Ainda bem que existe quem pague o preço
de seguir os valores de Jesus até o fim, mesmo que seja minoria classificada
como ‘errante’
*Por
Magali Cunha
Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil |
Cada vez mais as estatísticas oficiais
revelam a política de extermínio comandada pelos governadores Wilson Witzel, do
PSC, e João Doria, do PSDB. No Rio, as ações da polícia deixaram 881 mortos no
primeiro semestre de 2019, enquanto em São Paulo foram 426 assassinados pelos
agentes do Estado de São Paulo no mesmo período. As mesmas estatísticas indicam
uma queda nos índices de homicídios, roubos e policiais assassinados.
O fato de criminosos matarem menos e o
Estado matar mais dá o tom da política de extermínio estabelecida com força
neste 2019, com estímulo do governo de Jair Bolsonaro. Defensores desta
política homicida falam que tudo está sendo feito em nome dos direitos dos
“cidadãos de bem”. Dizem ainda lamentar os erros que vitimam inocentes mas o
que importa é que algo está sendo feito.
“Cidadão de bem” é um termo antigo,
ideologicamente consolidado para se estabelecer diferenças entre pessoas. É a
parcela de “cidadãos” que reivindica para si distinção e superioridade contra
aqueles que considera ter vida “impura”, por isso não merecem direitos.
Não é possível precisar quando e onde
foi criado o termo. Há registros que remontam ao início do século XX, nos
Estados Unidos. “Good
Citizen” [Cidadão de Bem] era o título de um jornal publicado
pela bispa da Igreja (evangélica) Pilar de Fogo Alma Bridwell White, de 1913 a
1933. A bispa era racista e apoiadora da supremacista Ku Klux Klan, para ela,
um grupo “divinamente ordenado” (segundo o livro “A Segunda Vinda da KKK: a Ku
Klux Klan de 1920 e a Tradição Política Americana”, de Linda Gordon).
A KKK uniu pessoas em torno da ênfase no
patriotismo, na filiação religiosa, no desprezo aos vícios e no controle da
sexualidade, tornando marca dos seus membros a “respeitabilidade”. Isto até
contribuiu para que pessoas da classe trabalhadora, “respeitáveis” que aderiam ao
movimento, passassem a ser consideradas de “classe média”, como os líderes da
KKK.
No Brasil, o termo passou a ser
fartamente utilizado no debate político desde 2014. O “cidadão de bem que paga
seus impostos” é invocado para fazer oposição a grupos de esquerda e a apoiar
políticos que são “puros”, “não corruptos” como todas as “pessoas de bem”.
Estes políticos defendem a ética, a ordem, a moral, em reação a movimentos
progressistas promotores de transformações sociais consideradas por eles
“impuras” e ameaçadoras como o feminismo, os movimentos de periferias, LGBTI+,
imigrantes e negros.
Nesse sentido, oferece-se a
possibilidade que pessoas de diferentes classes se unam em torno de uma
ideologia. Na realidade, os “cidadãos de bem” são pessoas brancas, de classes
média e alta que querem manter a estrutura desigual do Brasil que sustenta seus
privilégios de classe, de raça, de gênero (basta ver o
perfil dos apoiadores de Bolsonaro apontado na última pesquisa Datafolha).
Moradores da periferia, imigrantes e
pessoas negras são vistos como desordeiros e obstáculos à plena realização da
sociedade idealizada. E tornam-se inimigos aqueles que assumem as causas destes
“cidadãos do mal”: podem ser partidos políticos ou universidades que estudam
estes fenômenos sociais.
Nesta lógica de eliminação dos inimigos,
a matança em presídios e nas periferias das grandes cidades está autorizada
para a limpeza social necessária. Até a posse de armas deve ser liberada para
que os “cidadãos de bem” ajam em causa própria.
Sobre a falácia desta compreensão e o
fato de todos os seres humanos terem bem e mal dentro de si, não trataremos
aqui, pois é tema para outro artigo. Vale agora trazer à memória um clássico
hino evangélico do século XIX, popularmente conhecido como “Glória, glória,
aleluia!”. Uma das estrofes diz: “Fiéis servos da vaidade lutam por fazer-nos
seus / Muitas vezes nos assaltam os modernos fariseus …”.
Fariseus eram religiosos no tempo e no
lugar em que viveu Jesus, tal como relata a Bíblia cristã. Tinham grande
influência pois eram os defensores dos valores morais dos “cidadãos de bem” da
época.
Arrogantes, os fariseus apontavam o dedo
para os “impuros” (os que não cumpriam as regras religiosas). Eles foram os que
mais criaram problemas para Jesus, pois criticavam-no como um errante. Jesus
era mal visto por ser originário de Nazaré, uma periferia da Palestina. Ele
ainda andava com pessoas não consideradas “cidadãos de bem”: pobres pescadores,
pessoas com deficiência, mulheres, contestadores da ordem vigente. Também
estava mais presente em espaços considerados não frequentáveis por “gente de
bem”: a beira-mar, lugar dos socialmente excluídos, casas de pessoas
consideradas impuras, as periferias e locais de outras culturas.
Jesus, por sua vez, não se omitiu frente
a esse grupo dos fariseus. Ele os chamou de “guias cegos, que coam o mosquito e
engolem o camelo”, de “serpentes, raça de víboras” e também de “sepulcros
caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de
ossos de mortos e de toda imundícia! Que exteriormente parecem justos aos
homens, mas, por dentro, “estão cheios de hipocrisia e de iniquidade”. Não foi
à toa que os fariseus estiveram entre os que tramaram para que Jesus fosse
preso, torturado e recebesse a pena de morte!
Estamos sob o assalto dos “modernos
fariseus”! Como não pensar neles? “Hipócritas e sepulcros caiados” que dizem
defender valores morais, enquanto a justiça e a misericórdia são negadas e
vidas humanas e o patrimônio natural do Brasil vão sendo cruelmente
exterminados. Ainda bem que existe quem pague o preço de seguir os valores de
Jesus até o fim, mesmo que seja minoria classificada como “errante”.
*Jornalista e doutora em Ciências da
Comunicação. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Escreve neste
espaço às quartas-feiras.
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