções que distanciam o tempo e o espaço, não é coisa recente o uso de grupos paramilitares para atingir objetivos políticos de grupos minoritários pelo terror contra minorias. A noite dos cristais da Alemanha Nazista é a mais conhecida ação de grupos milicianos a serviço da política contra o Estado. Numa mesma noite, casas, comércio, sinagogas judaicas foram invadidas, depredadas e a violência caracterizou a violência alemã sobre os judeus que levou cerca de 30 mil aos campos de concentração, calando qualquer oposição à política antissemita do III Reich.

O que ocorreu na Bolívia recentemente merece ser esclarecido e interpretado. O que se supõe tem respaldo na realidade? Podemos supor que o que ocorreu é uma reação espontânea ou pontual aos acontecimentos eleitorais ou ao confuso sistema de contagem de votos boliviano em reação a um quarto mandato de Evo Morales? Ou é uma ação orquestrada de desestabilização política para forçar um golpe de Estado que tem traços fascistas?

Isso pode ter efeito diverso. Supondo que temos mais indícios de que a segunda hipótese é mais consistente que a primeira, o que provocou toda a instabilidade política foi uma ação paramilitar de um grupo organizado que estava às margens do Estado que foram acionadas por líderes que não querem usar os mecanismos legais disponíveis para questionar os procedimentos e antecipar qualquer movimento para controlar a decisão – portanto, é absolutamente antidemocrático.

Somando-se a esse fato, podemos argumentar que as forças progressistas já estão derrotadas. Supondo que na Bolívia a situação retome a normalidade e os radicais sejam afastados do poder, mesmo assim, não será Evo Morales que retorna com poderes presidenciais, mas retoma o neoliberalismo radical que ampliou as desigualdades sociais e fortaleceu os super-ricos como caminho intermediário ou moderado (esse é o ponto, os milicianos levam a situação ao absurdo tão exagerado, que o absurdo econômico se torna razoável).

A mesma agenda que foi derrotada nas urnas no início do século e novamente se encontra em plena derrocada é a que sustenta silenciosamente as atrocidades bolivianas. Porque assim como a insatisfação popular generalizada está ligada à ampliação da desigualdade social e a transferências da crise de 2008 aos mais pobres, a reação miliciana travestida de religiosidade está ligada ao fortalecimento do neoliberalismo e do status quo através de uma categoria social que quer oprimir minorias e pautas progressistas.

Nesse sentido, o neoliberalismo triunfando na Bolívia, mesmo que Macho Camacho não se torne o presidente, a retomada da estabilidade na Bolívia passa pelo reconhecimento antidemocrático do neoliberalismo. E o antidemocrático neste caso tem efeito direto no empobrecimento do povo e no enriquecimento de uma restrita elite.

Crédito da foto da página inicial: Foto histórica que reproduz o episódio conhecido como Noite dos Cristais, na Alemanha, um prenúncio do holocausto

*É cientista político e professor universitário. É colunista do Brasil Debate.



Faces do fascismo: o fascismo como religião, por Bruno Reikdal Lima

Os resultados obtidos no avanço do movimento fascista são caóticos e de destruição: desestruturação de uma institucionalidade mínima, superpoderes a pequenos grupos e perseguição à oposição ou a dissidentes.

Durante os anos de 1920, o peruano José Carlos Mariátegui estava na Itália e acompanhava a ascensão de Mussolini com suas brigadas fascistas ao poder. Escreve uma série de artigos em jornais de sindicatos operários italianos e artigos para revistas peruanas descrevendo o que ocorria na Europa entre guerras. Em português temos uma coletânea desses textos sob o título As origens do fascismo, organizada por Luiz Bernardo Pericá e publicada pela editora Alameda, em 2010. São textos detalhados e que nos apresentam uma narrativa de eventos cotidianos, grandes acontecimentos políticos e, sempre, acompanhada por uma crítica reflexiva aguda de uma personagem formada em solo ameríndio analisando um território da “antiga” Metrópole.

Em um de seus artigos, intitulado “Novos aspectos da batalha fascista”, de 1925, Mariátegui apresenta uma face peculiar do movimento liderado por Mussolini: “o fascismo quer ser uma religião”. Com isso, o intelectual latino-americano indicava que não se tratava de um movimento organizado, com programa político-econômico claro e objetivos minimamente visavam atender a maior parcela da população organizada sob o Estado italiano. Era, na verdade, um movimento sem pauta, sem programa, que funcionava apenas como movimento. Tratava-se, isso sim, de uma organização imediata (sem outra mediação que não sua própria atuação) reacionária, que apelava à massa correligionária um “misticismo reacionário nacionalista”, que “pretendia ser, mais que um fenômeno político: um fenômeno espiritual”.

Esse movimento era ritualizado, sem dogmatismo claro a não ser a convocação para reagir contra os inimigos, sempre à espreita, e o culto à “nação”, uma abstração que circulava em torno de valores morais também imprecisos. Na verdade, “a bandeira da pátria cobria todos os contrabandos e todos os equívocos doutrinários e programáticos. Os fascistas se atribuíam a representação exclusiva da italianidade. Ambicionavam o monopólio do patriotismo”, como comenta Mariátegui. Desse modo, o movimento se legitimava e instituía em torno de uma espiritualidade reacionária, que apenas tem função enquanto vê a ameaça inimiga e se apoia nos valores nacionais (seja lá o que isso signifique). A aniquilação do inimigo, objetivo fundamental, poria fim a esse misticismo. O problema é que ele nunca é derrotado ou nunca pode ser derrotado para que o movimento seja reanimado e o misticismo reacionário nacionalista convocado para um passo a mais rumo à paz perpétua.

Emmanuel Lévinas, um filósofo judeu que foi preso no campo de concentração nazista Stalag B durante a Segunda Guerra, comentou que a paz perpétua é, na verdade, a paz dos cemitérios. E ao que parece, esse é o resultado último do fascismo como religião. Essa face fascista precisa ser explicitada para ser criticada. Não se trata de atacar a religião por ser religião, mas o fascismo quando funciona como tal. O ovo da serpente quando chocado precisa de uma legitimação moral que não vem apenas com resultados políticos que agradam a massa. Ao contrário: os resultados obtidos no avanço do movimento fascista são caóticos e de destruição: desestruturação de uma institucionalidade mínima, superpoderes a pequenos grupos e perseguição à oposição ou a dissidentes. A legitimação não vem pelo sucesso, mas pela mística que azeita um grupo sedento por vingança ou de esperança. Como pode uma massa inteira aceitar violência contra si mesma se não pela aceitação de que é necessário o martírio ou sacrifício para se receber uma dádiva futura?

Também no início da década de 1920, Walter Benjamin escreve um pequeno texto intitulado “Capitalismo como religião” (publicado em português em uma coletânea de mesmo título pela Boitempo, em 2017, organizada por Michael Löwy), no qual pretende superar a compreensão weberiana vulgar de que o mundo foi dessacralizado, e que o avanço da modernidade supera relações mágicas ou espiritualistas, substituídas por uma racionalidade purificada. Benjamin afirma que o próprio capitalismo é e funciona como religião; uma religião também sem dogma e com culto constante, sempre em movimento, incansável. Aqui há algo de semelhante na estrutura utilizada por Mariátegui para destacar o papel religioso do fascismo ou do fascismo que se pretende uma religião. O culto deve ser constante, estar sempre em movimento.

No culto, o papel do sacrifício é central para a manutenção da ordem social. O antropólogo francês René Girard desenvolve o tema em A violência e o Sagrado, no qual apresenta o papel do sacrifício tanto como apaziguador, ou seja, que soluciona uma disputa para garantir a paz e a coesão social com o assassinato de um bode expiatório, quanto o papel da promessa de um bom futuro mediante a morte de uma vítima. Os teólogos da libertação desenvolvem o tema do sacrifício pensando nas exigências do Mercado de sacrifício aparentemente temporário das massas pobres em nome de um futuro próspero e da aceitação da violência como medida historicamente necessária para que seja implantado um reino de bonança, por meio do Mercado total. Seja, portanto, tanto com o capitalismo como religião, quanto com o fascismo como religião, não são necessários dogmas ou programas claros, mas o culto constante e a necessidade permanente de sacrifícios. Em um, a aceitação da morte das pessoas empobrecidas e socialmente excluídas, e no outro a aniquilação dos inimigos (opositores e dissidentes).

Esse caráter de movimento constante destacado por Mariátegui ao tomar o fascismo como religião, como o misticismo reacionário nacionalista, sem pausa, sem mediações que não sejam a própria atuação do movimento, é o que me permitiu desenvolver o que chamei de “rebelião das elites”, no livro Fetichização do poder como fundamento da corrupção, publicado em 2018 pela editora Fi, fruto da minha dissertação de mestrado. Nele, desafiado por uma provocação do filósofo e pedagogo Alípio Casalli, em contraposição ao que Enrique Dussel chamou de “rebelião das vítimas” (quando grupos organizados em processo de libertação conseguem transformar ou mesmo romper a ordem dominante vigente), propus a “rebelião das elites”, que não precisam criar nenhuma mediação nova para reforçar sua posição de domínio, a não ser potencializar as já existentes. Ou seja: é uma ação imediata. Puramente reacionária, a rebelião das elites visa a criação de uma nova ordem, que por sua vez é conservadora: mantendo as estruturas de dominação, procura torná-las mais potentes. Uma sociedade já racista, será institucionalmente mais racista. Se machista, ainda mais machista. Se sociedade de classes, com abismo e opressão ainda piores.

Mas as elites não atuam e nem podem atuar solitariamente contra o povo. As massas são gigantescas e incontroláveis, se não houver algo que legitime a ordem de exploração. Precisam funcionar como religião. Se ainda encontrarem no campo religioso lideranças, símbolos e ritos que reforcem esse processo, abarcam com maior facilidade parcelas da massa popular. Situações de exploração precisam ser aceitáveis, introjetadas e mesmo replicadas pelos sujeitos – sejam os explorados ou os exploradores.

Há um papel de legitimação moral da violência e da exclusão que precisa estar claro. Pois desde já, precisamos trazer à consciência que nem a aniquilação do opositor e nem o sacrifício do inocente (seja o auto-sacrifício ou o sacrifício de uma vítima) garantem a prosperidade ou a paz perpétua. São os programas populares, planejamentos comunitários, desenvolvimento de organizações sociais que criem instituições e tornem realizáveis projetos político-econômicos que trazem dentro do possível melhorias para as vidas da população. Contudo, essa disputa não se dá primeiramente no convencimento de que o “segundo caminho é o melhor”, mas na crítica do primeiro, ou melhor, na crítica da religião. E nesse ponto, não há como não ser marxista: “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”.

Referências citadas no texto:

BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2017.
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
LIMA, Bruno Reikdal. Fetichização do poder como fundamento da corrupção: uma proposta a partir da filosofia latino-americana de Enrique Dussel. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens do fascismo. São Paulo: Editora Alameda, 2010.