Neste
Dia Mundial do Refugiado, relembramos o artigo "E se fosse você a precisar de refúgio?", de autoria de João Amorim,
professor de Direito Internacional e colunista do Observatório do 3º Setor, que traz uma importante reflexão
sobre por que devemos ser solidários com os refugiados. Leia o artigo na íntegra logo abaixo:
E se fosse você a precisar de refúgio?
E se fosse você a precisar de refúgio?
*Por
Vou começar minha participação nesta coluna propondo a você que tente responder às seguintes perguntas: O que você faria se, de um dia para outro, perdesse tudo que mais ama na vida? Como você se sentiria se fosse obrigado a deixar a sua casa, sua cidade, seu país, simplesmente porque alguém que não conhece e nunca viu decidiu que todos os que têm sua cor, sua raça, sua orientação sexual, sua religião, sua etnia, sua religião ou sua opinião política devem morrer? Já imaginou como se sentiria se a cidade em que você vive fosse, de um dia para o outro, engolida pelo inferno da guerra e você tivesse de fugir, sem destino certo, apenas com a roupa do corpo, ou com o pouco que conseguiu juntar, para não morrer?
São situações desesperadoras e cenas terríveis de se imaginar, não?
Pois bem. Infelizmente, essa é a realidade que está por trás dos mais
de 59 milhões de seres humanos forçados a se deslocar de suas casas em
todo o mundo por questões relacionadas a conflitos armados, preconceito
racial, étnico, religioso, de gênero ou orientação sexual, perseguição
política ou ideológica ou grave e generalizada violação de direitos
humanos. Destes, quase 22 milhões são refugiados e solicitantes de
refúgio.
Segundo a Organização das Nações Unidas, refugiados são pessoas
comuns, de todos os gêneros e idades, que foram forçadas a abandonar
seus lares devido a conflitos armados, violência generalizada,
perseguições religiosas ou por motivo de nacionalidade, raça, grupo
social e opinião pública, e buscam abrigo e proteção em outros países
para reconstruir suas vidas com dignidade, justiça e paz.
Ao se verem forçadas a sair do seu local de vida habitual, deixam
para trás não apenas a realidade de agressão, ameaça e violação que lhes
gerou o fundado temor de perseguição, mas também suas raízes e
referências socioculturais, sua história, seus sonhos e projetos. Muitas
vezes, deixam para trás seus entes queridos, seus afetos, sua
referência cultural e humana.
Não fazem essa escolha por espírito de aventura ou por ambição, mas
por desespero e medo de morrer, e na esperança de conseguir sair daquela
situação e de encontrar abrigo e proteção, ainda que em terras
distantes.
Chegam por vezes sozinhos – assustados e traumatizados, e sem saber
do paradeiro e do destino de seus entes queridos –, a lugares
completamente diferentes de sua terra natal. Não falam o idioma. Não
conhecem ninguém. Sentem fome. Sentem sede. Sentem frio. E, mais que
tudo, ainda sentem muito medo.
No caminho, não é raro serem vítimas das quadrilhas e máfias do
tráfico de pessoas ou mesmo são condenadas à invisibilidade e a
rejeição.
Muitos sequer conseguem chegar ao seu destino incerto. Naufragam nas
águas do Mediterrâneo, ou do Atlântico, ou do Índico; morrem de
desidratação, ou de fome, ou de insolação, ou de doenças oportunistas
que se instalam com a fraqueza e o cansaço.
Como todo ser humano comum, suas vontades e anseios básicos consistem
em poder desenvolver suas vidas e atividades cotidianas, em um ambiente
que lhes propicie, além de um entorno de proteção e de segurança, a
sensação de pertinência e integração sociais.
Daí a importância vital de se entender a condição de um refugiado ou
solicitante de refúgio e de se estabelecer medidas de integração local
eficazes e efetivas dentro do regime jurídico de proteção dos
refugiados.
A proteção dada por um determinado poder soberano a estrangeiros
vítimas de perseguição existe desde a Antiguidade. No século XX, esta
prática de proteção ganha a disciplina e a institucionalização do
direito internacional, adjetivada pelo termo humanitária. A proteção internacional humanitária tem como um de seus principais instrumentos o refúgio[1].
Mas, para ser efetiva, a proteção internacional humanitária não pode
ficar apenas no direito internacional. A conduta de acolhimento, de
proteção, de integração, de respeito aos direitos humanos deve estar
inserida nas leis internas dos Estados e, principalmente, ser uma
realidade cotidiana na cultura social deste país.
O Brasil, no âmbito jurídico, é um país modelo em termos de
reconhecimento de direitos e recepção de refugiados e solicitantes de
refúgio.
É um dos poucos países no mundo que estabelece em lei uma política
pública clara em relação aos refugiados e solicitantes de refúgio – a
lei 9.474/97 –, que reconhece direitos básicos desde o momento da
solicitação e estabelece um procedimento administrativo com etapas,
exigências e órgãos decisórios específicos e com competências bem
definidas.
Ao contrário de muitos países europeus – que diariamente têm
protagonizado cenas lamentáveis de xenofobia e um vergonhoso jogo de
empurra-empurra a respeito de uma solução efetiva para os refugiados que
chegam ao continente –, o Brasil não impõe restrições à chegada de
solicitantes de refúgio, nem antecipadamente os julga ou fecha suas
fronteiras.
A posição do país é a de garantir, aos solicitantes de refúgio, o
reconhecimento e a concessão de direitos básicos a todos (como, por
exemplo, direito à estada regular, direito a um documento de
identificação, direito à saúde, à proteção social, à educação etc.),
enquanto dura o processo administrativo perante o Comitê Nacional para
os Refugiados (CONARE) – órgão encarregado de analisar e processar os
pedidos de reconhecimento da condição de refugiado –, e assegurar o
respeito a estes direitos àqueles que têm seu pedido de refúgio aceito
pelo governo brasileiro e, por isso, estão sob sua proteção.
Mas, o fim do sofrimento e da condição de vulnerabilidade destas
pessoas não depende apenas de uma lei clara, ou de um procedimento
administrativo e do reconhecimento de direitos.
Estes passos são obviamente importantes e fundamentais, mas, para a
efetiva inserção dos refugiados numa sociedade é necessário que esta os
acolha, os veja como seres humanos, como pessoas iguais a qualquer um de
seus membros, que os trate com igualdade, sem racismo, sem
discriminação, sem segregação.
E, principalmente, que assegure a estes seres humanos a oportunidade
de recomeçar as suas vidas em paz, para que possam tranquilizar seus
medos e buscar a realização de seus desejos de vida normalmente como
toda e qualquer pessoa.
A primeira e uma das principais barreiras enfrentadas pelos
refugiados ao chegar a um novo país – e que agrava profundamente a
sensação de desterro e de desespero – é a do idioma.
Não saber se comunicar na língua do país dificulta imensamente a
inserção social do refugiado. Essa barreira o impede, por exemplo, de
conhecer e de exercer plenamente seus direitos, de se locomover
livremente, de se comunicar com as autoridades locais, de conseguir um
trabalho.
Para ter uma pequena ideia do que isso representa, imagine a seguinte
situação: você, que lê esta coluna, desperta amanhã em uma cidade
completamente desconhecida, por exemplo, no interior da China, ou da
Arábia Saudita, onde ninguém fala outro idioma a não ser sua própria
língua nativa (a qual você não conhece). Todas as placas, informações,
jornais, etiquetas de produtos, nomes de ruas, livros, revistas, estão
escritos apenas com o alfabeto local. Como você se sentiria?
Nestas condições, você iria desejar que alguém, com boa vontade, o ajudasse, certo?
Ou seja, você desejaria que alguém entendesse a sua dificuldade e a sua situação e te ajudasse a se integrar naquela sociedade.
Pois bem. É exatamente isso o que acontece diariamente com a maioria
dos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil e em outros países.
Por isso é tão importante que a sociedade como um todo compreenda a condição e as dificuldades diárias dos refugiados.
Além de uma série de problemas e de questões que também são
enfrentados por boa parte da população carente do Brasil, os refugiados e
solicitantes de refúgio, em sua esmagadora maioria, ainda têm de lidar
com problemas que são específicos de sua condição de estrangeiro: a
barreira do idioma, atitudes xenófobas, preconceitos culturais, dentre
outros.
A integração local dos refugiados faz parte da proteção
internacional no seu sentido mais amplo, como obrigação conjunta do
Estado e da própria sociedade civil sobretudo no que se refere ao acesso
a políticas públicas de saúde, educação, trabalho, bem como a todas as
questões relacionadas à prática da cidadania.
Mais do que ajuda humanitária, é necessário que cada vez mais a sociedade brasileira distribua humanidade.
Numa época em que mercadorias e dinheiro possuem mais importância e
transitam internacionalmente com mais facilidade do que os seres
humanos; numa atualidade onde os discursos de ódio perdem a vergonha e
ganham facilmente as bocas de pessoas sem escrúpulos e imbuídas dos mais
escusos interesses, é necessário e urgente que a sociedade se mobilize e
aja no sentido de acolher os refugiados e fazer prevalecer o elo mais
elementar que nos une a todos: a humanidade.
Não é assim que você gostaria de ser tratado?
[1] Para conhecer e entender a evolução histórica do instituto do
refúgio e da proteção humanitária, AMORIM, João Alberto Alves. Concessão de Refúgio no Brasil: A Proteção Internacional Humanitária no Direito Brasileiro. Revista Internacional Direito e Cidadania, disponível em http://www.reid.org.br/?CONT=00000303
*João Amorim é professor de Direito Internacional e coordenador da Cátedra Sérgio
Vieira de Melo, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados,
na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Foi coordenador do
escritório regional da Comissão Nacional da Verdade (SP) e advogado do
Centro de Referência para Refugiados (SP). Cursou a Academia de Direito
Internacional de Haia (Holanda) e graduou-se pelo Centro Hemisférico de
Estudos de Defesa, da National Defense University (Washington/EUA). É
autor dos livros Direito das Águas - Regime Jurídico da Água Doce no
Direito Internacional e no Direito Brasileiro e A ONU e o Meio Ambiente -
Direitos Humanos, Mudanças Climáticas e Segurança Internacional no
Século XXI.