*Por Tarso Genro ǀ Colunas - Sul21
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Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal
Federal (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
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O Ministro Dias Toffoli numa entrevista concedida ao velho Estadão na semana passada (30/10/2019), fez
uma constatação que ao final se tornou uma apologia perigosa do que
ocorre hoje num Brasil sem rumo e permeado pelo ódio. Afirmou com
todas as letras que a “elite política do país”, tomada aqui como grupo
preparado (nos partidos) com capacidade de gestão política e
institucional do Estado, fracassou. Por isso a burocracia se
ergueu como força dirigente da política nacional.
O Ministro fez esta afirmativa
como se as “elites” fracassassem pelos mesmos motivos e também
tivessem propósitos políticos idênticos. Tal fato teria despertando na
alta burocracia estatal, assim, uma lúcida vontade salvadora para para
tomar conta da moral pública e das reformas, como se ela - alta burocracia
- também tivesse sempre propósitos comuns e tivesse a capacidade de
empalmar, por si mesma, a virtudes da república.
Brutal e elementar equívoco, pois se
existe falta de rumo na “elite política (tradicional) do país” é
precisamente porque a maioria do que se designa como “burocracia” (leia-se
alta burocracia do Estado) foi cooptada politicamente através de um golpe
midiático-parlamentar, por um grupo de extrema direita, vinculado ao que tem
de pior na nossa política “sem partido” que, como se sabe hoje, tem
profundas relações com as religiões do dinheiro e com o crime organizado.
Esta é, na verdade, a coligação de fato
que deu espaço para que fossem eliminadas as influências das elites
tradicionais sobre o jogo político liberal-democrático, que muito longe de
ser perfeito se constituía - na correlação de forças como as do presente -
no único processo conhecido, até hoje, de depuração da democracia e de
reformismo democrático institucional.
Weber, no seu “Parlamentarismo e
Governo” diz a certa altura: “Este escritor que provém de uma família do
funcionalismo público, seria o último a permitir que esta tradição se
maculasse. Mas o que aqui nos interessa são realizações políticas
não-burocráticas, e os próprios fatos provocam o reconhecimento que
ninguém pode na verdade negar: que a burocracia fracassou completamente
sempre que devia lidar com problemas políticos.” Weber já farejava o caos
político e institucional que exigia soluções políticas que, não
respondidas, transformariam os criminosos nazistas em Chefes de Estado.
Os últimos acontecimentos que envolvem a
qualidade política da democracia já mostram as duras consequências
pornográficas das formas de exceção, instauradas processualmente no país e
no mundo: da defesa da tortura à defesa das execuções milicianas; do
convite para assassinar adversários à consagração aberta do retorno à
ditadura; dos convites indecifráveis de relações amorosas às promessas de
levar os dissidentes para serem executados “na ponta da praia” - entre
uma e outra insanidade - indicando que país navega num mar
de loucuras, sociopatias, ignorâncias medievais e pobreza de espírito.
Isso não seria possível sem o golpe
contra Lula e Dilma, isso não seria possível sem a naturalização da
loucura no poder, providenciada pela mídia oligopólica; isso não seria
possível sem classes dominantes saudosistas do escravismo; sem a
falta de generosidade e ausência de consideração humana de grande parte
das classes médias brasileiras.
O contexto desta crise de moralidade da
política e de radicalização da violência de classe está bem exposto no
“Guerra Híbrida contra o Brasil” (Ilton freitas, Liquidbook,
2019, 158 pgs.) que mostra que o compartilhamento planejado de “fake
news”, vídeos, informações aparentemente inocentes promovidas pelo Império
que convenceram - em conjunto com a mídia oligopolizada - que o Brasil
renasceria tirando Dilma do Governo e demonizando todas as forças de
esquerda, inclusive aquelas que se integraram conscientemente no golpismo,
por acharem que estavam fazendo o melhor pelo país.
Não conheço pessoas simpatizantes de
quaisquer partidos políticos -conscientemente defensoras do regime
democrático-representativo - que sustentem algo como o ‘direito à
corrupção’. Também desconheço qualquer partido político que, chegado ao
Governo -com mais ou menos poder - não sofra em alguma medida, por um
certo percentual de seus integrantes, as tentações para corromper-se.
As tentações começam pelas dúvidas dos
agentes políticos mais (ou menos) conscientes das suas prerrogativas,
sobre quais são os limites entre o “público” e o “privado” e chegam
até ao desconhecimento de quais são os limites políticos do Governo
legítimo - para a aplicação do seu “programa de partido” - sem invadir os
direitos da oposição. No Governo atual não se trata de “dúvidas” ou falta
de “conhecimento”, mas de políticas deliberadas de liquidação
da democracia a partir de novas relações de poder
Os direitos na democracia liberal estão
inscritos -com o mesmo cinzel de legitimidade- na Carta Constitucional.
Eles asseguram que qualquer oposição pode ser tornar Governo, mas
são direitos que construíram só um arcabouço ideal-formal -de
normas e fundamentos- não são a realidade concreta da vida política moderna, idealizada na constituição democrática.
Engendrados na história da Revolução
Francesa, os fundamentos da Revolução foram artificialmente (e
positivamente), construídos nas filosofias da Igualdade e da Justiça, para
serem bases de uma nova ordem. Esta, todavia, abominava a escravidão
no alvorecer da indústria moderna, porque precisava permitir que a
necessidade econômica construísse - como imperativo moral - a liberdade de
trabalho através do regime de prestação assalariada.
Comprar mão-de-obra livre através do
assalariamento dispensava a propriedade do corpo da pessoa, pelo dono da
indústria, mas permitia apropriação da sua força de trabalho como
mercadoria, para gerar riquezas e fazê-las circular. Era a abertura de um ciclo
que criaria a ideologia da “identidade necessária” entre democracia e capitalismo,
que agora está no fim, abrindo a época em que democracia e capitalismo se
harmonizariam, contratariam e dissentiram, abrindo as pistas para a
decolagem do Estado Social, de boa memória e curta duração.
O “Estado Social” é, pois, um estado essencialmente “político”
-artificial e frágil- porque ele se contrapõe à exploração máxima que está
na gênese do capitalismo. Gramsci (no Vol. 1, das “Cartas”), disse que
“Hegel não pode ser pensado sem a Revolução Francesa e sem Napoleão e suas
guerras, isto é sem a experiências vitais e imediatas de um período
histórico intensíssimo de lutas, no qual o mundo exterior esmaga o
indivíduo e o faz tocar a terra.”
São os momentos em que os conceitos são
obrigados a por os pés no chão -como agora- onde aparecem as flores
da dúvida surgindo com força: mas a dúvida não é mais se a democracia,
como regime das maiorias políticas, é realmente compatível com o
capitalismo, mas se o capitalismo consegue sobreviver - dentro de
uma democracia “verdadeira” - sem a manipulação permanente dos meios
de comunicação oligopolizados e sem a violência miliciana organizada fora
do Estado.
Nestes momentos de emergência vulcânica
de um novo tempo já se configura um novo “espírito de época”, que se
propõe a aparecer - pela proximidade da ditadura militar - como um
“passado ainda demasiado presente” que, se desafia os verdadeiros
estadistas, põe à luz do dia o atraso, a sociopatia ou a simples
mediocridade dos que estão no poder. São os momentos radicais de crise em
que os seres humanos de todas as ideologias expelem o que tem de melhor ou
de pior, da sua consciência moral e da sua dimensão de humanidade.
José Bonifácio - monarquista
constitucional - disse sobre as misérias da escravidão na Constituinte de
1823 que “a sociedade civil tem por base primeira a justiça e por
fim a felicidade dos homens. Mas que justiça tem um homem para roubar a
liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem e dos
filhos destes filhos? (…) Aqui Bonifácio se ergue acima da sua época e
enuncia o humanismo moderno, que repele ver o homem como coisa e objeto e
se coloca como um Estadista luminar.
Passemos a uma época mais imediata. No
seu “La palabra de Behemoth” (Campdrerrich, Ramón, Ed. Trotta) o autor
fala sobre a consolidação jurídica e política do nazismo e relata: “em
poucos meses, a atividade do partido nazista e seus aliados
conservadores tinham varrido da realidade institucional alemã, todos os
elementos que poderiam caracterizar um estado de direito”, desde os
direitos fundamentais até a liberdades políticas, através de uma
“hábil combinação de manipulação da opinião pública (…) com a
violência terrorista das organizações paramilitares.”
Estamos mais próximos de José Bonifácio
ou de Behemoth? Perdeu a sociedade brasileira a capacidade de refletir
– pela sua maioria – soluções compostas para emergências, que nos afastem
das portas definitivas do inferno? Na época do domínio global
do capitalismo financeiro e do mercado, como forças agregadoras de
corações e mentes -na qual se dissolve o próprio trabalho como identidade-
só a subjetividade humana voltada plenamente para a política pode
abrir novos cenários com mais democracia.
A unidade hoje deve ser promovida para
fechar as portas do inferno. Já se disse que o fascismo era a “elegância
no poder”. O certo seria dizer, porém, que ele é o crime transformado em
política de Estado, que nenhuma burocracia ou “leis férreas da economia”
poderão bloquear.
Se não formos derrotados em definitivo
será porque conseguiremos despertar o que tem de melhor em cada ser
humano. Porque o fascismo sempre venceu porque soube acordar em todos, nos
pobres e nos ricos, o que eles tem -também como vítimas da nossa história
milenar- de mais cruel e animal. Hora da cultura histórica, como
diria Benedetto Croce: ela “tem o objetivo de manter viva a consciência
que a sociedade humana tem do passado, ou melhor do seu presente, ou
melhor, de si mesma.”
*Tarso
Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre,
ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações
Institucionais do Brasil.
[As opiniões emitidas nos artigos
publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não
necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.]
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