Economistas do Cecon obtiveram a
planilha com cálculos oficiais do Ministério da Economia sobre a Reforma da
Previdência, até então em sigilo, auditaram e encontraram indícios de
falsificação ou de incompetência inexplicável
Nota do Cecon nº 8
O que diz o governo sobre a Reforma da Previdência? Por que os cálculos são falsos e errados?
O combate aos privilégios é um dos
principais argumentos em defesa da reforma do Regime Geral de Previdência
Social (RGPS). Alega-se que o fim da aposentadoria por tempo de contribuição
(ATC) acabaria com o privilégio de trabalhadores com maiores renda e
estabilidade de emprego que podem se aposentar mais cedo e que, por receberem a
aposentadoria por mais tempo, onerariam o sistema público de aposentadoria de
um modo injusto. Como estes aposentados se concentram nos estados mais ricos,
eles prejudicariam os trabalhadores mais pobres que se concentram nos estados
mais pobres, o que agravaria não só a concentração pessoal da renda mas também
a concentração regional.
Para apoiar a afirmação, a Secretaria da
Previdência do Ministério da Economia apresentou cálculos falsos à imprensa e
aos deputados federais em várias ocasiões, sem apresentar a planilha com a
memória de cálculo, que obtivemos através da Lei de Acesso à Informações (LAI).
Auditamos os cálculos oficiais obtidos via LAI e encontramos indícios de
falsificação ou, no mínimo, incompetência inexplicável. Os cálculos manipulam os
dados sem respeitar a lei e inflam o custo fiscal das aposentadorias atuais
para justificar a reforma e exagerar a economia fiscal e o impacto positivo
(falso) sobre a redução da desigualdade da Nova Previdência.
Onde os cálculos oficiais do Ministério
da Economia alegam que as regras atuais provocam déficit para o RGPS (ou
subsídios para os aposentados ricos), é o contrário: geram superávit e
subsidiam o RGPS. Na verdade, as aposentadorias com grande tempo de
contribuição, maior valor e menor idade financiam a aposentadoria de menor
valor dos trabalhadores que se aposentam mais velhos e com pouco tempo de
contribuição. Elas diminuem a concentração pessoal e regional da renda, ao
contrário do argumento oficioso.
Onde os cálculos oficiais alegam que a
reforma melhora a situação dos trabalhadores mais pobres, também é o contrário:
os mais pobres são forçados a contribuir por bem mais tempo para receber muito
menos (se recebem acima do salário mínimo) ou para ter o mesmo benefício (se
recebem o salário mínimo) depois da reforma, além de correr o risco de se
tornar “inaposentáveis” por não alcançarem o tempo de contribuição exigido e
verem suas contribuições confiscadas.
As planilhas foram enviadas junto com
uma nota informativa intitulada “A Nova Previdência combate Privilégios”, que
apresenta o resultado dos cálculos feitos na planilha sem mostrar como os
cálculos são feitos (1). Os mesmos resultados foram apresentados pelo
Secretário da Previdência Social Rogério Marinho na apresentação da reforma à
imprensa em 25 de abril de 2019 e em outras ocasiões como audiências públicas
no Congresso Nacional. Ou seja, são estes os cálculos que sustentam o argumento
do governo de que a reforma do RGPS é necessária para combater privilégios que
inviabilizam o sistema, a partir dos quais se anuncia “economias” irreais com a
reforma proposta (2).
As planilhas oficiais não são
autoexplicativas, portanto precisamos fazer a engenharia reversa para entender
como o governo chegou aos resultados. Se o governo tivesse seguido as regras
legais para cálculo das contribuições e das aposentadorias, é claro que não
seria necessário fazer qualquer engenharia reversa. Qual o resultado da
auditoria?
Onde o governo afirma calcular uma
aposentadoria por tempo de contribuição (que exige 30/35 anos de contribuição
para mulheres e homens), na verdade calcula uma aposentadoria por idade (AI).Ao
usar a idade e não o tempo de contribuição como critério de acesso à
aposentadoria, o cálculo oficial não reduz o valor das aposentadorias pelo
Fator Previdenciário que desconta a imensa maioria das aposentadorias por tempo
de contribuição hoje em dia.
Ora, em parte por causa do desconto
gerado pelo Fator Previdenciário e em parte por causa da alíquota contributiva,
a ATC é superavitária para o RGPS, mas esta fonte de superávit será eliminada
com base em argumentos e cálculos falsos. Logo, os custos atuais das
aposentadorias por tempo de contribuição são superestimados pela Secretaria da
Previdência para justificar a necessidade da reforma do RGPS, que tem efeitos
contrários aos anunciados (3).
Mesmo com esta falsidade inicial (tomar
uma ATC por uma AI), os cálculos desta aposentadoria por idade também são
errados. O principal problema é que não se calculam as contribuições do
empregado e do empregador corretamente. Para um aposentado com salário de
R$11.700,00 (onze mil e setecentos reais), suas contribuições (11%) não são
feitas pelo teto do RGPS, nem as do empregador (20%) são feitas sobre o salário
integral (R$11.700,00). Ambos contribuem sobre o valor de 5 SM sem qualquer
explicação.
Assim, de novo, os cálculos oficiais
superestimam o custo fiscal da ATC e também as “economias” geradas pela
reforma. Feitas as correções de acordo com a legislação, passamos de um déficit
estimado de quase R$ 2 milhões pelo governo (à taxa de desconto de 2,5%a.a.)
para um superávit de quase R$ 1,5 milhão (à taxa de 2,5%a.a.) e superior R$ 2,2
milhões (à taxa de desconto ainda subestimada de 3%a.a.). Uma diferença de R$
4,2 milhões para apenas 4 aposentadorias, a metade delas deixando pensão por
morte. De posse das planilhas oficiais até então em sigilo, é imperativo
reconhecer que a construção do discurso do déficit provocado pelas
aposentadorias por tempo de contribuição se baseia em manipulação estatística e
atuarial.
Centro de Estudos de Conjuntura e
Política Econômica – IE/UNICAMP, Nota do Cecon, n., setembro de 2019 – A
falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime
Geral de Previdência Social
Ao eliminar a ATC que gera, hoje,
superávit para o RGPS, a reforma busca a compensação financeira desta perda com
o corte no valor de aposentadorias que jogará milhões de famílias dependentes
de aposentados na pobreza, em razão de novos critérios de acesso (tempo de
contribuição e idade) e cálculo (redução) dos benefícios.
Esta perda fica clara para trabalhadores
que se aposentarão pós-reforma com o salário mínimo ou pouco acima dele. A
alegação do governo é que a Reforma da Previdência vai aumentar levemente o
subsídio para o trabalhador mais pobre, porque reduz a alíquota de contribuição
de 8% para 7,5%.
O primeiro problema do argumento oficial
é que, para os homens que se aposentam por idade, o aumento do tempo de
contribuição mínimo proposto pelo governo em cinco anos (de 15 para 20 anos,
uma variação de 33%) não é compensado pela redução da alíquota (pouco mais de
6%). É certamente por isto que o governo propõe avaliar uma aposentadoria
por tempo de contribuição para um aposentado com 60 anos e 35 anos de
contribuição antes da reforma com a condição 65/40 pós-reforma. Contudo, a
condição inicial não é representativa das aposentadorias dos trabalhadores mais
pobres: quem se aposenta com 1 SM tipicamente o faz por idade.
Escolhida a comparação por tempo de
contribuição, fazê-lo a partir da idade de 60 anos também é enganoso, pois nas
regras atuais o trabalhador mais pobre que cumprir 35 anos de contribuição pode
se aposentar muito mais novo sem perda de valor da aposentadoria, pois sobre o
piso previdenciário (o SM) não há desconto do Fator Previdenciário.
Ainda assim, a planilha não faz o que o
governo professa fazer: o governo afirma calcular uma aposentadoria por tempo
de contribuição, mas também a troca por uma aposentadoria por idade mínima
(AIM), que exige hoje muito menor tempo de contribuição do que os 30/35 anos
para mulheres e homens, mas tem alíquota mínima de 8% para o trabalhador de 1
salário mínimo (28% com a contribuição patronal). Ao invés de calcular a
aposentadoria com 60 anos de idade e 35 anos de contribuição, os cálculos
correspondem a aposentados com 20 anos de contribuição e 65 anos de idade. É
isto que explica o suposto aumento tímido do subsídio, já que neste caso a
única diferença é a alíquota de 7,5% para o trabalhador.
No entanto, mesmo assim a comparação é
enganosa, pois com apenas 15 anos de contribuição e 65 anos de idade o
trabalhador asseguraria o salário mínimo nas regras atuais. Ademais, para
valores acima do piso, a diferença entre a taxa de redução do salário por não
atingir o tempo para a integralidade (a redução da taxa de reposição) é muito
maior do que a redução da alíquota de 8% para 7,5%: na regra antiga a redução é
de 10% e na regra da “Nova Previdência” é de 40% até 20 anos de contribuição
masculina.
Se o governo comparasse a aposentadoria
de um trabalhador com salário mínimo e com tempo de contribuição de 35 anos
antes e pós-reforma, chegaria ao resultado que já demonstramos em outra nota
técnica e repetiremos aqui: este trabalhador será forçado a contribuir mais e
por mais tempo para ter o mesmo benefício (o piso salarial) depois da reforma,
pois só poderá se aposentar com 65 anos, quando hoje pode se aposentar com
qualquer idade desde que cumpra 35 anos de contribuição, pois sobre o piso
previdenciário não se desconta o Fator Previdenciário.
Além desta falsidade inicial (tomar uma
ATC por uma AI), os cálculos oficiais subestimam o subsídio atual às
aposentadorias por idade mínima também porque consideram para análise uma
aposentadoria com 20 anos de contribuição. Porém hoje a exigência mínima é de
15 anos de contribuição e, na média, as AIM ocorrem com 19 anos. Como o tempo
de contribuição exigido é menor hoje, as contribuições totais são menores do
que no cenário pós-reforma embora a alíquota seja de 8% (e não 7,5%), logo o
subsídio hoje também é maior do que no cenário pós-reforma. A subestimação do
subsídio atual é feita para construir o argumento falso de que a reforma vai
aumentar o subsídio para os trabalhadores pobres.
Como para a aposentadoria por idade
mínima masculina para o trabalhador pós-reforma serão necessário 20 e não 15
anos de contribuição, o trabalhador mais pobre continuará recebendo salário
mínimo, mas precisará contribuir cinco anos a mais, ou 33% a mais. A
trabalhadora mais pobre precisará cumprir dois anos de idade a mais, 62 anos e
não 60 anos com 15 anos de contribuição, uma condição que não foiatingida por
74,82% das mulheres que se aposentaram por idade em 2016.
Ademais, para salários superiores ao
piso, a redução do salário para a aposentadoria com a reforma será de 40% na
condição mínima de 15 até 20 anos de contribuição, enquanto hoje é de apenas
15% para 15 anos de contribuição e de apenas 10% para 20 anos. Ou seja, o
subsídio para os pobres será muito menor, e não maior como alegam os cálculos
do governo. É exatamente este corte no valor da aposentadoria que jogará
milhões de famílias na pobreza, como mostraremos em outra nota técnica com
tratamento inédito de dados da PNAD.
Leia nota na íntegra AQUI.
Notas
(1) A nota está disponível no site do
Ministério da Economia, tendo sido publicada no dia 29/04/2019 [http://www.economia.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/notas-informativas/2019/ni-nova-previdencia-e-combate-a-privilegios-v10.pdf/view].
Para download: Acesso em 09/09/2019.
(2) É digno de nota que a apresentação à
imprensa foi divulgada em resposta às críticas ao sigilo das contas imposto
pelo governo, mas a planilha não foi publicada junto com ela: Fabrini &
Caram (2019) e UOL (2019). A apresentação está disponível no site da Secretaria
da Previdência: http://www.previdencia.gov.br/2019/04/secretario-especial-apresenta-dados-e-estudos-que-embasam-nova-previdencia/
ou no link direto para download [http://sa.previdencia.gov.br/site/2019/04/Transparencia_previdencia_v4.pdf].
Para a apresentação feita na Comissão Especial da Câmara dos Deputados,
ver http://estaticog1.globo.com/2019/05/08/ApresComissaoEspecial080513h28.pdf.
Acesso em 09/09/2019.
(3) O fator previdenciário é explicado
no anexo no final desta nota, onde é apresentada sua demonstração matemática.
Discutimos extensamente o cálculo de aposentadorias pelo fator em uma nota
técnica anterior: Bastos, Santos, Knudsen e Sá Earp (2019).
*Cecon - Centro
de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia da
UNICAMP
**Os autores são respectivamente
Professor Associado do Instituto de Economia e pesquisador do Cecon-UNICAMP,
ex-professor visitante na UC Berkeley; Doutor em Química (USP), especialista em
Design de Experimentos e Proprietário da KnudZen Consulting (Itália); Mestre em
História Econômica (USP), ex-analista bancário aposentado; Professor Doutor do
Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Unicamp, Mestre
em Física Teórica (University of Cambridge) e PhD em Matemática (Imperial
College London).
(Crédito da foto da página inicial:
Agência Brasil)
Fonte: Publicado no Brasil Debate
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