São os herdeiros da família patriarcal
brasileira, da casa grande e da tradição do uso da violência nas relações
públicas e privadas
*Por Fredericode Almeida
(Foto: Lula Marques) |
É muito mais do que (mais) um episódio
bizarro da política brasileira a confissão de Rodrigo Janot de que, quando PGR,
chegou a ir armado ao STF para matar o ministro Gilmar Mendes e depois
suicidar-se.
Admitindo-se não ser mera bravata, o
destempero de Janot poderia ter resultado em uma tragédia poucas vezes vista na
história da República – como o assassinato de João Pessoa, em 1930, ou os tiros
disparados pelo senador Arnon de Melo contra o colega Silvestre Péricles, em
1963, e que acabaram matando o senador José Kairala, dentro do plenário do
Senado Federal.
Janot havia alegado a suspeição de
Gilmar Mendes, alegando que a esposa do ministro era sócia do escritório de
advocacia que defendia Eike Batista, réu em uma ação iniciada pelo MPF; Mendes
então teria feito insinuações de que a filha de Janot atuava na defesa criminal
da OAS, empreiteira também acusada pelo MPF no âmbito da Lava Jato. Janot
pensou em assassinato e suicídio em defesa da honra de sua filha e de sua
própria.
Homens da elite branca e de origem
aristocrática defendendo na bala a honra de sua família ou seus interesses
políticos pode parecer coisa do passado, que persistiram apenas nos rincões
supostamente imunes às “luzes” da civilização e da modernidade; mas os
elementos dessa tragédia são terrivelmente presentes e arraigados na sociedade
brasileira e no funcionamento das instituições judiciais.
A eleição de Bolsonaro se deu com a
emersão desses elementos na cena política, baseada em misoginia, machismo,
autoritarismo e defesa das armas – fazer “arminha com a mão” se tornou um
símbolo de Bolsonaro e de seus seguidores. Eleito presidente, o ex-militar fez
avançar sua agenda armamentista, em paralelo com o desmonte das políticas de
gênero e de combate à violência contra a mulher, aos cuidados da
fundamentalista Damares Alves, defensora de modelos “tradicionais” de família.
Segundo pesquisa do Ibope do início
deste ano, a flexibilização do acesso legal a armas proposta por Bolsonaro tem
mais defensores no Sul “desenvolvido” do que no Nordeste “atrasado”, e tem mais
apoio entre homens (50%) do que entre mulheres (27%).
Não é à toa essa diferença de gênero: de
acordo com o Atlas da Violência, embora nos números gerais os homens sejam as
vítimas preferenciais de homicídios no Brasil (60.556 em 2017, quando 4.936
mulheres foram mortas), as mulheres morrem vítimas de disparos de armas de fogo
em situações muito específicas de sua condição de gênero: 28,5% das mulheres
assassinadas morreram dentro de casa, e se o percentual de mulheres mortas por
armas de fogo fora de
casa caiu 3,3% entre 2007 e 2017, o número de mortes de
mulheres por armas de fogo dentro
de casa aumentou 17,1%.
Esse dado reforça a constatação do
problema do feminicídio (o homicídio praticado contra mulheres em razão de seu
gênero, na maior parte das vezes por homens de seu convívio doméstico) como um
grave problema de violência de gênero. A vitimização de mulheres negras nessas
condições é ainda mais acentuada. Outros dados revelam a relação entre
masculinidade, morte e arma de fogo: homens são os que mais se suicidam, e
embora o enforcamento seja o meio mais empregado por pessoas de ambos os
gêneros, o uso de armas de fogo é mais recorrente entre homens do que entre
mulheres.
Essa relação é social e culturalmente
construída, e fundamenta a produção de subjetividades masculinas medidas pelas
força e pela violência, com raízes antigas e profundas, mas que se atualizam no
contexto atual de avanços dos movimentos feminista e LGBTQ+, de difusão de
discursos de ressentimento e ódio de gênero pela internet e de mobilizações
políticas associadas à masculinidade violenta, como as de Bolsonaro.
Apesar do aparente lustro de erudição e civilidade, o mundo do direito não está imune às manifestações dessa masculinidade violenta – e não apenas quando descobrimos um caso como esse de Janot.
Como mostram os estudos da socióloga
Maria da Glória Bonelli, apesar do aumento do número de mulheres nas faculdades
de direito e nas carreiras jurídicas desde os anos 1960, as operadoras do
direito enfrentam ambientes masculinizados, que restringem suas oportunidades
profissionais e criam “lugares” e “roteiros” pré-determinados para seu
desenvolvimento profissional. Por isso é que quando olhamos para as posições
superiores das hierarquias das carreiras jurídicas, o percentual de mulheres em
cargos de liderança (sócias de escritórios, procuradoras, desembargadoras e
ministras de tribunais superiores) diminui drasticamente.
Essa desigualdade independe do emprego
da violência física pelos homens que dominam o mundo do direito, mas é repleto
de violência simbólica: para um desembargador federal, juízas “têm vocação para as varas de
família”, e seriam mais rigorosas como juízas criminais por terem recebido uma
formação “mais teórica, voltada para os estudos, do que propriamente para
atividades que exigem luta intensa e diária, como a advocacia” (ou porque
“sendo mães, trazem consigo a missão de educar, de mostrar os erros e os
acertos”); para um juiz e ex-candidato à presidência da Associação dos
Magistrados Brasileiros, a presença de poucas mulheres nos tribunais superiores
é uma “conquista simbólica”, que representa “uma atenção acurada aos detalhes,
flexibilidade e intuição”, e “mais sensibilidade para a administração da
justiça”.
Aliás, a história de duas pioneiras na
presença feminina em tribunais superiores demonstra bem a força dessas pequenas
violências simbólicas em um universo predominantemente masculino. Na sabatina
para a aprovação da indicação de Ellen Gracie Northfleet como a primeira
ministra do STF, em 2006, um senador usou sua formação como médico
ginecologista para dizer que aprendeu “a lidar de perto com as mulheres, a
entender muito profundamente a sensibilidade feminina”. Primeira mulher a
assumir uma cadeira no STJ, Eliana Calmon sempre contou com descontração as
dificuldades que enfrentou ao se ver obrigada a utilizar o banheiro masculino,
o único disponível no plenário do tribunal aos seus ministros.
Além de homens e ocupantes de posições
institucionais de liderança no sistema judicial, Janot e Mendes são
descendentes de velhas elites que continuam a se reproduzir na sociedade e
também no mundo do direito: Janot é um Monteiro de Barros, família de
proprietários de terras e políticos com títulos nobiliárquicos no Império
escravocrata, e que já produziu um ministro do antigo Supremo Tribunal de
Justiça (o equivalente ao STF no regime monárquico); Mendes é de uma conhecida
família de latifundiários do Mato Grosso, recorrentemente acusada de práticas
violentas e nada republicanas.
São, assim, os herdeiros da família
patriarcal brasileira, da casa grande e da tradição do uso da violência nas
relações públicas e privadas. Deixando de lado eventuais problemas
psiquiátricos e de caráter, não representam nada de novo no Brasil de
Bolsonaro, que vê emergir das sombras o que há de mais brutal em nossa história
e em nossa sociabilidade.
Bibliografia
complementar:
BONELLI, Maria da Gloria – Profissionalismo e diferença de gênero na magistratura paulista
BONELLI, Maria da Gloria – Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre
juízes e juízas estaduais e federais
BONELLI, Maria da Gloria – Carreiras jurídicas e vida privada: intersecções entre trabalho
e família
ALMEIDA, Frederico – As elites
da Justiça: instituições, profissões e poder na política da justiça brasileira
(Este texto não reflete necessariamente
a opinião de CartaCapital)
*Cientista político, professor do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do PolCrim
– Laboratório de Estudos de Política e Criminologia.