Mas, paradoxalmente, em tempos como estes – sombrios! – é comum a fraternidade se manifestar mais plenamente, como um aspecto mesmo da humanidade
*Por Rômulo Moreira
*Por Rômulo Moreira
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Hanna Arendt, ao receber o Prêmio
Lessing da Cidade Livre de Hamburgo, proferiu um discurso que está incluído em
seu livro “Homens em Tempos Sombrios”, obra que foi escrita “ao longo de um período de doze anos, no
impulso do momento ou da oportunidade.”[1]
Em suma, como ela própria deixa claro no
prefácio, trata-se de uma “coletânea
de ensaios e artigos referentes basicamente a pessoas – como viveram suas
vidas, como se moveram no mundo e como foram afetadas pelo tempo histórico.”
Ainda no prefácio, Arendt nos alenta com
a afirmação de que “mesmo no
tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal
iluminação pode bem provir, menos das teorias e conceitos, e mais da luz
incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas
suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão
pelo tempo que lhes foi dado na Terra. Olhos tão habituados às sombras, como os
nossos, dificilmente conseguirão dizer se sua luz era de uma vela ou a de um
sol resplandecente. Mas tal avaliação objetiva me parece uma questão de
importância secundária que pode ser seguramente legada à posteridade.”
Lembrando, então, Lessing – que
emprestava o seu nome ao prêmio – Arendt dizia que o poeta e filósofo alemão do
século XVIII “nunca se sentiu
à vontade (e provavelmente nunca o quis) no mundo tal como então existia, e
mesmo assim sempre se manteve comprometido com ele à sua própria maneira.”
A atitude de Lessing, “em relação ao mundo, não era positiva
nem negativa, mas radicalmente crítica e, quanto ao âmbito público de sua
época, totalmente revolucionária.” Esta sua “têmpera revolucionária” provocou,
ao longo de sua vida, “muitos
mal-entendidos”, o que o levou a não ter “maior crédito na Alemanha, país onde a
verdadeira natureza crítica é menos entendida do que em qualquer outro lugar.”
Lessing – “mestre de todo o polemismo em língua alemã”,
como adjetivou Arendt – certamente por isso, “nunca se reconciliou com o mundo em que viveu.”
Ele se comprazia “em desafiar
preconceitos e contar a verdade aos apaniguados da corte” e, “por mais caro que pagasse por esses
prazeres, eram literalmente prazeres.”
Certa vez, a este respeito, ele disse “que todas as paixões, mesmo as mais
desagradáveis, são, como paixões, agradáveis, pois nos tornam mais conscientes
de nossa existência, fazem-nos sentir mais reais.”
Duas questões representavam preocupações
para Lessing: uma delas era a liberdade, “muito
mais ameaçada por aqueles que pretendiam ´obrigar à fé por demonstrações`
do que por aqueles que viam a fé como um presente da graça divina.”
Uma outra dele preocupação era o próprio mundo, “onde achava que deveriam caber, em lugares separados, tanto
a religião como a filosofia, de modo que, após a ´partilha`, cada uma possa
seguir seu próprio caminho, sem atrapalhar a outra.” Disse ele
certa vez:
“Não
tenho obrigação de resolver as dificuldades que crio. Talvez minhas ideias
sejam sempre um tanto díspares, ou até pareçam se contradizer entre si, basta
que sejam ideias onde os leitores encontrem material que os incite apenas por
eles mesmos.”
Para Lessing, o pensamento não era algo
que brotava do homem ou da mulher, tampouco era a manifestação “de um eu.” Ao contrário, “o indivíduo escolhe tal pensamento
porque descobre no pensar um outro modo de se mover em liberdade no mundo.”
Arendt tratou, então, daquela que ela
considerava, “historicamente,
a mais antiga e também a mais elementar” das liberdades: a
liberdade de movimento, a que nos permite “partir
para onde quisermos”, razão pela qual “a limitação da liberdade de movimento, desde tempos imemoriais,
tem sido a pré-condição da escravização.” Quando se perde esta
liberdade, nós nos recolhemos para a nossa “liberdade
de pensamento”, esta sempre inviolável.[2] É
como se fora uma retirada para o estoicismo, “uma fuga do mundo para o eu que, espera-se, será capaz de
se manter em soberana independência em relação ao mundo exterior.”
Lessing não era daqueles que pretendiam
estabelecer, com o seu pensamento, conclusões definitvas, “mas estimular outras pessoas ao
pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar
um discurso entre pensadores.” O seu pensamento, portanto, não era
“o diálogo silencioso
(platônico) entre mim e mim mesmo, mas um diálogo antecipado com outros, e é
essa a razão de ser essencialmente polêmico”, sobretudo porque “o que estava errado, e que nenhum
diálogo nem pensamento independente jamais poderia resolver, era o mundo.”
Quando o homem, afirma Arendt, “se abstém de pensar e deposita sua
confiança em velhas ou mesmo novas verdades – lançando-as como se fossem moedas
com que se avaliassem todas as experiências -, a própria humanidade do homem
perde sua vitalidade”, tornando-se um “mundo inumano, inóspito para as necessidades humanas.”
Para ela, e muito a propósito de nosso
País, “a história conheceu
muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o
mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à
política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais
e liberdade pessoal.”
Mas, paradoxalmente, em tempos como
estes – sombrios! – é comum a fraternidade se manifestar mais plenamente, como
um aspecto mesmo da humanidade: “esse
tipo de humanidade (que se realiza via fraternidade) realmente se torna inevitável quando os
tempos se tornam tão extremadamente sombrios para certos grupos de pessoas que
não mais lhes cabe, à sua percepção ou à sua escolha, retirar-se do mundo”,
diz ela.
De uma tal maneira que “a humanidade sob a forma de
fraternidade, de modo invariável, aparece historicamente entre povos perseguidos
e grupos escravizados”, entre os párias, enfim. Aliás,
possivelmente é uma das únicas vantagens “que
os párias deste mundo, sempre e em todas as circunstâncias, podem ter sobre os
outros.”
Ocorre algo “como se, sob a pressão da perseguição, os perseguidos
tivessem se aproximado tanto entre si que o espaço intermediário que chamamos
mundo simplesmente desaparecesse”, passando a “nutrir uma generosidade e uma pura bondade de
que os seres humanos, de outra forma, dificilmente seriam capazes”,
sendo também “fonte de uma
vitalidade e alegria pelo simples fato de estarem vivos, antes sugerindo que a
vida só se realiza plenamente entre os que, em termos mundanos, são os
insultados e injuriados.”
Em seguida, Arendt trata da compaixão “como parte inseparável e inequívoca da
história das revoluções europeias”, desde a Revolução Francesa.
Para ela, trata-se a compaixão, “inquestionavelmente,
de um afeto material natural que toca, de forma involuntária, qualquer pessoa
normal, à vista do sofrimento, por mais estranho que possa ser o sofredor, e
portanto poderia ser considerada como base ideal para um sentimento que, ao
atingir toda a humanidade, estabeleceria uma sociedade onde os homens realmente
poderiam se tornar irmãos.”
Então, Arendt compara – a partir da antiguidade
até os tempos modernos – a compaixão com o medo, ambos como algo “totalmente natural.” Talvez
por isso, já “Aristóteles
tratava a compaixão e o medo juntos.”
E qual seria a antítese da compaixão?
A crueldade, responde Arendt (e não a
inveja, “o pior vício na
esfera da humanidade”), que não deixa de ser, assim como a
compaixão, “um afeto, pois é
uma perversão, um sentimento de prazer ali onde naturalmente se sentiria dor.”
Arendt, a filósofa alemã de origem
judaica, trata depois do que ela chama de “emigração
interna”, fenômeno (“curiosamente
ambíguo”) que ela identificou muito claramente na Alemanha nazista
(onde se viveu “o mais sombrio
dos tempos”), consistente no fato de “haver pessoas dentro da Alemanha que se comportavam como se
não mais pertencessem ao país, que se sentiam como emigrantes.”
Mas, por outro lado (daí a ambiguidade referida pela autora), “indicava que não haviam realmente
emigrado, mas se retirado para um âmbito interior, na invisibilidade do pensar
e do sentir.”
A emigração interna dá-se justamente em
face de que, dada “uma
realidade aparentemente insuportável”, o homem “desvia-se do mundo e de seu espaço
público para uma vida interior, ou ainda simplesmente ignora aquele mundo em
favor de um mundo imaginário, ´como deveria ser` ou como alguma vez fora.”
Trata-se, sem dúvidas, de uma fuga do
mundo, justificável apenas “na
medida em que não se ignore a realidade.” Neste caso, “a força pessoal dos fugitivos cresce à
medida que crescem a perseguição e o perigo.”
Quase ao final do texto, Arendt
debruça-se sobre o tema da amizade, lembrando que já “os antigos consideravam os amigos
indispensáveis à vida humana, e na verdade uma vida sem amigos não era
realmente digna de ser vivida”[3],
inclusive “para partilhar sua
alegria” e não apenas os “momentos
de infortúnio.”
Assim, nada obstante aquela “máxima segundo a qual é apenas no infortúnio
que descobrimos os verdadeiros amigos”, o mais certo é que os “nossos verdadeiros amigos são em geral
as pessoas a quem revelamos sem hesitar nossa felicidade e de quem esperamos
que compartilhem de nosso regozijo.”
Enfim, chega-se ao tema da verdade,
inicialmente fazendo uma diferença entre os que acreditam possuir a verdade e
os que estão seguros de estarem certos.[4] Assim,
no tempo de Lessing (meados do século XVIII), a verdade “era uma questão filosófica e religiosa,
ao passo que nosso problema de estarmos certos surge no interior da ciência e é
sempre decidido por um modo de pensamento orientado para a ciência.”
Arendt lembra que Lessing “tinha opiniões altamente pouco ortodoxas
a respeito da verdade”; por exemplo, “recusava-se a aceitar quaisquer verdades, mesmo as
presumivelmente enviadas pela Providência, e nunca se sentiu compelido pela
verdade, fosse ela imposta pelos processos de raciocínio seus ou de outras
pessoas.” Contentava-se ele com o “número infinito de opiniões que surgem quando os homens
discutem os assuntos deste mundo.”
Alegrava-o também o fato de que a
verdade, “tão logo enunciada,
imediatamente se transformava numa opinião entre muitas outras, era contestada,
reformulada, reduzida a um tema de discurso entre outros.”
Para ele não poderia “existir uma verdade única no mundo
humano”, razão pela qual – e isso também o contentava –, “enquanto os homens existirem, o discurso
interminável entre eles nunca cessará.” Do contrário, se,
efetivamente, existisse “uma
única verdade absoluta, se pudesse existir, seria a morte de todas aquelas
discussões”, seria então “o
fim da humanidade”…
Lessing, “polêmico a ponto de brigar”, no entanto, “nunca realmente ansiou por brigar com
alguém com quem estivesse discutindo”, pois o que lhe interessava
era “humanizar o mundo com o
discurso incessante e contínuo sobre seus assuntos e as coisas que nele se
encontravam.” E, como ele era “uma
pessoa totalmente política, insistia que a verdade só pode existir onde é
humanizada pelo discurso, onde cada homem diz, não o que acaba de lhe ocorrer
naquele momento, mas o que ´acha que é verdade.`”
Por fim, como uma lição para nós
brasileiros que, de certa maneira, vivemos em tempos sombrios, é necessário que
nos aproximemos entre nós, como numa fraternidade, e busquemos “no calor da intimidade o substituto para
aquela luz e iluminação que só podem ser oferecidas pelo âmbito público.”
Recomendo muito a leitura desse livro.
*Rômulo de Andrade Moreira – Procurador
de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito
Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[1] São
Paulo: Editora Schwarcz, 2010.
[2] Aqui
lembrei de George Steiner, para quem “o
pensamento é ilimitado”, que “podemos
pensar sobre tudo e qualquer coisa” e de que “aquilo que fica fora ou para além do
pensamento é rigorosamente impensável” – “esta possibilidade situa-se fora da
existência humana.” Para ele, “a
infinitude do pensamento é um marcador crucial da eminência humana”,
pois “possibilita o domínio do
homem sobre a natureza e, dentro de certas limitações, tais como a enfermidade
e o sofrimento mental, sobre o seu próprio ser. Ele apoia a liberdade radical
do suicídio, de interromper voluntariamente, e no momento escolhido, o
pensamento.” Logo, “a
infinitude do pensamento é também uma ´infinitude incompleta`.” Daí
uma contradição insuperável: “Nunca
saberemos até onde o pensamento pode ir no que diz respeito à soma da
realidade. Não sabemos se aquilo que nos parece sem limite não é, na realidade,
absurdamente estreito e irrelevante. Quem nos poderá dizer se a grande parte da
nossa racionalidade, análise e percepção organizada não é constituída por
ficções pueris?” (“Dez Razões – Possíveis – para a Tristeza do Pensamento”,
Lisboa: Relógio D`Água Editores, 2015, páginas 15 e seguintes).
[3] Para
os gregos, por exemplo, “a
essência da amizade consistia no discurso, pois apenas o intercâmbio constante
de conversas unia os cidadãos numa polis.” Eles chamavam “essa qualidade humana que se realiza no
discurso da amizade de philanthopia, ´amor dos homens`, pois se manifesta
numa presteza em partilhar o mundo com outros homens”, ao contrário
da misantropia, onde o homem (o misantropo) “não
encontra ninguém com quem trate de partilhar o mundo, não considera ninguém
digno de se regozijar com ele no mundo, na natureza e no cosmo.”
[4] Nada
obstante a diferença entre estes dois pontos de vista, havia algo entre eles em
comum: “os que assumem um ou
outro geralmente não estão preparados, em caso de conflito, para sacrificar seu
ponto de vista à humanidade ou à amizade.”
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Fonte: Publicado no Jornal GGN
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