Devastação da sociedade e do Estado, com
enriquecimento de um punhado de magnatas e banqueiros: a cada dia o Brasil se
parece mais com a Rússia dos anos 1990. Como sua ruína e posterior reconstrução
nos ajudam a pensar o futuro
*Por José Luís Fiori ǀ Outra Política
Existe uma pergunta parada no ar: o que
passará no país quando a população perceber que a economia brasileira colapsou
e que o programa econômico deste governo não tem a menor possibilidade de
recolocar o país na rota do crescimento?
J.L.F. “A danação da história e a disputa pelo futuro”, Jornal do Brasil, 6/6/19
No início dos anos 90, na véspera de sua
dissolução, a União Soviética tinha 293 milhões de habitantes, e possuía um
território de 22.400.000 km, cerca de um sexto das terras emersas de todo o
planeta. Seu PIB já tinha ultrapassado os dois trilhões de dólares, e a URSS
era o segundo país mais rico do mundo, em poder nominal de compra. Além disso,
era a segunda maior potência militar do sistema internacional, e uma potência
energética, o maior produtor de petróleo bruto do mundo. Possuía tecnologia e
indústria militar e espacial de ponta, e tinha alguns dos cientistas mais bem
treinados em diversas áreas, como a física de altas energias, medicina,
matemática, química e astronomia. E, finalmente, a URSS era a potência que
dividia o poder atômico global com os Estados Unidos. Mesmo assim, foi
derrotada na Guerra Fria, sendo dissolvida no dia 26 de dezembro de 1991, e
depois disto, durante uma década, foi literalmente destruída.
No entanto, ainda antes da dissolução
soviética, Boris Yeltsin – que viria a ser o primeiro presidente da nova
Federação Russa – já havia convocado um grupo de economistas e financistas,
nacionais e internacionais, liderados pelo jovem ex-comunista Yegor Gaidar,
para formular um programa de reformas e políticas radicais, com o objetivo de
instalar na Rússia uma economia liberal de mercado. Depois disso, a dissolução
da URSS já pode ser considerada o primeiro passo do grande programa
ultraliberal de destruição do Estado soviético e de sua economia de
planejamento. Em 1993, Boris Yeltsin ordenou a invasão e a explosão da Casa
Branca do parlamento russo, que ainda se opunha às reformas ultraliberais,
levando à morte de 187 pessoas, à prisão dos líderes da oposição e à imposição
de uma nova Constituição que facilitasse a aprovação das políticas propostas
pelo superministro Yegor Gaidar.
Mesmo assim, e apesar das resistências,
já em 1992, Yeltsin ordenou a liberalização do comércio exterior, dos preços e
da moeda. Deu início, ao mesmo tempo, a uma política de “estabilização
macroeconômica” caracterizada por uma rígida austeridade fiscal. Por outro
lado, o superministro Gaidar – que era considerado um “craque” por seus pares
do mundo das finanças – aumentou as taxas de juros, restringiu o crédito,
aumentou os impostos e cancelou todo tipo de subsídio do governo à indústria e
à construção; fez, ainda, cortes duríssimos no sistema de previdência e de
saúde do país.
É fundamental destacar que, como
condição prévia, o novo governo russo se submeteu às determinações dos Estados
Unidos e do G7, abandonou qualquer pretensão a “grande potência” e permitiu a
desmontagem e desorganização de suas Forças Armadas, junto com o sucateamento
de seu arsenal atômico.
E foi assim que o “choque ultraliberal”
da equipe econômica de Yeltsin conseguiu avançar de forma rápida e violenta:
basta dizer que em apenas três anos, Gaidar vendeu quase 70% de todas as
empresas estatais russas, atingindo em cheio o setor do petróleo que havia sido
uma peça central da economia socialista russa, e que foi desmembrado,
privatizado e desnacionalizado. Outrossim, as consequências do “choque” foram
mais rápidas e violentas do que o próprio choque, e acabaram levando Yegor
Gaidar de roldão, já em 1994. A inflação disparou e as falências se
multiplicaram através de toda a Rússia, levando a economia do país a uma
profunda depressão. Em apenas oito anos, o investimento total da economia russa
caiu 81%, a produção agrícola despencou 45% e o PIB russo caiu mais de 50% em
relação ao seu nível de 1990, e vários setores da economia russa foram varridos
do mapa. Por sua vez, a quebra generalizada da indústria provocou um grande
aumento do desemprego, e uma queda de 58%, em média, no nível dos salários. As
reformas e o corte dos “gastos sociais” devastaram o nível de vida da maior
parte da população; a população pobre do país cresceu de 2% para 39%, e o
coeficiente de Gini saltou de 0,2333 em 1990, para 0,401 em 1999. Uma
destruição e uma queda continuada do PIB que não impediram, entretanto, as
altas taxas de lucro e o enriquecimento de alguns grupos privados, formados por
antigos burocratas soviéticos, que se aliaram com grandes bancos internacionais
e participaram do big
business das privatizações – em particular, da indústria do
petróleo e do gás. São os assim chamados “oligarcas russos”, multimilionários
que dominaram o governo de Yeltsin e criaram junto com ele e seus economistas
ultraliberais uma verdadeira “cleptocracia”, que cresceu e enriqueceu a
despeito da destruição do resto da economia e da sociedade russas.
Na verdade, em 1991, a União Soviética
foi derrotada, mas seu exército não foi destruído numa batalha convencional.
Assim mesmo, durante toda a década de 90, os EUA, a União Europeia e a OTAN
promoveram ativamente o desmembramento do território do antigo Estado
Soviético, que perdeu cinco milhões de quilômetros quadrados e cerca de 140
milhões de habitantes. Tudo feito com a aquiescência subalterna do governo de
Boris Yeltsin e de seus economistas ultraliberais, em nome de um futuro
renascimento da Rússia, que deveria ser parida pela mão invisível dos mercados.
Mas como vimos, este sonho econômico acabou se transformando num grande
fracasso, com um custo social e econômico imenso para a população russa. O
primeiro-ministro Ygor Gaidar foi desembarcado do governo em 1994, ainda no
primeiro mandato de Yeltsin, e o próprio Boris Yeltsin teve um final
melancólico, humilhado internacionalmente nas Guerras da Chechênia e da
Iugoslávia, renunciando à presidência da Rússia no dia 31 de dezembro de 1999.
A história posterior da Rússia é mais
conhecida e chega até nossos dias, mas talvez deva ser relembrada, sobretudo
para os que apostam, no Brasil, na radicalização das privatizações e na
desmontagem do Estado brasileiro e de seus compromissos com a soberania
nacional e com a proteção social da população. Porque foi o fracasso do “choque
liberal” russo que contribuiu decisivamente para a vitória eleitoral de
Vladimir Putin, no ano 2000, e para a decisão de seu primeiro governo, entre
2000 e 2004, de resgatar o velho nacionalismo e retomar o Estado como líder da
reconstrução econômica da Rússia, no século XXI.
Tanto Putin quanto seu sucessor, Dmitri
Medvedev, e de novo Putin, mantiveram a opção capitalista dos anos 90, mas
recentralizaram o poder do Estado e reorganizaram sua economia, a partir de
suas grandes empresas da indústria do petróleo e do gás. Mas isto só foi
possível porque ao mesmo tempo retomaram o projeto de potência que havia sido
abandonado nos anos 90, com a reorganização de seu complexo militar-industrial
e a reatualização de seu arsenal atômico. Depois disso, em 2008, na Guerra da
Geórgia, a Rússia deu uma primeira demonstração de que não aceitaria mais a
expansão indiscriminada da OTAN. Mais à frente, o governo russo incorporou o
território da Crimeia, em resposta à intervenção euro-americana na Ucrânia em
2014, para finalmente, em 2015, fazer sua primeira intervenção militar
vitoriosa fora de suas fronteiras, na guerra da Síria. Ou seja, depois do seu
colapso econômico e internacional dos anos 90, a Rússia conseguiu retomar seu
lugar entre as grandes potências mundiais em apenas 15 anos, dando um
verdadeiro salto tecnológico nos campos militar e eletrônico-informacional. E
hoje, as sanções econômicas impostas à Rússia a partir de 2014 vêm produzindo
efeitos negativos e problemas inevitáveis para a economia russa, mas tudo
indica que já não conseguirão alterar o rumo estratégico que aquele país traçou
para si mesmo, voltado para a reconquista de sua soberania econômica e militar
destruída na década de 90.
Hoje, depois do golpe de Estado de
2015/16, e depois de três anos seguidos da mesma política econômica neoliberal
e ortodoxa, o Brasil está ficando a cada mais parecido com a Rússia dos anos
90. Quase todos os seus indicadores econômicos e sociais são declinantes ou
catastróficos, em particular no que diz respeito à queda do consumo e dos
investimentos, e mais ainda, no caso do aumento do desemprego, da miséria e da
desigualdade social. E quase todas as previsões sérias do futuro são muito
ruins, a despeito da imprensa conservadora que procura transformar em gemada
qualquer filigrana de ovo que encontra à sua frente, tentando transmitir um
falso otimismo para os investidores estrangeiros. Frente a isto, a equipe econômica
do senhor Guedes resolveu transformar a Reforma da Previdência na tábua de
salvação da economia brasileira, para logo depois inventar um novo Santo Graal,
e agora anuncia em todo lugar e a toda hora, uma privatização radical de todo o
Estado brasileiro, incluindo toda a indústria do petróleo e a própria
Petrobrás. Como se fosse um palhaço de circo mambembe do interior, tentando
manter a atenção da plateia entediada com o anúncio da entrada em cena do leão.
Mas tudo indica que sem sucesso, se tomarmos em conta a maior fuga capitais da
Bolsa de Valores, em 23 anos, só neste mês de agosto recém findo. E é aqui
exatamente que a história da Rússia pode nos ajudar a entender o que está
passando, e prever o que deverá passar daqui para frente, tendo em conta as
inúmeras semelhanças que existem entre esses dois países.
Agora bem, o que nos ensina a
experiência russa dos anos 90, e depois?
1. Primeiro, e muito importante: que a
destruição da economia, do Estado e da sociedade russa, na década de 90, não
foi incompatível com o enriquecimento privado, sobretudo dos grupos de
financistas e ex-burocratas soviéticos que obtiveram lucros extraordinários com
o negócio das privatizações – e que depois assumiram o controle monopólico das
antigas indústrias estatais, em particular no campo do petróleo e do gás. Ou
seja, é perfeitamente possível conciliar altas taxas de lucro com estagnação ou
recessão econômica, e até com a queda do produto nacional (1)
2. Segundo: que os grandes lucros
privados e os ganhos estatais com as privatizações não levam necessariamente ao
aumento dos investimentos num ambiente macroeconômico caracterizado pela
austeridade fiscal, pela restrição ao crédito e pela queda simultânea do
consumo. Pelo contrário: o que se viu na Rússia foi uma gigantesca queda dos
investimentos e do PIB russo, da ordem de quase 50%.
3. Terceiro, e o mais importante: que
depois de dez anos de destruição liberal, ficou muito claro na experiência
russa que em países extensos, com grandes populações e economias mais complexas,
os “choques ultraliberais” têm um efeito muito mais violento e desastroso do
que nos pequenos países com economias exportadoras. E esta é uma situação
política insustentável no médio prazo, mesmo com ditaduras muito violentas,
como aconteceu com o fracasso econômico da ditadura chilena do General Augusto
Pinochet.
Ao mesmo tempo, a reversão posterior da
situação russa também ensina: 1) quanto mais longo e mais radical for o “choque
ultraliberal”, mais violenta e estatista tende a ser sua reversão posterior; e
ii) em países com grandes reservas energéticas, é possível e necessário
recomeçar a reconstrução da economia e do país, depois da passagem do tufão, a
partir do setor energético.
A História não se repete, nem se pode
transformar a história de outros países em receita universal, mas pelo menos a
experiência russa ensina que existe “vida” depois da destruição ultraliberal, e
que será possível refazer o Brasil, depois que o senhor Guedes e seu capitão já
tiverem passado em conjunto para galeria dos grandes erros ou tragédias da
História brasileira.
(1) Sobre este ponto, vide a
excelente exposição do professor Franklin
Serrano, em “Pensando o Brasil: quem gosta de crescimento é o trabalhador”.
*Professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Economia política Internacional, PEPI. Coordenador do GP da
UFRJ/CNPQ, “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”. Coordenador adjunto
do Laboratório de “Ética e Poder Global”. Pesquisador do Instituto de Estudos
Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis, INEEP. Publicou, “O Poder
global e a nova geopolítica das nações”, Editora Boitempo, 2007 ; “História,
estratégia e desenvolvimento”, Boitempo, em 2011 ; e, “Sobre a Guerra”, Editora
Vozes Petrópolis, 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário