"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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quarta-feira, 27 de maio de 2020

A ignorância motivada: não nascemos ignorantes, aprendemos a ser ignorantes

A ignorância motivada é quando escolhemos, mais ou menos conscientemente, não saber mais, não nos aprofundar, não entender.

Nós sempre pensamos que ignorar é um verbo passivo. Ignorância é a falta de conhecimento, um estado de desinformação ou falta de compreensão. Portanto, qualificamos uma pessoa como “ignorante” quando ela não sabe ou não entende alguma coisa.

Esse caráter passivo implica que, de certa forma, essa pessoa não é responsável por sua ignorância, ele simplesmente carrega consigo aquela “falta”. É curioso, no entanto, que não se aplique a qualificação de ignorantes às crianças, mesmo que elas geralmente não dominem o mesmo conhecimento dos adultos.

Isso significa que a ignorância começa com um pressuposto: algo que devemos saber, mas não sabemos, um caminho pelo qual deveríamos ter percorrido, mas não o fizemos. Então a ignorância abandona seu significado passivo para ter um significado ativo que implica não reconhecer algo ou agir como se não fosse conhecido. Nós caímos no que é conhecido como “ignorância motivada”.

O que é ignorância motivada?

A ignorância motivada é quando escolhemos, mais ou menos conscientemente, não saber mais, não nos aprofundar, não entender. Essa ignorância é terrivelmente perigosa porque tende a levar a posições extremas e reduz nossa capacidade de continuar crescendo e amadurecendo. Quando decidimos ser ignorantes, alguém decidirá em nosso lugar. Nós nos tornamos manipuláveis.

Goethe já havia dito: “não há nada mais terrível que a ignorância ativa”. O filósofo Karl Popper pensava o mesmo: “A verdadeira ignorância não é a ausência de conhecimento, mas a recusa em adquiri-lo”.

Essa ignorância motivada pode ocorrer em todas as áreas de nossas vidas. Algumas pessoas começam a se sentir mal, mas ao invés de ir ao médico para receber um diagnóstico, elas preferem se refugiar na ignorância assumindo que está tudo bem. Outras pessoas suspeitam que seu parceiro é infiel, mas, em vez de esclarecer suas dúvidas, escolhem permanecer ignorantes. O mesmo acontece no nível político ou social: quando já temos uma ideia formada, optamos por não escutar ou valorizar os argumentos contrários.

Por que escolhemos a ignorância motivada?

Um experimento realizado na Universidade de Winnipeg e na Universidade de Illinois mostrou quão forte e irracional nossa tendência para a ignorância motivada pode ser. Esses psicólogos recrutaram 200 pessoas e deram a elas duas opções: ler e responder perguntas sobre uma opinião (casamento gay) com as quais concordavam ou ler um ponto de vista oposto.

Aqueles que decidiram ler a opinião com a qual concordaram ganhariam $7; mas se eles escolhessem a opinião contrária, ganhariam 10 dólares. Surpreendentemente, 63% das pessoas preferiram ler a opinião com a qual concordaram, rejeitando a possibilidade de ganhar mais dinheiro.

Nesse caso, escolhemos ser ignorantes para evitar a dissonância cognitiva. Nós desenvolvemos uma concepção do mundo que manipula nossas idéias e crenças, e tememos que opiniões contrárias possam desestabilizar aquele castelo de cartas. É por isso que preferimos ignorar tudo o que não corresponde à nossa visão. E isso significa que, no fundo, a ignorância motivada é uma expressão de medo.

Como nós instilamos esse medo?

“O medo da nossa ignorância é uma sensação de que fomos sistematicamente inculcados durante o período escolar. É sobre a sensação de que não sabemos algo que muitos conhecem, por isso é melhor ficar quieto e se acomodar ”, disse o filólogo Igor Sibaldi.

Na escola, a ignorância é revestida com um halo negativo. Começa a apontar o dedo para o ignorante. E isso gera um paradoxo porque, para superar a ignorância, devemos primeiro reconhecê-la, mas não podemos reconhecê-la por medo de ser rotulado como ignorante. O escritor Baltasar Gracian disse que “o primeiro passo da ignorância é presumir saber”.

Livrar-se da ignorância não é realmente difícil, basta informar-se, “mas esse comportamento é impossível para a grande maioria das pessoas porque o hábito de se sentir ignorante se tornou algo mais forte do que o desejo de aprender”, segundo Sibaldi.

A ignorância se torna uma zona de conforto em que nos sentimos muito à vontade para sair. Ou talvez nem nos sintamos tão confortáveis, mas o medo do que está fora, tudo o que desafia nossas crenças, é tão forte que nos mantém paralisados naquela zona de conforto. Assim escolhemos a ignorância.

Escolha saber

O ignorante não é aquele que não conhece, mas aquele que não quer saber. Portanto, o primeiro passo para expulsar a ignorância é desenvolver uma mentalidade de crescimento, uma mente aberta que nos permita explorar o maior número de possibilidades.

Não podemos nos livrar de nossos estereótipos e crenças da noite para o dia, mas podemos questioná-los e olhar além do que sempre consideramos garantido. Deveria nos deixar mais receosos de morrer todos os dias em uma zona de conforto que se estreitará mais e mais do que sair para descobrir o mundo, por mais diferente ou incerta que seja.



terça-feira, 26 de maio de 2020

Fake news atrapalham médicos em meio à pandemia

Profissionais de saúde brasileiros que combatem a covid-19 relatam como suas rotinas têm sido afetadas por conflitos com pacientes e familiares de doentes que se deixam levar por boatos divulgados em redes sociais.

Pacientes com covid-19 em hospital de São Paulo
Tratando exclusivamente de pacientes com covid-19 em um hospital de São Paulo, uma médica intensivista viu sua rotina se transformar há duas semanas em um caso de polícia. Familiares de um doente na faixa dos 40 anos, que estava sob sua responsabilidade e entubado, quiseram obrigá-la a ministrar um medicamento específico. Eles haviam lido sobre o tratamento em redes sociais.

Diante da resistência da médica, os parentes do doente chamaram a polícia e foram ao hospital ameaçando invadir a UTI.

Antes, por telefone, ela havia esclarecido  para os parentes que diante daquele quadro — "potássio estava baixo, cálcio estava baixo", entre outros indicadores —, os efeitos colaterais poderiam ser graves.

"Ele teria arritmia e poderia morrer”, contou a médica — que pediu para não ser identificada. à DW Brasil. "Eles alegavam que eu estava sendo negligente e queria matar o paciente por não oferecer a ele a hidroxicloroquina."

Ao chegarem, os policiais compreenderam a situação e a confusão foi resolvida. Mas o episódio somou-se a tantos que têm dificultado o trabalho dos médicos em meio a tantas fake news, informações sem base científica e a transformação da saúde em uma arena de disputa política.

Dentre dez médicos brasileiros ouvidos pela DW Brasil nos últimos dias, a pressão social pela prescrição da cloroquina, com argumentos sustentados por informações compartilhadas em redes sociais, foi a maior reclamação.

Nos últimos dias, a pressão ganhou um ingrediente a mais: o novo protocolo do Ministério da Saúde, divulgado na quarta, 20, sem embasamento científico e recomendando o uso do fármaco inclusive em casos iniciais, após incentivo do presidente Jair Bolsonaro, um entusiasta do remédio.

Diretor da medicina intensiva do Hospital do Servidor Público Estadual, o médico Ederlon Rezende diz que desmentir informações controversas virou um trabalho incorporado à sua rotina junto aos pacientes e familiares. "A empolgação com que nosso presidente fala sobre a droga [hidroxicloriquina], muitas vezes utilizando notícias falsas para apoiar suas recomendações, teve grande influência sobre a opinião pública", avalia ele.

Mas a cloroquina não é a única solução milagrosa que, espalhada nas redes sociais, acaba influenciando a relação paciente-médico. Atuando em diversos hospitais paulistanos —entre eles o Hospital Alemão Oswaldo Cruz e o hospital de campanha montado no Ibirapuera —, o infectologista Daniel Duailibi conta que também vem ouvindo ameaças constantes de familiares de internados.

"Todos os dias há questionamentos sobre potenciais terapias, seja a hidroxicloroquina ou anticoagulantes. Isso sem falar naqueles boatos de que escovar os dentes com bicarbonato combate o vírus e outras coisas assim que colocam a gente em situações bastante difíceis", comenta.

Duailibi avalia que a pressão tem dificultado a autonomia técnica de sua profissão. "Gera conflito o tempo todo. O paciente fica insatisfeito porque gostaria de ter recebido a medicação na qual acredita porque leu na internet e esses discursos acabam quebrando o laço de confiança entre médico e família, já fragilizado em um momento em que temos de dar más notícias por telefone", diz ele.

"Houve um familiar que me falou que se posteriormente houvesse alguma evidência de que o anticoagulante que não prescrevemos teria beneficiado seu pai, ele iria exigir uma prestação de contas de todos os médicos que não o ministraram. Falou em tom de ameaça."

Ele sentencia a situação com uma frase: acredita que a autonomia técnica dos médicos está sendo violada por achismos.

"Além da carga física, psíquica e emocional, aumentadas de sobremaneira, a gente ainda tem de lidar com ameaças por parte de pacientes e familiares", comenta a médica intensivista Giovanna Zanatta de Carvalho, que também está atendendo só a casos de coronavírus em um hospital paulistano.

Carvalho ressalta que a questão não é ser contestada. "Como médica, não sou dona da verdade. Mas o problema é ser contestada e, mesmo explicando as razões, receber ameaças e xingamentos do outro lado. Isso é constante. Antes, eu falava com o paciente em um tom amistoso, agora a família quer decidir por si só um tratamento sem evidências científicas", diz. "Essas coisas não são a gosto do freguês.”

Ela diz que as informações propagadas em redes sociais, sem embasamento científico, tornaram sua rotina "infernal".

A Organização Mundial de Saúde (OMS) já declarou que, junto à covid-19, o mundo enfrenta uma "segunda doença”: a infodemia. Na definição da instituição, trata-se de "uma abundância excessiva de informações — algumas precisas, outras não — que dificultam o acesso a fontes e orientações confiáveis quando as pessoas delas precisam”.

Relatório divulgado pela Unesco informou que, segundo dois estudos internacionais recentes, 40% dos posts relacionados à pandemia em redes sociais não são confiáveis.

"Atendo muita gente acreditando no que vê nessas fake news. Dizendo que se trata de uma doença leve e, portanto, tudo deve ser reaberto, até aqueles que dizem que ela não existe”, relata a intensivista Cristhieni Rodrigues, que atua no Instituto do Coração e no Hospital Santa Paula, ambos em São Paulo. "Então eles se negam a usar máscaras, continuam a fazer festas e aglomerações."

O médico Ederlon Rezende também conta que tem sido interpelado por aqueles que não acreditam nas estatísticas, dizendo que os números de mortos pela covid-19 são inflados e que "agora todos os que morrem são registrados como vítimas de coronavírus”.

"Vivemos em um mundo onde o acesso à informação é fácil, mas nunca pensei que a desinformação poderia prevalecer com tanta facilidade", diz ele. "Além de cuidar do paciente, cuidar da família, da equipe e de nós mesmos, temos que dedicar um precioso tempo para desfazer tais conceitos", completa Novaes.

Há ainda as fotos fora de contexto. Rodrigues vem sendo questionada por gente que vê, nas redes sociais, fotos de hospitais vazios e diz, com base nisso, que não podem ser verdade que as UTIs estejam sobrecarregadas. "Não entendem que são fluxos diferentes, que há uma ala isolada para covid-19. Ou, como em muitos casos, que a foto é de três meses atrás", ressalta.

Até médicos podem ser disseminadores de fake news

Mas conforme relatos ouvidos pela reportagem não são apenas os pacientes e seus familiares que estão suscetíveis a acreditar em informações sem comprovação científica. A própria classe médica também é vítima de fake news.

Desde a semana passada, por exemplo, circula em grupos de WhatsApp de médicos e outros profissionais da saúde, um arquivo em PDF de 16 páginas, timbrado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e com logotipos da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo e do Sistema Único de Saúde (SUS). O documento, intitulado Protocolo Para Tratamento da Covid-19 recomenda o uso de hidroxicloroquina e azitromicina a partir dos primeiros sintomas — com especificações de dosagens, inclusive.

É completamente falso. Na quarta, 20, o conselho publicou uma nota em seu site desmentindo o PDF. "Acho que isso é a pior coisa: tem pessoas fazendo deliberadamente protocolos institucionais falsos, com timbre e tudo, só para divulgar um tratamento", comenta Giovanna Zanatta de Carvalho. "Eu nunca tinha visto antes fake news de protocolo institucional."

Claro que médicos também são influenciados pela situação. "Eu adoraria acreditar [na eficiência] da hidroxicloroquina, mas precisamos aguardar as pesquisas que estão saindo agora, com um número grande pessoas", pontua a intensivista Cristhieni Rodrigues.

 "Muitos médicos argumentam com a falácia de que o medicamento é usado há muito tempo, não causa mal e por isso devemos utilizar. A questão é que a hidroxicloroquina é utilizada em uma população específica de pacientes que, diferentemente dos acometidos pela covid-19, não têm processos inflamatórios muito grandes em especial em células pulmonares e cardíacas."

Já Rezende afirma que muitos de seus colegas "se esqueceram que a medicina é uma ciência, baseada no fato científico e passaram a acreditar em qualquer boato que oferecesse uma solução simples para um problema complexo."

Ele relata que no hospital onde atua chegou a atender um médico, internado em UTI por conta de covid-19. "Certamente por conta de fake news, antes de chegar ele havia feito uso, por auto-medicação, de diferentes antibióticos que levaram a uma complicação conhecida como colite pseudomembranosa", exemplifica, ressaltando que esse cenário tornou a recuperação do colega particularmente difícil.

"O que eu julgo mais deletério é formadores de opinião — profissionais de saúde e políticos, por exemplo — ajudarem a difundir e sustentar conceitos errados", argumenta a geriatra e paliativista Flavia Gonçalves de Araujo Novaes, que atua num hospital em São Paulo.

Estudioso da disseminação de informações noticiosas em um mundo de algoritmos, o jornalista Daniel Trielli, pesquisador da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, vê o fenômeno como resultado do fato de que a maneira como pesamos as informações recebidas não é completamente racional. "Nossas crenças é que moldam como recebemos as informações. Usamos o que lemos para confirmar nossos vieses, e descartamos o que não se encaixa", afirma.

"As plataformas digitais tornam mais intenso o processo de exposição seletiva, que é quando a pessoa busca a informação no viés que ela quer", completa ele "Se é desconfortável para a pessoa acreditar que a crise é grave, que os governos que ela apoia estão falhando, e que por causa de posturas de políticos em quem ela votou mais pessoas podem morrer, essa pessoa vai descartar todas as informações sobre isso e buscar uma fonte que fala coisas mais confortáveis. Que é tudo exagerado, que é uma conspiração, coisas assim.”



Coronavírus: Pesquisa expõe intenção de genocídio no Brasil

Maior pesquisa sobre a covid-19 no país revela: para atingir “imunidade de rebanho” de que fala Bolsonaro, 120 mil morreriam, só na cidade de S.Paulo. Quase todos nas periferias.

Saíram os primeiros resultados do aguardado levantamento nacional sobre a covid-19, coordenado pela Universidade Federal de Pelotas. Os pesquisadores testaram a presença de anticorpos em 25 mil moradores de 133 municípios espalhados em todas as regiões. Em um conjunto de 90 deles (incluindo 21 capitais), onde foi possível realizar mais de 200 testes, os resultados indicam que 1,4% da população já teve o novo coronavírus. Essas cidades concentram 25,6% dos brasileiros (54 milhões de pessoas), entre os quais 760 mil teriam sido infectadas. Na época dos testes, os resultados oficiais contavam 104,7 mil casos registrados no conjunto dessas 90 cidades. Ou seja: segundo o levantamento, nesses locais há sete vezes mais infectados do que o número oficial demonstra.

Isso não significa que 1,4% da população do país inteiro tenha sido contaminada, como ressaltam os pesquisadores no relatório: “Os resultados dessas 90 cidades não devem ser extrapolados para todo o país, nem usados para estimar o número absoluto de casos no Brasil, pois são cidades populosas, com circulação intensa de pessoas e que concentram serviços de saúde. A dinâmica da pandemia, portanto, pode ser distinta da observada em cidades pequenas ou em áreas rurais”. De todo modo, o levantamento escancara a subnotificação que já vinha sendo projetada em vários modelos epidemiológicos e mostra que “a contagem de casos de infecção por coronavírus no Brasil agora deve ser feita em milhões, e não mais em milhares”. Pesquisas populacionais, diz o texto, são a única forma de entender o que está debaixo do topo do iceberg. Só São Paulo deve ter 380 mil moradores com anticorpos, o que é mais do que o número de casos registrados no país inteiro atualmente.

É impressionante a diferença encontrada entre as regiões. Das 15 cidades com maior prevalência, 11 estão no Norte, evidenciando que, por lá, tanto a situação epidemiológica como a subnotificação são piores que no restante do país. No topo da lista está Breves, no Pará, que já teve quase 25% da população infectada (seriam 25 mil pessoas). Em Belém, essa taxa foi de 15,1%; em Manaus, 12,5%; em Fortaleza, 8,7%; em São Paulo, 3,1%; no Rio, 2,2%. No Sul, só Florianópolis teve prevalência maior que 0,5%. Já no Centro-Oeste, o número de testes realizados não foi suficiente para encontrar nenhum caso positivo, embora já haja casos e mortes notificados.

Essas diferenças entre as cidades demonstram que existem várias epidemias num único país. Enquanto algumas cidades apresentam resultados altos, comparáveis aos de Nova York (EUA) e da Espanha, outras apresentam resultados baixos, comparáveis a outros países da América Latina, por exemplo”, escrevem os pesquisadores. É bom reiterar que os resultados se referem ao número de casos, e não ao de mortes – a subnotificação delas é um capítulo à parte. Aliás, observamos que as cidades com altas prevalências de infectados não são as que têm as mais altas taxas de mortes confirmadas até agora, o que é algo para se tentar entender.

Conhecer a prevalência do vírus – o que se faz muito bem com pesquisas amostrais como a da UFPel –  é importantíssimo para tomar decisões sobre políticas públicas, mas não é suficiente para conter os surtos. Isolar doentes e rastrear contatos tem se mostrado essencial nos países com boas respostas até o momento. Na verdade, o que se faz nas quarentenas é tentar isolar todos justamente diante da incapacidade de isolar só os contaminados. O diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, deu uma mensagem direta para o Brasil ontem ao falar disso. Explicou que as quarentenas não devem ser eternas, mas servem justamente para os países conseguirem parar a duras penas o avanço do vírus e ganharem tempo enquanto montam suas estratégias de testagem e rastreamento de contatos: “Sem essa capacidade, não há alternativa que não o confinamento. A transmissão não vai embora sozinha“.

Ir embora sozinha, até que ela vai… Mas ao custo de muitas vidas e só quando todo mundo se infectar – como quer Jair Bolsonaro. O que fica muito evidente na pesquisa da UFPel é que a maior parte das 90 cidades analisadas ainda está muito longe da ‘imunidade de rebanho’ defendida pelo presidente. Se São Paulo já tem mais de seis mil mortes com apenas 3,1% da população infectada, imaginem quantas mais serão necessárias para que o vírus atinja 70% em um curto prazo.

ESPERANDO O “LIMITE”

Mesmo na parte visível do iceberg, os números brasileiros não param de escancarar as falhas grosseiras do governo em relação à resposta. Já são três meses de covid-19 no país. Os casos conhecidos chegaram a 374.898. Ontem, foram mais 807 mortes, levando o total a 23,473 mil. Estamos há dois dias seguidos ultrapassando os Estados Unidos em relação ao número de mortes em 24 horas.

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sábado, 23 de maio de 2020

DW: Vídeo mostra desinteresse do governo nas vítimas da pandemia. Por Jean-Philip Struck

Bolsonaro e ministros discutiram até a legalização dos jogos de azar, mas não mencionaram UTIs ou como lidar com aumento de mortes por covid-19. Um dos participantes chegou a afirmar que "pico” parecia ter passado.

Por Jean-Philip Struck | DW Brasil
Em pouco menos de duas horas de reunião, o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros discutiram a legalização dos jogos de azar, privatização do Banco do Brasil e abordaram até mesmo a quantidade de descendentes de ucranianos no Brasil, além de distribuírem ofensas para governadores, prefeitos e membros do Supremo. O vídeo do dia 22 de abril, que foi liberado pelo STF, também reforçou a suspeita de que Bolsonaro agiu contra a Polícia Federal para proteger sua família.

Apesar da gama variada e confusa de assuntos, um tema em especial despertou pouco interesse de quase todos os participantes: o combate ao aumento de infecções e mortes por covid-19.

As palavras "UTI", "respiradores" e "ventiladores" não foram mencionadas uma vez sequer no encontro, de acordo com a transcrição da reunião. Praticamente nenhum participante propôs auxiliar autoridades estaduais ou municipais no combate à pandemia ou como reduzir o número de mortes e frear o avanço de casos.

Só um ministro chegou a levantar brevemente uma espécie de estratégia em meio à pandemia: Nelson Teich, que havia se juntado ao governo cinco dias antes – ele acabaria ficando menos de um mês no cargo. E, mesmo assim, a intervenção de Teich só despertou algum interesse de outros participantes por potencialmente envolver um plano de transição para "saída” do isolamento social, um tema caro ao presidente, que se opõe radicalmente a qualquer tipo de quarentena.

Teich chegou a alertar que antes de qualquer flexibilização seria preciso fortalecer o sistema hospitalar, que, segundo ele, estava sendo sucateado pelo coronavírus. A fala chegou a despertar rapidamente o interesse de Walter Braga Netto, ministro da Casa Civil. Mas nem ele nem Teich apontaram como ajudar os hospitais.

Ao todo, Teich falou por menos de 4 minutos na reunião que se estendeu por quase duas horas.

Em 22 de abril, dia da reunião, o país acumulava oficialmente 2.906 mortes por covid-19 e cerca de 45 mil casos. Na manhã deste sábado (23/05), eram 21.048 mortos e cerca de 330 mil casos. 

Sem foco nas vítimas e doentes, o tema da pandemia acabou mesmo sendo usada por quase todos os participantes como pano de fundo para promover suas agendas radicais, paranoias e como combustível para os ataques e queixas de Bolsonaro.

Aproveitar para "passar a boiada"

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por exemplo, chegou a afirmar que o governo deveria aproveitar que a imprensa estava com suas atenções voltadas à pandemia para afrouxar a legislação ambiental e até mesmo as regras de patrimônio histórico.

"Estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo."

Ucranianos e aborto

A ministra da Família, a evangélica Damares Alves, por sua vez, abordou Teich na reunião não para falar de combate à covid-19, mas para demonstrar preocupação com a presença de "feministas" no Ministério da Saúde.

Ela demonstrou preocupação que questão da pandemia pudesse "trazer o aborto de novo para a pauta", como havia ocorrido anteriormente, segundo ela, com o zika vírus. Damares também afirmou, sem qualquer prova, que havia recebido informações de "haveria contaminação criminosa em Roraima e Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro pra colocar nas costas do presidente Bolsonaro".

Damares chegou a falar sobre uma construção ao “enfrentamento do coronavírus”, mas rapidamente passou para curiosidades sobre descentes de ucranianos no Brasil”. “É um país plural. Quando a gente foi buscar os povos tradicionais agora pra gente construir o enfrentamento ao coronavírus, nós descobrimos, ministros, que nós temos 1,3 milhão de ucranianos no Brasil e ninguém nunca falou de ucranianos pra nós no Brasil.”

"Destacar comorbidades" e "armar o povo"

Bolsonaro mencionou a pandemia para reclamar de ações de governadores e prefeitos, além de juízes que autorizaram a saída de presos. "O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta", disse.

Bolsonaro também sugeriu armar a Ppopulação para intimidar autoridades locais que impuserem medidas de isolamento social. "Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! (...) Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua", disse.

A intervenção breve de Teich, a única em toda a reunião sobre a adoção de uma estratégia para conter a doença, também não despertou interesse de Bolsonaro. Logo após a fala do ministro, o presidente passou a se queixar da divulgação de uma nota pela Polícia Rodoviária Federal, que lamentou a morte de um agente por covid-19. Segundo Bolsonaro, a corporação deveria ter destacado que o agente era "obeso". "Vamos alertar a quem de direito, ao respectivo ministério, pode botar covid- 19, mas bota também tinha fibrose nu ... montão de coisa", pediu o presidente, afirmando que "não queria levar mais medo para a população".

Bolsonaro também citou o coronavírus ao falar das cobranças para mostrar seu exame. "Tem aí OAB da vida, enchendo o saco do Supremo, pra abrir o processo de impeachment porque eu não apresentei meu meu exame de vírus, essas frescurada toda, que todo mundo tem que tá ligado", disse.

"Pico já passou, né?"

O presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, chegou a minimizar a pandemia. "A minha sensação, de quem não é especialista no negócio, mas que observa os números, é que o tal do pico, o tal do famoso pico, que gerava tantas preocupações, a minha sensação é que esse pico já passou, né?".

Naquele dia, o Brasil havia registrado oficialmente em 24 horas 165 novas mortes por covid-19. Na última sexta-feira (22/05), foram 1.001 novos óbitos adicionados ao balanço em um dia.

O ministro da Economia, o ultraliberal Paulo Guedes, só abordou a pandemia marginalmente, especialmente para se queixar do plano de investimentos Pró-Brasil, que vem sendo tocado por outras pastas, comparando o programa a iniciativas fracassadas do governo Dilma Rousseff. Ele também defendeu a legalização do jogo – uma pauta que foi levantada na reunião pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio –,  a venda do Banco do Brasil e, como sempre tem feito desde o início do governo, apesar do maus resultados econômicos, vendeu otimismo. "O Brasil vai surpreender o mundo", disse.

O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também aproveitou a ocasião para promover um cenário mirabolante para o Brasil em uma espécide de "nova ordem mundial" pós-coronavírus. "Eu tô cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial."



Um povo governado por Saul, por Antônio Francisco da Silva

Saul nem sabe direito como chegou a ser Rei, mas se tornou o homem mais poderoso de seu país. Um homem arrogante, autoritário, ciumento, que não aceita qualquer concorrência.

*Por Antônio Francisco da Silva | Artigos - GGN
Quando Saul é elevado ao trono, Israel vive um momento muito conturbado com o fim do período dos juízes. Para se ter uma ideia, o chamado livro de Juízes termina dizendo: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”.

Saul surge no cenário muito por acaso. Ele está procurando as jumentas que o pai havia perdido, prestes a desistir. Então, o seu ajudante fala de certo homem de Deus em Ramá. Esse homem é como um vidente, o que ele fala acontece. Estamos falando do último dos juízes, Samuel. Para quem não está familiarizado com a história bíblica leia 1 Samuel Cap 9 – 31, e uma referência em 1 Crônicas 10.

Aparentemente, Saul não tem nenhuma capacidade especial e nenhum destaque nacional. A única referência que temos é acerca de sua aparência física. Saul não é um chamado, mas sim, um impelido.

Saul nem sabe direito como chegou a ser Rei, mas se tornou o homem mais poderoso de seu país. Um homem arrogante, autoritário, ciumento, que não aceita qualquer concorrência. Ele precisa estar sempre em destaque e quando isso não acontece, fica profundamente irritado.

Por incompetência, perde grandes batalhas, rompe com algumas instituições importantes, como o profetismo, e cai em descrédito com o povo. Assume um lugar que não era seu, usa as coisas sagradas de maneira imprópria e, por fim, vai consultar os mortos.

Esse terrível declínio levou Saul à derrocada. O fim desse homem foi o suicídio, por vergonha diante de mais uma batalha perdida.

Gordon MacDonald trata desse assunto com profundidade no livro “Ponha ordem no seu mundo interior”, quando afirma que todo impelido está fadado a meter os pés pelas mãos.

História semelhante ronda certo país tupiniquim. Onde a ala evangélica, nunca antes em destaque, como a tribo de Benjamim, flerta com a possibilidade de um poder ilimitado. Sempre à margem e preterida, vibra com Saul: “Agora é a nossa vez, vamos à forra!”

Corremos o risco de um final trágico? O tempo nos dirá!

*Antônio Francisco da Silva (Heterônimo) – Pastor Cristão



quinta-feira, 21 de maio de 2020

Faculdade de Ciências Farmacêuticas divulga moção sobre uso de cloroquina e hidroxicloroquina para a covid-19

Texto destaca que cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina “não demonstraram, até o momento, eficácia comprovada no tratamento da covid-19” de acordo com vários estudos clínicos nacionais e mundiais

Leia abaixo, na íntegra e com respectivos grifos, o texto divulgado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, em 21 de maio, a respeito do uso terapêutico da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.

MOÇÃO DA FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SOBRE A AMPLIAÇÃO DO USO DE CLOROQUINA/HIDROXICLOROQUINA PARA CASOS LEVES DE COVID-19

A Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo tem como missão “promover a formação de recursos humanos qualificados, empreendedores e com visão crítica, gerar o conhecimento e atuar nas atividades de extensão em Ciências Farmacêuticas”, dentro dos valores de que essas atividades “devem ser pautadas pela excelência e pelos princípios éticos, priorizando a dignidade dos seres humanos e a preservação do meio ambiente”. Com base nesses princípios, a faculdade, no papel de formadora de profissionais farmacêuticos responsáveis e éticos, que atuam nas várias áreas dos fármacos e medicamentos, dos alimentos e das análises clínicas e toxicológicas, vem a público para contestar o protocolo do Ministério da Saúde que contempla o uso de cloroquina/hidroxicloroquina para casos de covid-19.

A cloroquina – ou seu derivado, hidroxicloroquina – não demonstraram, até o momento, eficácia comprovada no tratamento da covid-19, de acordo com resultados de vários estudos clínicos conduzidos em nível mundial e nacional. De acordo com a Anvisa, “até o momento, não existem estudos conclusivos que comprovam o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19”. A visão é corroborada pela Sociedade Brasileira de Imunologia, pela Organização Mundial da Saúde e por diversos órgãos da área pelo mundo inteiro. Além de não haver comprovação de eficácia no tratamento da covid-19, entre os inúmeros eventos adversos relatados estão os cardíacos – com destaque para o prolongamento do intervalo QT – que podem colocar em risco a vida dos pacientes, levando-os a óbito.

Em razão dos motivos citados, entendemos que, até o momento, não há base científica para a recomendação de uso terapêutico da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Portanto, não podemos consentir com a ação irresponsável que representa o novo protocolo que inclui o uso da cloroquina para casos leves. Como profissionais da saúde, nos cabe repudiar, com veemência, essa ação do Ministério da Saúde.

São Paulo, 21 de maio de 2020

APROVADA PELA EGRÉGIA CONGREGAÇÃO DA FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 

Mais informações: site info.fcf.usp.br/2020/?p=630



A polêmica da Cloroquina. Por Manoel Fonseca

*Por Manoel Fonseca
Texto publicado originalmente na página do Facebook da ABMMD-CE
A cloroquina é usada há mais de 70 anos no Brasil e o seu derivado, a hidroxicloroquina, para tratamento de malária e algumas doenças reumáticas, como o lúpus e a artrite reumatoide. Nestes dois últimos casos, por geralmente ser um tratamento mais prolongado, há a necessidade de acompanhamento sistemático por um médico, pois pode causar lesões oculares e até cegueira e distúrbios cardíacos graves e até o óbito. Dependendo da dosagem, estes distúrbios podem acontecer precocemente.

Bolsonaro e o general Ministro da Saúde resolveram liberar geral a cloroquina, produzida pelo Exército, para uso nas Unidades de Saúde ambulatoriais do SUS. Estão praticando uma temeridade e, potencialmente, podem propiciar problemas de saúde graves e até mortes das pessoas, pois elas irão para casa e, numa intercorrência aguda, dificilmente chegarão ao hospital a tempo. Para se proteger de possíveis processos, o Ministério da Saúde e seu general-Ministro orientam os médicos a pedirem ao paciente que assine um "termo de consentimento informado", praticamente isentando o profissional e o Ministério sobre qualquer efeito colateral que possa advir e responsabilizando o paciente pela escolha deste medicamento. Este termo de consentimento ressalta que "não existe garantia de resultados positivos"  e que "não há estudos demonstrando beneficios clinicos". O documento afirma ainda que o paciente deve saber que a cloroquina pode causar efeitos colaterais que podem levar a "disfunção grave de orgãos, ao prolongamento da internação, à incapacidade temporária ou permanente e até  óbito".

A Medicina Suplementar, em especial a Unimed e a Hapvida, no Ceará, resolveram aderir à orientação do Ministro-general e distribuir a cloroquina em nivel ambulatorial e também responsabilizar o paciente pela decisão de aceitar este tratamento e pelos possiveis efeitos colaterais, alguns muito graves, que poderão ser letais, pedindo que ele também assine um "termo de consentimento informado, semelhante ao do Ministério da Saúde.

Estão promovendo uma falácia, justificando que esta decisão reduziria as internações e a ocupação dos leitos de UTI e protegeria seus clientes.

Documento divulgado em 19/05/2020 pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, pela Sociedade Brasileira de Infectologia e pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, reunindo ao todo 27 especialistas, informa terem chegado a um consenso para não recomendar o uso da cloroquina e a hidroxicloroquina no tratamento da COVID19, por não encontrarem nenhuma evidência científica de seus benefícios. Este consenso é respaldado numa bibliografia contendo 79 publicações nacionais e internacionais de estudos e pesquisas sobre este tema.

O governo Bolsonaro, que estimula a morte de milhares de pessoas por Covid19, por sua vergonhosa omissão e insistente militância contra o isolamento social, poderá ser responsavel por mais uma tragédia: o aumento de mortes, para além das causadas pela Covid19, devido ao uso indiscriminado e abusivo de cloroquina.

*Manoel Fonseca é Médico Sanitarista. Epidemiologista e Mestre na área de Saúde Pública

Fonte: Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia - ABMMD-CE

sábado, 16 de maio de 2020

DW: O que Bolsonaro procura em um novo ministro da Saúde. Por Jean-Philip Struck

Pasta registra queda de dois ministro em menos de um mês, com presidente exigindo submissão de titulares em temas como promoção da cloroquina, afrouxamento drástico do isolamento e minimização dos efeitos da pandemia.

Por Jean-Philip Struck | DW Brasil 
Cloroquina, isolamento social, gravidade da covid-19. O presidente Jair Bolsonaro tem uma visão sobre esses temas e como enfrentar a pandemia. Já seus dois últimos ministros da Saúde tinham outra. Nesta sexta-feira (15/05), divergências sobre esses aspectos provocaram a queda de Nelson Teich meros 27 dias após a sua nomeação.

Antes dele, Luiz Henrique Mandetta já havia deixado o cargo. A segunda queda ocorre no momento em que o país acumula mais de 14 mil mortos por covid-19, dentro de um ritmo que chega a 800 óbitos por dia.

Teich havia sido nomeado em abril com a expectativa de um maior alinhamento com Bolsonaro, que contrariando o consenso científico, vem defendendo uma adoção ampla da cloroquina no tratamento da covid-19, um isolamento parcial de grupos de risco e minimizando a gravidade da pandemia. 

O ex-ministro, um bem-sucedido médico da área privada mas sem experiência no setor público, não chegou a escancarar publicamente suas discordâncias com Bolsonaro de maneira tão explícita como Mandetta. Na sua coletiva de despedida, nem sequer explicou os motivos da saída, mas mais uma vez ficou claro que Bolsonaro só aceita a manutenção de ministros que aceitem uma subordinação completa ao chefe. 

Em disputas que resultaram na queda de outros ministros, Bolsonaro conseguiu impor novos nomes que acabaram cumprindo ou silenciando sobre seus planos. A saída de Sergio Moro da Justiça marcou a entrada do até agora dócil André Mendonça, que não se opôs às trocas na Polícia Federal. A queda de Santos Cruz da Secretaria de Governo em junho de 2019, retirou do governo um crítico da rede de apoio radical do presidente na internet. No lugar, entrou Luiz Eduardo Ramos, que nunca mencionou o assunto

O desempenho de Teich era criticado por autoridades estaduais e membros da comunidade médica, em especial em relação à lentidão no aumento do número de testes e na compra de respiradores, mas esses fatores não parecem ter pesado no desgaste com Bolsonaro.

Entre os cotados para o lugar de Teich estão o general Eduardo Pazuello, que ocupa a secretaria-executiva na pasta. Mas, quem quer que seja o nomeado, parece certo que ele não durará no cargo se não estiver alinhado com o presidente nos temas abaixo: 

Procura-se um promotor da cloroquina 

Bolsonaro mencionou a cloroquina pela primeira vez em 21 de março, dois dias depois de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, falar sobre o fármaco. Fã declarado do americano, o brasileiro logo abraçou com entusiasmo o remédio, normalmente usado no tratamento da malária, artrite e lúpus.

Mesmo antes de Trump falar da droga, o suposto potencial da cloroquina já vinha sendo propagado em círculos de extrema direita na internet que promovem teorias conspiratórias e desconfiança contra o establishment científico.

Para Bolsonaro, a existência de um suposto tratamento eficaz se encaixou na sua estratégia de instar os brasileiros a voltar ao trabalho. "Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. E isso a pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema", disse nesta sexta o ex-ministro Mandetta ao jornal Correio Braziliense. 

Transformada em arma política, a cloroquina ainda não demonstrou sucesso em estudos pelo mundo. Duas pesquisas recentes não encontraram relação entre o uso e a redução da mortalidade pela covid-19 e também apontaram para efeitos colaterais graves. Por conta de resultados assim, a Organização Mundial da Saúde continua a apontar que "não há tratamento específico para a doença causada pelo novo coronavírus".

A falta de comprovação científica não inibiu Bolsonaro, que ainda em março transformou a cloroquina em um novo tema da sua "guerra cultural". No dia 29 de março, ele afirmou que a droga seria uma "cura". "Deus é brasileiro, a cura tá aí", disse. "Está dando certo em tudo que é lugar." Ele também apareceu segurando caixas do remédio, o que provocou uma corrida às farmácias.

Bolsonaro ainda usou um pronunciamento em cadeia nacional para promover a droga e ordenou que os laboratórios das Forças Armadas passassem a produzi-la em larga escala. Nas redes sociais, membros do seu círculo radical e apoiadores passaram a atacar figuras que pediam cautela na adoção generalizada, afirmando que eles "torciam pelo vírus". Alguns apoiadores subiram a hashtag #RemédiodoBolsonaro. No meio dessa discussão, temas como falta de respiradores, leitos de UTI e outras medidas parecem ter ficado em segundo plano nas prioridades do presidente.

Mandetta, o antecessor de Teich, não compartilhava o entusiasmo de Bolsonaro pelo remédio. No final de março, ele afirmou que a cloroquina não era "uma panaceia" e advertiu sobre os riscos de automedicação. Nos bastidores, ele também resistiu a endossar um decreto que estava sendo preparado pelo Planalto para liberar profissionais da saúde e pacientes graves da doença a usar a cloroquina. 

Ele chegou a ceder um pouco. No dia 7 de abril, apontou que médicos poderiam prescrever cloroquina desde que eles se responsabilizassem. Não foi suficiente. As diferenças sobre a cloroquina e outros pontos acabaram provocando a queda de Mandetta. 

Nas últimas semanas, Trump deixou de lado seu entusiasmo inicial pela cloroquina e parou de mencionar o remédio. Bolsonaro chegou a seguir o exemplo por alguns dias na segunda metade de abril, mas a queda de braço com Teich escancarou que continuou um entusiasta do remédio. Nos últimos dias, passou a cobrar a adoção de um protocolo para que o medicamento seja ministrado também para os casos leves da covid-19.

Na terça-feira, Teich expôs sua posição (e pareceu selar o seu destino) ao advertir sobre os riscos da cloroquina no Twitter. "Um alerta importante: a cloroquina é um medicamento com efeitos colaterais. Então, qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica", escreveu. 

Nesta sexta-feira, antes da saída de Teich, Bolsonaro já havia avisado que o protocolo sobre uso da cloroquina no tratamento de pacientes com covid-19 seria alterado para se adequar à sua visão.

Contra o isolamento social

No início de março, quando o Brasil passou a registrar as primeiras mortes por covid-19, governadores e prefeitos brasileiros impuseram medidas drásticas de isolamento, como proibição de viagens interestaduais e fechamento do comércio. No início da segunda quinzena de março, Bolsonaro já começou a afirmar que as medidas prejudicariam "o trabalhador" e que os governadores estavam sendo levados pela "histeria". 

Nas redes sociais, apoiadores do presidente, instigados por contas ligadas à família Bolsonaro, passaram a pedir o impeachment de governadores e a organizar carreatas para pedir o fim das medidas de isolamento. O presidente chegou a falar por vídeo com os participantes de uma carreata em Manaus.

A campanha se intensificou no final de março, quando Bolsonaro transformou sua oposição às medidas de isolamento estaduais em ações sistemáticas, passando a visitar lojas e provocar aglomerações no Distrito Federal. Nas ocasiões, defendeu repetidamente que a população voltasse ao trabalho. O primeiro passeio, em 29 de março, ocorreu logo depois de o então ministro Mandetta reforçar, em coletiva, que a população ficasse em casa.

Bolsonaro vem defendendo uma forma de isolamento parcial (ou vertical), que incluiria apenas idosos e pessoas com doenças crônicas, uma medida que vai na contramão das ações que vêm sendo tomadas pelos países mais atingidos pelo coronavírus. O presidente chegou a afirmar friamente em que "alguns vão morrer", mas que não se pode "parar uma fábrica de automóveis porque tem mortes no trânsito". 

Mandetta chegou a endossar algumas críticas de Bolsonaro aos governadores, afirmando que qualquer medida drástica, como fechamento de rodovias, não poderia ser tomada unilateralmente, e no início de abril chegou a dizer que o isolamento poderia ser afrouxado em locais onde o sistema de saúde não estivesse sob pressão. Por outro lado, nunca adotou a mesma retórica incendiária do presidente e nunca defendeu o isolamento vertical. O então ministro também desafiou o presidente ao defender medidas de distanciamento social e afirmar que a população deveria ouvir os governadores.

Teich, o sucessor de Mandetta, foi nomeado para encontrar uma fórmula de enfrentamento da pandemia que conciliasse a continuidade da economia. Ele disse na posse que havia um "alinhamento completo" entre ele e Bolsonaro, mas logo passou a sinalizar divergências e reconheceu a eficácia de medidas de isolamento. "Não tem como ter liberação de isolamento quando há uma curva em franca ascendência", disse no final de abril. No início de maio, disse que o "lockdown", o tipo de isolamento mais duro, poderia ser necessário em alguns lugares.

Minimizar a pandemia

Bolsonaro já chamou a covid-19 de "gripezinha" e "resfriadinho" e classificou a pandemia de "histeria". Em março, ele também pôs em dúvida, sem apresentar qualquer prova, o número de casos do novo coronavírus no estado de São Paulo, que lidera o número de mortes no país. "Não tô acreditando nesses números de São Paulo", disse em entrevista à TV Bandeirantes. "Para nós, aqui no Brasil, pode ser que não seja tudo isso que aconteceu em alguns países"

Ele também já disse, novamente sem apresentar provas ou qualquer estudo, que a maioria das mortes na Itália, um dos países mais atingidos pela pandemia no mundo, "não tiveram nada a ver com o vírus".

Quando Mandetta ainda ocupava a pasta de Saúde, as redes ligadas à família Bolsonaro criticavam o ministério por não destacar o número de "curados" da covid-19. Recentemente, a Secretaria de Comunicação do Planalto passou a divulgar um "Placar da Vida" para chamar a atenção para esses números. Membros do governo continuam a usar a internet para questionar a quantidade de mortes.

Nesta sexta-feira, uma coletiva do Ministério da Saúde liderada pelo Walter Braga Netto, tentou vender a versão de que o país tem proporcionalmente bem menos mortes do que vários países europeus afetados pela pandemia, como se a situação não fosse tão ruim e o governo estivesse no caminho certo. 

No final de março, Mandetta, sempre sob pressão de Bolsonaro, chegou a abraçar rapidamente a cartilha bolsonarista, afirmando que a imprensa era "sórdida" por supostamente só publicar notícias negativas, como "óbitos". "Nunca vai ter que as pessoas estão sorrindo na rua. Senão, ninguém compra o jornal". Ele se desculpou depois e logo voltou a destacar a gravidade da pandemia.

Com Teich, também houve um desalinhamento em vender "boas novas". No início de maio, Teich admitiu que o Brasil poderia chegar a marca de mil mortos por dia. No fim de semana em que o Brasil superou a marca das 10 mil mortes, ele foi o único membro do governo a se manifestar, citando o a "tristeza e sofrimento" após a "terrível marca" ter sido atingida. Bolsonaro, em contraste, passeou de jet ski no mesmo fim de semana e só comentou o assunto na última segunda-feira, aproveitando a ocasião para afirmar que mais mortes vão acontecer se a economia permanecer parada.