Com diálogos fora de contexto e nenhum
indício que configure crime, prisão de brigadistas ligados à ONG, sob acusação
de incêndio proposital, é suspeita. Tudo ocorreu sob circo midiático, um dia
antes de Bolsonaro retornar à Amazônia…
Por Tatiana Dias e Alexandre de Santi,
no The Intercept Brasil
![]() |
Bombeiros contém incêndio em Alter do Chão em outubro de 2019. Foto: Bruno Cecim/Futura Press/Folhapress |
Documentos, vídeos, interceptações
telefônicas, uma investigação de dois meses. Policiais de óculos escuros, mídia
devidamente avisada e pautada, fotografias de divulgação, coletiva de imprensa
marcada. Tudo pronto para a notícia: polícia prendeu quatro brigadistas ligados
à ONGs acusados de atearem fogo na mata em Alter do Chão para receber dinheiro.
Saiu em todos os jornais. No dia seguinte, Bolsonaro pisaria pela primeira vez
na Amazônia desde a crise internacional provocada pelas queimadas na região. Um
roteiro estranhamente sincronizado.
Os presos são Daniel Gutierrez Govino,
João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Aron
Cwerner, membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, no Pará. Eles foram
detidos ontem sob a acusação de terem provocado um incêndio criminoso na Área
de Proteção Ambiental da região – levados à cadeia, tiveram os cabelos
raspados. A polícia também apreendeu equipamentos na ONG Saúde e Alegria, que
atua na região, e na qual um dos brigadistas trabalha.
Segundo a Polícia Civil, responsável
pela investigação, os brigadistas, ligados à ONG, teriam elaborado plano de
colocar fogo na floresta para escandalizar o planeta e receber doações de ONGs
internacionais para combater o incêndio que eles mesmos teriam iniciado. “A
pessoa jurídica deles conseguiu um contrato com a WWF, venderam 40 imagens para
a WWF para uso exclusivo por R$ 70 mil, e a WWF conseguiu doações como do ator
Leonardo DiCaprio no valor de US$ 500 mil para auxiliar as ONGs no combate às
queimadas na Amazônia”, disse o delegado José Humberto Melo Jr. na coletiva de
imprensa.
Melo Jr. falou à Globonews que a polícia
investigava a possibilidade de o incêndio ter sido criminoso quando desconfiou
de um grupo que, segundo ele, tinha “vantagens financeiras” com os incêndios.
Grampearam os brigadistas e usaram os diálogos para fundamentar a acusação.
Enquanto ele dava entrevista, a Globonews cravou no letreiro na tela:
“brigadistas desviavam as doações para combate a incêndios”.
Como provas, a polícia divulgou
gravações de conversas dos brigadistas. Também mencionou um vídeo divulgado
pelo próprio grupo. “Eles gravaram o início de um fogo, de uma queimada. Só que
só estavam eles”, disse o delegado. “Ali não teria como começar um fogo se não
fosse por eles”. Esse é um dos vídeos que os brigadistas divulgaram na época:
A defesa dos brigadistas diz que eles
são inocentes e que não teve acesso aos vídeos usados como evidências pela
polícia e que, por isso, tem duas hipóteses. A primeira é de que “as imagens
sejam de treinamento de voluntários da Brigada, em que focos de fogo
controlados são criados para exercícios práticos”, feitas com apoio dos
bombeiros e com licenças emitidas pelos órgãos responsáveis. A outra é de que a
ação mostre uma tática conhecida como “fogo contra fogo”, também realizada em
conjunto com os bombeiros para proteger áreas.
As conversas do grupo também foram
divulgadas com pirotecnia. A mídia noticiou frases ditas pelos brigadistas que,
segundo a polícia, comprovariam a intenção deles de provocar incêndio para
ganhar dinheiro. “A vaquinha deu R$ 100 mil pra galera. Vaquinha nossa. Tá
maravilhoso!”, diz um dos brigadistas em uma conversa. “Tirem suas próprias
conclusões”, tuitou o ministro Ricardo Salles:

Mas o blog Ambiência, da Folha, teve
acesso aos diálogos completos. E eles mostram que, de fato, os brigadistas
falaram sobre dinheiro de doações — mas discutiam quais exatamente seriam as
contrapartidas para ele. “Com dúvidas básicas que mostram inexperiência e
preocupação com a correção, um dos brigadistas chega a perguntar se precisaria
devolver o equipamento após o contrato, ao que o representante da WWF responde
‘não, é de vocês’”, diz o texto. Essas partes da conversa, é claro, não foram
divulgadas.
A brigada, criada em 2018, faz parte da
ONG Instituto Aquífero Alter do Chão, criada para articular ações de combate a
incêndios na região. Em nota, a defesa dos brigadistas afirma que fez a
declaração dos valores recebidos no fim de setembro e que as doações
posteriores ainda estão sendo consolidadas em um relatório. Segundo os brigadistas,
o valor recebido da WWF foi uma parceria com o instituto para aquisição de
equipamentos para a brigada, e as contas serão prestadas no dia 10 de dezembro.
Uma ONG para chamar de culpada
Nesta manhã, a justiça do Pará decidiu
manter os quatro brigadistas — todos sem antecedentes criminais — presos.
“Mantive as prisões porque as acusações são muito graves de uma possível
prática reiterada de incêndios criminosos. O que não significa que eles sejam
culpados”, disse o juiz Alexandre Rizzi.
Hoje, o presidente Jair Bolsonaro chega
à Amazônia. É a primeira vez que ele pisa na região depois da crise
internacional provocada pelos incêndios e pelo desmatamento na área, que
chegaram a alimentar, até mesmo, a paranóia de militares e do governo sobre a
internacionalização da Amazônia.
Entre agosto e setembro deste ano, o
mundo assistiu estarrecido às imagens de queimadas e a divulgação de números do
aumento do desmatamento na região. Uma das primeiras reações do presidente foi
acusar ONGs que atuam na região de provocarem os incêndios para “chamar a
atenção” e conseguir dinheiro. Bolsonaro, como de hábito, não apresentou provas
da sua acusação.
“O crime existe, e isso aí nós temos que
fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de
ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com
o repasse de dinheiro público. De forma que esse pessoal está sentindo a falta
do dinheiro”, ele disse.
Não foi a única vez: o ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, também insinuou que o Greenpeace seria responsável
pelo derramamento de óleo na costa do Nordeste, outro desastre ambiental deste
governo.
Com a midiática operação policial que
prendeu os brigadistas, Bolsonaro e Salles podem agora justificar a acusação
contra as supostas ONGs criminosas. A prisão se encaixa perfeitamente na
estratégia do governo de demonizar e enfraquecer organizações não
governamentais, um estágio fundamental para implantar o plano do Governo
Bolsonaro para a floresta: abrir espaço para mais monocultura, pecuária e
mineração. E a polícia civil do Pará deu o que eles precisavam para mostrar
serviço na primeira visita do presidente à região depois da crise.
Há uma investigação paralela que corre
no Pará para encontrar os responsáveis pelo Dia do Fogo, ação de fazendeiros da
região para provocar incêndios ao longo da BR-163. Tocada pela Polícia Federal,
ela mostrou que os responsáveis articularam a queimada via WhatsApp — em um
grupo que tinha, inclusive, um delegado da Polícia Civil — para dificultar a
fiscalização. O grupo é apoiador das políticas de Bolsonaro para a região. Até
agora, ninguém foi preso e nenhum acusado foi exibido como troféu na mídia.
As prisões dos brigadistas são
suspeitas. Não há nada nos diálogos que configurem provas robustas contra eles.
O que existe é apenas interpretação de trechos de diálogos que, dependendo da
inclinação ideológica do leitor, pode significar uma coisa ou outra. O
material, que é dúbio, não deveria ser suficiente para um juiz privar um
cidadão da liberdade sem condenação.
Mas as prisões criam lastro para uma
acusação rocambolesca que favorece o presidente – um presidente que tinha
viagem marcada para a região em poucos dias. Até que a polícia apresente provas
mais fortes, o que temos é uma tentativa da polícia e do juiz de mostrar
serviço para agradar Bolsonaro e justificar a ideologia de criminalização de
ONGs, uma tese estranhamente popular entre autoridades das profundezas da
Amazônia. Uma tese que, enquanto não for provada, é simplesmente falsa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário