Rompe-se a barreira da separação
funcional entre o sistema político e o sistema jurídico quando os fins
políticos passam a ser justificadores de atuações jurídicas.
Brasilia, DF. 05/07/11. Supremo Tribunal Federal, Praca dos Tres Poderes. (Foto: Dorivan Marinho) |
A última fronteira da racionalidade
democrática talvez seja a vedação do uso político do processo penal.
A razão democrática nos impõe que as
contendas políticas sejam resolvidas nas urnas, por meio do voto e do desejo da
maioria, e que a mão do Estado não discrimine gregos e bahianos, troianos e
filisteus.
Ser democraticamente racional implica
condenar ou absolver quem quer que seja independentemente do comunismo ou
fascismo professado, fazendo-o em razão do ato praticado e do reconhecimento
dos elementos objetivos e subjetivos do tipo penal.
Essa mesma racionalidade exige que
Judiciário e Ministério Público obedeçam a suas funções constitucionais e não
pratiquem atos com o objetivo de melhor pontuar no jogo político.
O binômio amigo x inimigo construído por
Carl Schmitt não pode ser usado por instituições e Poderes do Estado sem que
isso cause uma ruptura na própria ideia de Estado, democraticamente
considerado.
Ministério Público, como parte que é,
pode ter adversários em processos judiciais, mas não pode ter inimigos. O
Judiciário, como imparcial que é, não pode ser combatente de nada, mas sim ente
decisor de uma contenda.
Isso se dá pela só razão de o Estado
ocupar uma função superior ao binômio amigo x inimigo, que se restringe ao
campo da disputa política para controle do Governo, e não se aplica às relações
do Estado com os cidadãos.
Rompe-se a barreira da separação
funcional entre o sistema político e o sistema jurídico quando os fins
políticos passam a ser justificadores de atuações jurídicas.
Quando as condenações e as absolvições
são usadas não para realizar o direito penal objetivamente considerado, mas
como etapa do processo político, já deixamos de ser Estado Democrático de
Direito e voltamos a período anterior à modernidade.
Esse desvio de finalidade — ou erro
funcional — na atuação das instituições do sistema de justiça, que por óbvio
não deveriam compor o sistema político, também se demonstra através da
linguagem.
Sujeitos do embate jurídico professam o
mantra maniqueísta do combate à corrupção: ou se é a favor da corrupção ou
contra ela. Obviamente, aquele que se prende aos pressupostos do direito penal
objetivo e não vê crime cometido ou não vê justa causa para uma prisão cautelar
— conforme a lógica do discurso maniqueísta — não é um aplicador do direito, é
“a favor da corrupção”!
Da mesma maneira, aquele que pede ou
defere uma prisão sem justa causa, movido por sua íntima convicção, é contrário
à corrupção, mesmo que pratique um crime para combatê-la, segundo o mantra
ideológico por muitos professado.
A linguagem não é neutra, muito ao
revés! O uso de terminologias ideologicamente construídas — como o termo
“combate à corrupção” — ocupa um papel central na legitimação pelo senso
comum de uma lógica ideológica para o Judiciário e Ministério Público que os
confundem com a política. É o discurso político invadindo o sistema de
Justiça.
E quando o Ministério Público ou o
Judiciário deseja ocupar o lugar de fala do Executivo ou do Congresso Nacional?
Obviamente o que ocorre é a invasão do espaço político pelo sistema jurídico.
Um “senador do MP em cada Estado da Federação” ou uma bancada de “deputados que
sejam juízes na Câmara”... isso nada mais é do que uma inversão de valores, uma
invasão do jurídico no político, uma desconstrução do universo da política e,
consequentemente, do próprio Judiciário.
O desejo do sistema jurídico de
controlar a política — e fazê-lo após destruí-la — além de antidemocrático
demonstra a incoerência do discurso.
Como negar um espaço do qual o
interlocutor quer fazer parte? Como demonizar a política almejando dela fazer
parte? Como rejeitar o espectro político e querer ocupar seu lócus?
Essas questões só deixam a nu uma
realidade: não podemos confundir política com Poder Judiciário; sistema
político com sistema de Justiça. Se o fazemos, destruímos a política e a
Justiça, e abrimos as portas para a barbárie institucional e a falência da
democracia.
Quando a invasão indevida de espaços é
levada a cabo pelo direito penal ou processual penal, o distanciamento da
modernidade é mais latente.
O Juiz estará usando da limitação do direito de ir e vir como instrumento de desejo político, como via de acesso à posição mais favorável no jogo político e ideológico.
A racionalidade do processo penal é a
última fronteira porque através da aparente juridicidade de condutas se afastam
adversários - ou inimigos - e se joga o jogo da política através da limitação
patrimonial e do direito de ir e vir.
Quem ganhou a eleição deve governar;
quem se elegeu deve legislar; quem passou no concurso deve julgar. A cada um
aquilo que o espaço democrático lhe atribuiu.
Juízes não são legisladores; promotores
e procuradores não são senadores; nenhum de nós é o presidente.
A contenção do poder dá-se pelo seu
correto exercício, nos exatos termos previstos num Estado Democrático de
Direito.
*Ney Bello é
desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da
Universidade de Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia
Maranhense de Letras.
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