Sem esse alerta ligado, novamente o país testemunhará a democracia brasileira a caminho da UTI. E, talvez, sem respiradores e oxigênios democráticos, a morte cobrará caro o seu preço. Portanto, que continuemos resistindo e lutando pelo respeito ao “outro” e pelo fortalecimento das instituições democráticas.
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(Imagem: Agência Brasil) |
O ano é 2020. São 35 anos de redemocratização e 32 anos da Constituição de 1988. Um inimigo invisível, destruidor e extremamente contagioso mobiliza diversos países para combatê-lo: o novo coronavírus (Covid-19). No Brasil, a expectativa seria de união e consenso em torno desse combate. Mas, ledo engano.
Durante a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a já desgastada democracia brasileira sofreu novos e sucessivos abalos sísmicos, com a diferença de os tremores desses abalos não terem sido por causas naturais, mas oriundos da própria ação humana, através do discurso de ódio, da pregação da intolerância, do enfraquecimento das instituições, da ameaça e agressão ao diferente, e do culto messiânico à pessoa alçada à condição de mito político.
Nas últimas semanas, acompanhamos quatro episódios que sinalizam esse processo de erosão da democracia no país: a) “manifestações” em favor do presidente da República, Jair Bolsonaro, com pedidos de fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), e, também, pedido de volta do AI-5, além dos ataques demonizadores à liberdade de imprensa; b) em Brasília, enfermeiros, trajando jaleco e segurando uma cruz, faziam um ato simbólico em homenagem aos colegas – que morreram de coronavírus, exercendo a função no combate a essa pandemia – e em favor de melhores condições de trabalho e de defesa do isolamento social, quando foram agredidos por “militantes” bolsonaristas; c) profissionais da imprensa, que faziam a cobertura jornalística da última manifestação em apoio ao presidente da República, foram agredidos e expulsos do local, por esses manifestantes; d) o juiz da Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís, Douglas de Melo Martins, que determinou o “lockdown” na Ilha, foi ameaçado de morte por causa da decisão proferida.
Sabe-se que a liberdade de expressão e de manifestação são direitos fundamentais consagrados. Entretanto, no Brasil, o que se observa é que uma parcela da população mergulhou numa escalada autoritária do exercício impositivo do pensamento único, em que o divergente bom é o divergente morto. E tudo isso na lógica da construção e fabricação de grandes inimigos, quer pessoais quer institucionais.
No campo dos inimigos pessoais, o modo operacional consiste em perseguições, ameaças, agressões, destruição de reputação, produção de fake news, e toda uma logística de milícia digital (com o emprego de robôs), nas mídias sociais, para cancelar a pessoa. E, na esfera dos inimigos institucionais, impera o discurso de ataque, demonização e esvaziamento das instituições democráticas (ex: Poder Judiciário, Poder Legislativo, Imprensa etc.), aliado à paranoia e às teorias conspiratórias de que as instituições que não se alinham ao referido pensamento único estariam contra o país (não seriam “patriotas”) e a serviço do “establishment”.
Esses operadores do pensamento único, com forte culto à personalidade de um líder político, além de tentarem instaurar um Ministério da Verdade (George Orwell) que cria e controla uma narrativa totalitariamente homogênea de ver o mundo, apelam a uma lógica de disseminação do medo para poder administrá-lo em seguida, ou seja, produz-se o medo na satanização do inimigo, no sentido de fazer a gestão desse medo, para depois encarnar o posto de antídoto para combatê-lo. São os autoproclamados detentores da Verdade. Daí vem o frequente uso politicamente distorcido da passagem bíblica, em João 8:32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”.
A democracia brasileira, então, tem sido inundada por essa parcela da população que, autoritariamente, deseja a implosão da pluralidade e da divergência, numa linguagem de guerra, cercada pela estética da violência. Nessa visão, quem não se submete a esse script do Ministério da Verdade tem que ser neutralizado, silenciado ou eliminado. Todos os dias vemos esse modo de pensar e de agir nos grupos de WhatsApp, no Instagram, no Facebook e no Twitter.
São pessoas que encaram o diferente na condição de herege, assim como no posto de traidor quem já rezou a cartilha e não segue mais. E, uma vez instaladas no poder, essas pessoas podem ser capazes de justificar e naturalizar atrocidades em nome de um ideal “purificador” perseguido.
Lembra-me Giordano Bruno (1548-1600), que foi julgado por heresia, torturado e queimado vivo, até à morte, pela “Santa Inquisição”. Seu pecado foi pensar, ser alguém à frente de seu tempo e defender ideias que desafiavam um consenso que sustentava o poder do pensamento único da Igreja, à época. O historiador Francisco Marshall diz que Giordano Bruno defendia a tese cosmológica sobre o infinito do universo e dos mundos, e questionava o geocentrismo. Em termos simples, não concordava que a Terra fosse considerada o centro do universo e pensava na possibilidade de existência de vários “planetas”.
Desse modo, a liberdade do pensamento não pode ser interditada e anulada. É saudável o exercício da crítica a qualquer pessoa ou instituição. Mas, discurso de ódio e de intolerância, ameaças e agressões são inaceitáveis. É preciso refletir sobre essa retórica de fúria no cenário brasileiro, pois, inevitavelmente, uma hora a panela estoura e redunda em atos de violência. A história é fértil em exemplos nesse sentido. Por isso, todas essas táticas autoritárias precisam ser denunciadas; e os seus autores, identificados e responsabilizados.
Tudo isso, com mais razão ainda, num país que tem uma estrutura de democracia pendular, conforme afirma o cientista político, Leonardo Avritzer, em seu livro: “O pêndulo da democracia”, alternando momentos de expansão democrática e regressão democrática, sobretudo desde 1946, além da conjuntura de ruptura nesses movimentos pendulares em que, embora ocorram em períodos diferentes, há reconexões de componentes não democráticos entre um período e outro.
Assim, se mais pessoas embarcarem nessa lógica autoritária e violenta (tanto no campo do discurso como no campo da ação), a história, mais uma vez, não terá ensinado o perigo do crescimento desses fluxos de extermínio do “outro”, bem como das instituições democráticas. Sem esse alerta ligado, novamente o país testemunhará a democracia brasileira a caminho da UTI. E, talvez, sem respiradores e oxigênios democráticos, a morte cobrará caro o seu preço. Portanto, que continuemos resistindo e lutando pelo respeito ao “outro” e pelo fortalecimento das instituições democráticas.
*Bruno Antonio Barros Santos é defensor público do Estado do Maranhão
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