Foto: Ditadura Militar/Arquivo |
Nos últimos tempos, vozes da sociedade
civil tem evocado a imagem de um fantasma – para não dizer assombração –
guardado no baú da memória brasileira: intervenção militar! Pior ainda,
estão vestindo o vilão com roupas de herói. Algo que representou uma
mancha sangrenta na nossa história tem sido reproduzido, por alguns,
como uma possível salvação para os problemas nacionais, como se a
terceirização de nossas decisões a um regime autoritário auxiliasse na
superação dos obstáculos do país. A letra de Chico Buarque ganha um tom
profético para os dias atuais: “Num tempo/ página infeliz da nossa história/ passagem desbotada na memória/ das nossas novas gerações”.
Pois
bem, para evitar o desbotamento da nossa memória e fugir das fórmulas
fáceis para problemas complexos, vamos pedir uma ajuda da história – sem
ter a pretensão de esgotar o tema – para responder a essa questão: qual foi o legado do regime civil militar para a educação no Brasil? Será que a frase “a educação era boa na ditadura”
encontra respaldo na realidade? Embora haja vários pontos que possam
ser tratados sobre a ditadura de 1964, como o aumento da dívida externa,
as inúmeras torturas e mortes de cidadãos contrários ao regime, a
extinção de partidos políticos, a perseguição de intelectuais e artistas
da época,entre outros,vamos focar no tema da educação, considerando a
importância desse assunto, inclusive, para que equívocos do passado não
se repitam no presente.
Podemos começar nossa conversa apontando a retirada do ensino de filosofia nas escolas. Essa atitude revela suas intenções ao considerarmos que a transmissão de uma matéria que fortalece a autonomia do pensamento e pode levar ao contato com ideias consideradas “subversivas” não era interessante para o regime militar. A retirada dessa disciplina resultou na criação, por meio do decreto-lei 869 de 1969, de uma matéria que se tornou obrigatória do ensino primário à pós-graduação: Educação Moral e Cívica (EMC). A EMC tinha o objetivo de unificar a ideologia dos alunos, sustentando os valores da ditadura e cultivando ideias nazi-fascistas, como o culto à pátria e à obediência. A imposição ideológica era tamanha que o golpe de 64 era chamado, pelo governo, de “revolução gloriosa”, algo que nos remete à novilíngua de 1984, do escritor George Orwell.
A EMC tinha o objetivo, ainda, de efetuar a regeneração moral de uma sociedade supostamente prejudicada pela “infiltração comunista”,
tendo Deus como fonte dessa base moral. As disciplinas de História e
Geografia, de elevada importância para a construção de um pensamento
crítico, também foram retiradas do currículo e substituídas pela matéria
Organização Social e Política no Brasil (OSPB). A OSPB, criada por
Anísio Teixeira antes do golpe civil militar, foi desvirtuada pela
ditadura e utilizada para sufocar a propagação de ideias opostas. A
própria eliminação da representação estudantil e a proibição de
entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE) demonstra a
ausência de espaço para quaisquer posicionamentos divergentes.
Essa
retirada, entretanto, não se limitou aos conteúdos da grade curricular,
mas também ocorreu em relação às verbas ao ensino. Houve uma paulatina
diminuição no investimento em educação. A Constituição de 1967 acabou
com a obrigatoriedade da União e dos estados de investirem um percentual
mínimo em educação, quebrando o denominado orçamento vinculado
(qualquer semelhança com o fim do orçamento vinculado para o campo
educacional realizado pelo desgoverno Temer, através da PEC do Teto de
Gastos, talvez, não seja mera coincidência). A obrigação da União em
investir, no mínimo, 12% do PIB em educação, prevista na Constituição de
1946, foi revogada com a Constituição outorgada de 1967. Para
dimensionar essa queda, apontamos que em 1970 o percentual de
investimento na área foi de 7,6%, em 1975 de 4,6% e 5% do PIB em 1978[1].
A redução de investimento foi
acompanhada por uma política de arrocho salarial dos professores, que
passaram por um processo de proletarização da sua categoria. O professor
de nível primário, da rede estadual de São Paulo, tinha o salário médio
por hora correspondente a 8,7 vezes o salário mínimo, em 1967. Em 1979,
esta média havia baixado para 5,7 vezes. No Rio de Janeiro a situação
foi ainda mais agravante, destacando-se que o salário dos professores
equivalia a 9,8 vezes o salário mínimo em 1950, despencando para 4 vezes
em 1960 e atingindo 2,8 vezes o salário mínimo em 1977[2].
Dessa forma, o salário dos professores, que no fim da década de 40 era
próximo ao dos magistrados, passou a corresponder, em algumas regiões, a
pouco mais que um salário mínimo. Que ótima forma de valorizar a educação, não?
O projeto de alfabetização “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler”, encabeçado por Paulo Freire – que a partir de um método próprio, alfabetizava trabalhadores rurais em um período de 45 dias – foi extinto e substituído pelo programa MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que teve pouca eficácia no letramento dos analfabetos brasileiros. Em relação ao ensino superior, a reforma efetuada – inspirada no modelo universidade-empresa – foi responsável pela departamentalização das universidades, dificultando a união entre ensino e pesquisa[3]. As diretrizes dessa reforma foram estabelecidas pelos acordos do MEC com a USAID (United StatesAgency for International Development), possibilitando aos EUA pautar uma educação no Brasil sintonizada com os interesses da política norte-americana.
Prosseguindo em nosso sintético
mapeamento histórico, destacamos que uma das alterações mais profundas
realizadas durante a ditadura foi a obrigatoriedade da educação
profissional aos alunos do 2º grau (ensino médio).
A partir da promulgação da Lei 5.692/71, toda escola pública e privada deveria oferecer apenas
o ensino profissional aos estudantes do ensino médio. O argumento usado
pelos militares era de que o país precisava de mão de obra qualificada
para suprir as demandas do mercado de trabalho e, para tanto, deveria
abandonar o ensino clássico e propedêutico e oferecer, exclusivamente, o
ensino técnico. Essa política foi inspirada pela Teoria do Capital Humano,
que enxerga a educação como um capital a ser investido, pautada em uma
concepção produtivista de ensino. Aqui podemos visualizar a educação não
como um instrumento de formação e desenvolvimento das potencialidades
humanas, mas sim como mero criado a serviço de um ente abstrato
denominado mercado.
Nesse ponto, podemos nos perguntar se os seres humanos eram ensinados com máquinas ou ensinados como máquinas[4]. Muitos especialistas apontam que a real intenção do regime militar com a reforma era diminuir a demanda pelo ensino superior, criando uma restrição à continuidade dos estudos, já que os alunos poderiam ingressar no mercado sem ter acesso às universidades.
Na
prática, a reforma instituída pela Lei 5.692/71 serviu para
intensificar ainda mais a dualidade estrutural da educação no Brasil,
que oferece distintas educações para diferentes classes sociais.
Essa dualidade significa que os filhos das elites recebem uma educação
de conteúdos clássicos e propedêuticos, para acessarem o ensino superior
e, posteriormente, formar a classe dirigente da sociedade. Em
outro sentido, os filhos dos trabalhadores e das classes populares
recebem uma educação aligeirada, para ingressarem mais rapidamente no
mercado e exercerem trabalhos manuais.
A intensificação dessa dualidade, que reforça a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, pode ser confirmada ao observarmos que as escolas particulares da época burlavam essa profissionalização e continuavam preparando seus alunos para os vestibulares que davam acesso ao ensino superior, por meio da transmissão da educação geral. Já os estudantes da escola pública, que eram obrigatoriamente escolas profissionalizantes, encerravam seus estudos precocemente pela falta de acesso aos conteúdos de cultura geral que permitissem o ingressonas universidades. Desse modo, a ditadura intensificou a utilização da educação como ferramenta de reprodução das classes sociais.
A própria reforma acabou sendo um
fracasso, já que os militares não ofereceram infraestrutura necessária
para a transformação das escolas em estabelecimentos
profissionalizantes. Acreditaram que a criação de uma lei – sem a
construção de laboratórios, oficinas e preparação de docentes
sintonizados com a lógica do ensino profissional – seria capaz, por si
só, de concretizar uma efetiva modificação. A precariedade de alguns
estabelecimentos era tamanha que houve colégios que utilizavam, no curso
de datilografia, uma cartela com teclas desenhadas, pela falta de
máquinas de escrever[5].
Sobre
a referida reforma devemos fazer, ainda, um adendo. Não há um erro em
prestigiar, também, o ensino profissional nas escolas, considerando que
um saber prático, que desenvolve as competências manuais, é tão
importante quanto o saber intelectual. Em outras palavras, saber-fazer também é saber.
O equívoco está em fragmentar a educação brasileira, impondo o acesso
do ensino profissional em detrimento do ensino clássico e propedêutico.
Após essa breve retrospectiva
histórica, não podemos dizer que a educação não foi importante para a
ditadura no Brasil. Na realidade, essa era uma área de grande relevância
para os militares. Entretanto, resta-nos perguntar qual educação era
importante? A ditadura visava a oferecer uma educação tecnicista,
voltada para a satisfação das demandas do mercado de trabalho, ainda que
esse ideal fosse de encontro com uma educação voltada à formação do
indivíduo e ao desenvolvimento de um pensamento crítico. Dito de outra
forma, o regime militar era frontalmente contra uma educação capaz de ampliar a liberdade dos cidadãos.
Além de estar vinculada a uma concepção produtivista, a pauta do ensino
servia, ainda, para reafirmar os valores do regime e impedir o contato
com pensamentos que colocassem em cheque a lógica deste, criando um terreno infértil para a pluralidade de pensamento e fértil para ideias autoritárias.
Apesar
dos incontáveis danos que o regime militar causou à educação no Brasil –
deixando marcas que perduram até os dias atuais – destacamos que esses
ataques resultaram em uma maior organização da classe dos professores e
professoras, que lutaram como podiam contra os retrocessos da ditadura.
Assim, apesar de tantos pesares, que a memória desse passado sombrio e
os atuais retrocessos que temos vivenciado sirvam não para enfraquecer
nossa luta, mas sim para fortalecer nossa união e resistência. A
história ainda não terminou de ser escrita…
*Matheus Silveira de Souza
é Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo
(USP). Pesquisa temas relacionados à Políticas públicas de educação,
relações entre educação e trabalho e educação profissional.
[1] SAVIANI,Dermeval. O legado educacional no regime militar. Caderno Cedes, vol. 28, n. 76, pag. 291-312. Campinas, 2008.
[2] CUNHA,
L.A. Movimentos sociais, sindicais e acadêmicos. In: CUNHA, L.A.
Educação, Estado e democracia no Brasil. São Paulo: Cortez; Niterói:
UFF; Brasília, DF: FLACSO do Brasil, 1991
[3] GADOTTI,
Moacir. 50 anos depois. Como reverter o golpe na educação popular?
Audiência púbica sobre os reflexos do golpe militar na educação
brasileira. Brasília, 2014.
[4] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos; tradução Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
[5] Agência Senado. Reforma tornou ensino profissional obrigatório em 1971. Publicado em 03/10/2017
Fonte: Publicado no Justificando
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