Benefícios são
muitos, porém pouco aproveitados e muito ameaçados, segundo documento preparado
por 85 pesquisadores brasileiros
Por Herton Escobar ǀ
Editorias – Jornal da USP: Ciências Ambientais
Fotomontagem: Jornal da USP. |
O Brasil tem a maior biodiversidade do mundo —
isso, todo mundo já sabe. Mas e daí? O que o País ganha com isso? Maior
segurança alimentar, energética, hídrica e climática; proteção contra erosão,
enchentes, deslizamentos e outros desastres socioambientais; proteção natural
contra pragas no campo e doenças nas cidades; potencial para a descoberta de
novos fármacos, cosméticos e outros produtos naturais; preservação de culturas,
saberes e costumes de populações tradicionais; paisagens belíssimas;
incontáveis oportunidades de negócios ligadas ao ecoturismo, lazer e bem-estar
social. Tá bom, ou quer mais?
Esses são alguns
exemplos dos serviços prestados gratuitamente pela natureza à sociedade,
descritos no primeiro diagnóstico da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES,
na sigla em inglês), divulgado no início deste mês.
Produzido por um
grupo de 85 pesquisadores ao longo de quatro anos, o documento, de quase 200
páginas, traz um resumo contextualizado do melhor conhecimento disponível sobre
o patrimônio natural brasileiro e os serviços que ele presta à sociedade, desde
o nível de espécies individuais (como as abelhas, que produzem mel e polinizam
plantações) até o de ecossistemas inteiros (como as florestas, que produzem
chuva e estocam carbono, ou os manguezais, que protegem a costa da erosão e
servem de berçário para diversos peixes e crustáceos de importância social e
comercial).
Clique aqui para
baixar a íntegra do documento: Diagnóstico
Brasileiro de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
Um resumo do
estudo, chamado Sumário para Tomadores de Decisão, já havia sido divulgado
em novembro de 2018, mas faltava a publicação do diagnóstico completo — com
todas as informações e referências científicas que embasam as conclusões dos
pesquisadores. A ideia é que o sumário sirva como um guia de consulta rápida, e
o relatório, como uma enciclopédia de informações sobre biodiversidade e
serviços ecossistêmicos no Brasil. Em ambos os casos, o objetivo final é o
mesmo: fornecer embasamento científico para orientar a tomada de decisões
econômicas, sociais e políticas sobre o tema.
“O conhecimento
está aí, os tomadores de decisão estão aí, e a gente precisa aproximar essas
duas coisas. Esse espaço entre existência e aplicação do conhecimento precisa
ser preenchido”, diz o ecólogo Jean Paul Metzger, do Instituto de Biociências
da Universidade de São Paulo, um dos 11 editores do relatório. “Se ainda há
lacunas de informação que precisam ser preenchidas, certamente não falta
conhecimento para a tomada de decisões.”
Clique nas imagens para ampliar:
Fonte: 1° Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos – BPBES
O diagnóstico
deixa claro que o Brasil é um país extremamente privilegiado em termos de
biodiversidade e recursos naturais — tem o maior número de espécies de fauna e
flora, a maior reserva de água doce, a maior floresta tropical, e por aí vai —,
com enorme potencial para o desenvolvimento de um modelo econômico sustentável.
“O gigantesco
capital natural nacional confere as condições necessárias para transformar a
conservação e o uso sustentável dos ativos ambientais brasileiros em
oportunidades para um desenvolvimento capaz de enfrentar, no futuro, um clima
alterado e, ao mesmo tempo, promover prosperidade socioeconômica”, escrevem os
pesquisadores, no resumo executivo. “Essa combinação incomum resulta do fato de
que o elevado potencial de produção econômica (presente e futuro) depende da
manutenção dos recursos da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos
associados.”
Por outro lado,
e ao mesmo tempo, é um país que se aproveita e cuida muito mal desse patrimônio
natural único, com taxas elevadas de perda, degradação e fragmentação
ambiental. Estudos indicam, por exemplo, que o Brasil poderá perder entre 20% e
25% de sua biodiversidade até 2050, comparado a 1970, “dependendo da trajetória
de desenvolvimento considerada”.
“O cenário atual
de degradação dos sistemas naturais, sejam eles terrestres ou aquáticos,
representa uma séria ameaça à provisão de serviços ecossistêmicos essenciais
para a manutenção da qualidade de vida e da saúde da população humana”, diz o
relatório. “Isso inclui o suprimento de alimentos, organismos medicinais,
experiências físicas e psicológicas, regulação da quantidade e da qualidade da
água, controle da qualidade do ar, regulação de ameaças e eventos extremos e de
organismos prejudiciais a humanos.”
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Fonte: 1° Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos – BPBES |
Fase nefasta
O diagnóstico
surge num momento especialmente preocupante, de aumento do desmatamento na
Amazônia, negação de evidências científicas e fragilização das estruturas de
defesa ambiental no Brasil.
“Estamos
passando por uma fase nefasta, mas temos que continuar trabalhando na
expectativa de que haja uma mudança de comportamento dos nossos governantes”,
diz o biólogo Carlos Joly, professor da Universidade Estadual da Campinas
(Unicamp) e um dos coordenadores do BPBES.
Uma das
principais mensagens do relatório, segundo ele, é que “é muito mais barato
conservar do que restaurar”; e que muito do que se perde com a degradação
ambiental não pode ser recuperado. “Você pode até recuperar alguns serviços
ecossistêmicos, mas não a biodiversidade.”
Os principais
vetores de ameaça à biodiversidade, segundo o diagnóstico, são as mudanças
climáticas, que alteram a configuração e o funcionamento dos ecossistemas, e as
mudanças de uso do solo — em outras palavras: desmatamento, ou qualquer
atividade que envolva a conversão de áreas de vegetação nativa para outros
usos, como agricultura, pecuária ou mineração.
“Um dos
principais desafios do Brasil para os próximos anos é o alinhamento de
políticas de desenvolvimento – principalmente a política agrícola – com o uso e
a conservação da biodiversidade. A integração entre as políticas ambientais e
agrícolas é fundamental para o cumprimento das metas e dos acordos de conservação
firmados internacionalmente, bem como para evitar o desaparecimento de espécies
nativas de importância ecológica, medicinal e alimentícia e com potencial
intrínseco para a agropecuária, a indústria e o desenvolvimento de
biotecnologia”, diz o relatório.
Desafio e
oportunidades
Joly vê com
preocupação o recrudescimento de um discurso político considerado ultrapassado,
que tende a ver a conservação ambiental como inimiga do desenvolvimento
econômico. O diagnóstico deixa claro que a biodiversidade e os serviços
ecossistêmicos — que o Brasil tem em abundância — devem ser vistos como um
ativo diferencial de promoção do desenvolvimento, e não como um obstáculo ou um
apêndice meramente decorativo.
“O diagnóstico
mostra claramente os ativos que o País tem, as oportunidades que isso traz, e
como a gente tem feito mau uso disso”, resume o ecólogo Fabio Scarano, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também coordenador do BPBES e
coautor do documento. “O que nos preocupa é o discurso que está posto agora,
com agravamento dos riscos e a perspectiva de que essas oportunidades
continuarão não sendo aproveitadas, ou até mesmo perdidas.”
Além de
proteger, é preciso incentivar a pesquisa científica e o uso econômico
sustentável desses ativos ambientais, ressaltam os cientistas. Um dos dados
mais destacados do relatório é que 40% da cobertura vegetal do País está
concentrada em apenas 7% dos municípios, que abrigam 13% da população
economicamente mais carente do Brasil. “Historicamente a substituição da vegetação
nativa por outras coberturas não tem resultado em um aumento significativo do
bem-estar local. A geração de renda a partir da natureza conservada será
essencial para conciliar prosperidade socioeconômica com a conservação de
recursos naturais”, diz o documento.
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Fonte: 1° Diagnóstico Brasileiro de Biodiversidade & Serviços Ecossistêmicos – BPBES |
“Uma das maiores
e mais desafiadoras lacunas é a de transformar a megabiodiversidade do país em
soluções para a sociedade brasileira, ou seja, fazer uma inserção abrangente da
biodiversidade nas cadeias produtivas”, diz, ainda, o relatório. “Isso requer
políticas de fomento à pesquisa em catalogação e prospecção da biodiversidade
em diferentes escalas e setores da economia. Apesar de seus 500 anos de
exploração, a Amazônia gerou apenas quatro commodities amplamente
comercializadas no Brasil e no exterior: a borracha, a castanha-do-pará, o açaí
e o guaraná. O potencial de exploração sustentável de outras espécies vegetais
– dentre as cerca de 10 mil existentes na região – permanece latente.”
Lacunas
Muitas lacunas
também existem no entendimento dos ecossistemas oceânicos, que são ainda menos
conhecidos do que os ecossistemas terrestres — lembrando que o Brasil tem um
território marítimo do tamanho da Amazônia, com 3,6 milhões de quilômetros
quadrados, e um quarto de sua população concentrada na zona costeira.
“Os oceanos são
a grande fronteira do conhecimento da humanidade”, destaca o professor
Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da USP, especialista em ecologia
marinha e gerenciamento costeiro, e também coautor do relatório. “Sabemos mais
sobre a superfície da Lua do que sobre o fundo do mar.”
Para Turra, o
relatório “evidencia de forma muito clara a importância da ciência para a
tomada de decisão”; não só no que diz respeito à elaboração de políticas
públicas, mas também à capacidade de avaliar e monitorar a eficácia dessas
políticas. “Para combater a erosão costeira, você precisa de um diagnóstico
muito preciso sobre o que está causando essa erosão”, exemplifica ele. “O
gestor precisa ter um entendimento mínimo de como esses ecossistemas funcionam
para tomar as decisões que oferecem o melhor custo-benefício como solução.”
O relatório foi
produzido principalmente com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) — cerca de R$ 1,5 milhão —, principal agência de
fomento à ciência do governo federal, que vive sérias restrições orçamentárias
e pode ter seus recursos de fomento reduzidos a quase zero em 2020. Com esses recursos,
além do Diagnóstico principal, o BPBES já produziu quatro relatórios temáticos (sobre
restauração ambiental, água, polinizadores e mudanças climáticas) e tem um
quinto a caminho (sobre povos indígenas e comunidades tradicionais).
Parque Nacional Marinho dos Abrolhos – Foto: Herton Escobar |
Áreas protegidas
Uma estratégia
que tem se mostrado eficaz para a proteção e uso sustentável da biodiversidade
é a criação de áreas protegidas, incluindo terras indígenas e unidades de
conservação (UCs) geridas pelo poder público, como os parques nacionais.
Segundo os dados compilados pelo diagnóstico, o turismo nessas unidades gera 43
mil empregos e movimenta R$ 4 bilhões por ano – com potencial para crescer
muito mais.
Considerando
todas as categorias, o Brasil tem cerca de 2,2 mil UCs. Na Amazônia, a área de
cobertura chega a 27%; mas nos outros biomas terrestres, não chega a 10%. No
bioma marinho, a criação de duas gigantescas áreas de proteção oceânica elevou
esse índice, em 2018, para mais de 26%; mas sem elas, a cobertura é de apenas
1,5%.
“O Brasil
cumpriu a meta de conservação de áreas marinhas, no que diz respeito ao
percentual, graças a essas duas áreas. Mas a conservação efetiva, segundo a
própria meta 11 de Aichi, é muito mais que isso”, diz o professor
Antonio Carlos Marques, do Instituto de Biociências da USP, também coautor do
relatório. “Deveríamos ter áreas protegidas que fossem geográfica e
ecologicamente diversas, representativas de todos nossos ecossistemas e
conectadas genética e ecologicamente, o que não ocorre. Além disso, grande
parte dessas UCs permite usos múltiplos, onde a conservação é pouco efetiva e
tem fiscalização deficiente ou nula. Elas são o que a literatura chama de
parques de papel.”
Alguns dados do
relatório podem já estar defasados, por conta do tempo que levou para preparar
o documento. Mas o diagnóstico não muda: “Este [relatório] deixa claro que o
Brasil tem o potencial de ser líder mundial por meio de um desenvolvimento
sustentável. Basta que sejam feitas as escolhas que privilegiem práticas de
produção mais ecologicamente sustentáveis”, escrevem os pesquisadores.
Fonte: Publicado no Jornal da USP
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