"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.
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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Novo Ministro da Educação segue a tradição bolsonarista de mentir sobre currículo

Carlos Decotteli, novo ministro do MEC, mentiu sobre doutorado na Universidade de Rosário, negado pelo reitor da instituição. Ele seguiu os passos de Salles e Damares, que também mentiram no currículo

Por Redação 
 Jair Bolsonaro e Carlos Decotelli
Na apresentação do novo ministro à frente do MEC, Carlos Decotelli, Bolsonaro afirmou que o economista era bacharel em Ciências Econômicas pela UERJ, Doutor pela Universidade de Rosário, na Argentina, e Pós-Doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha.

No entanto o Reitor da Universidade de Rosário publicou em suas redes sociais uma nota, esclarecendo que não reconhece diploma de doutor do novo ministro da universidade.

Franco Bartolacci, o reitor, publicou: "Nos vemos na necessidade de esclarecer que Carlos Alberto Decotelli da Silva não obteve nenhuma titulação de doutor na Universidade Rosário mencionada nesta comunicação"

Carlos Decotelli não é o primeiro ministro de Bolsonaro a mentir em seu lattes. Damares, havia declarado que era “mestre em educação e em “direito constitucional e direito da família”, e quando confrontada, disse que “Diferentemente do mestre secular, que precisa ir a uma universidade para fazer mestrado, nas igrejas cristãs é chamado mestre todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico”.

Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, é outro que mentiu no curriculo. Ele se dizia mestre em direito público pela Universidade de Yale, nos EUA. A instituição desmentiu o ministro, que depois disse que foi “erro de comunicação”

Carlos Decotelli é militar, oficial da Marinha, e se diz alinhado com a “guerra cultural”, que agrada o bolsonarismo e o olavismo. Mais um ministro que chega com polêmicas e mentiras.




quarta-feira, 24 de junho de 2020

Aos profissionais da saúde. Por Régis Barros

“Não tem dó no peito, não tem jeito, não tem coração que esqueça, não tem ninguém que mereça...” (Bicho de Sete Cabeças – Geraldo Azevedo)

*Por Régis Barros 
Eu preciso homenageá-los! Chegamos à marca de 50.000 mortos pela pandemia da COVID-19. Infelizmente, esse número tende a aumentar. Isso será inevitável. Dentro das estatísticas, uma também merece destaque – somos o país com o maior número de profissionais da saúde que morreram em decorrência da COVID-19. Tão triste! Tão angustiante! Quem luta na linha de frente acaba por ficar exposto. Por vezes, nem EPIs dispomos. Por vezes, nem testados somos, como se recomenda as autoridades sanitárias. A despeito disso, estamos lá. Sim, há uma função missionária. É nessas horas que nos emponderamos num desejo real de tentar ajudar quem precisa de ajuda. Temos família e pessoas queridas, sentimos medo, somos sufocados pela incerteza e choramos diante do caos e da falta de empatia. Somos humanos. Somos de carne e osso. Temos sentimentos. No entanto, diante da dor, não hesitamos em continuar a lutar. Continuaremos a despeito da pobreza de empatia e da tragédia governamental que nos assola. Aos colegas profissionais da saúde, que nos deixaram pela doença, resta-me agradecer. Que meus sentimentos fraternais de amor possam tocá-los em espírito e que possam tocar no coração dos seus familiares e amigos. Acredito nisso, ou seja, que podemos intercambiar amor e energia. Portanto, que esse meu sentimento de gratidão e agradecimento possa chegar até vocês. Muito obrigado por tudo! Continuaremos daqui a luta. Ainda não há data para o fim dela. É possível que outros de nós tombem também, porém, da mesma forma que vocês, continuaremos.

Um beijo de agradecimento no coração de vocês...

*Régis Barros é Médico Psiquiatra, mestre e doutor em saúde mental


Discurso de ódio e o Supremo diante da Esfinge: decifra-me ou te devoro! Por Tânia Maria Saraiva de Oliveira

Cabe ao Supremo Tribunal Federal estabelecer os parâmetros entre discurso de ódio e liberdade de expressão, com vistas a sedimentar uma jurisprudência que esteja de acordo com os pilares do estado democrático de direito e da democracia. Liberdade de opinião e de manifestação que sirva a mobilizar hordas para a destruição da democracia não pode se qualificar dentro da liberdade de expressão, justamente uma conquista democrática.

Cabe ao STF decidir os parâmetros entre discurso de ódio e liberdade de expressão - Carlos Alves Moura / STF
"Não é que não há mais pudor na ignorância, na estupidez e na defesa da violência. Há orgulho"

O ódio está nas ruas. Literalmente falando.

E não se trata, aqui do discurso que pode ser definido apenas como a expressão cujo conteúdo ofende a honra ou a imagem de grupos sociais, especialmente minorias, ou prega a discriminação contra os integrantes desses grupos. Mas de um problema que se relaciona com a intolerância, a impossibilidade da aceitação do outro, da divergência, da pluralidade. E nesse caminho, rejeita o funcionamento normal das instituições democráticas, quando as decisões não correspondem ao que desejam determinados atores.

O debate está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Não por outro motivo senão porque foram os próprios juízes da Corte atingidos por "militantes” em defesa do fechamento das instituições, pela volta da ditadura civil-militar, pela decretação de novo Ato Institucional nº 5, com ofensas e ameaças às suas vidas e às de suas famílias.

O Inquérito nº 4.871, apelidado de inquérito das fake news, foi aberto em março de 2019, por ordem do presidente Dias Toffoli, com esteio no artigo 43, do Regimento Interno do STF, para apurar ameaças contra os ministros do Supremo e, desde o início, despertou críticas. O julgamento da ação que questionou a legalidade e constitucionalidade da investigação foi finalizado no dia 18 de junho último, com um único voto contrário, do ministro Marco Aurélio.

Quais os limites?

Vivenciamos um problema que assola a sociedade em sua complexidade. Um tema que perpassa o Direito e a Política. A interpretação dos discursos extremistas, que transpõem o plano mental e abstrato para o plano concreto, impõe verificar como o choque de princípios que coloca de um lado a liberdade de expressão e de outro o respeito pela dignidade humana e pela tolerância, como pedras angulares de uma sociedade democrática e plural é apenas aparente.

De fato, a proteção constitucional conferida à liberdade de expressão foi afirmada pelo poder constituinte originário como forma de garantir a democracia. A liberdade que todo cidadão tem de expressar suas opiniões, sejam quais forem, sobre qualquer assunto, compõe o valor fundante da liberdade em si mesma, como valor ético e direito político.

Por seu turno, o ódio é o alimento da falta de empatia, para além da indiferença. Dá voz a impulsos que proclamam o desejo de exterminar o outro do espaço público, pela incapacidade de tolerar a divergência. É quando a opinião ou as escolhas do outro transformam-se numa impossibilidade de suportar que ele exista, determinando a necessidade de que seja eliminado, seja fisicamente, como nos homicídios por homofobia ou preconceito racial, seja simbolicamente, extirpando-o do exercício de sua cidadania ou cargo público.

A liberdade é um bem inestimável, que deve conviver com outros valores éticos fundamentais, como corolário do princípio de que no direito nada é absoluto. O direito geral de liberdade funciona como um princípio de interpretação e integração das liberdades em espécie, e de identificação de liberdades implícitas na ordem constitucional.

O período mais contemporâneo tem acirrado a discussão sobre o uso da liberdade de expressão para ferir direitos constitucionalmente consagrados de outrem, o que atrairia limitação para atender aos demais valores que com a liberdade se chocam. Definir que critérios devem ser seguidos para decidir pela demarcação, ou não, do direito à liberdade, é tarefa sensível sob diversos pontos de vista, inclusive o jurídico.

O papel do Supremo

As manifestações de ódio, que se pulverizam e se ampliam sobremaneira com mensagens ofensivas e discriminatórias nas redes sociais e extravasa para as ruas, em cartazes, reivindicações e palavras de ordem, levam a condutas discursivas diversas que tornam a possibilidade de dar tratamento único ao problema muito difícil. Contudo, a análise do problema no plano jurídico não pode mais utilizar a dificuldade de formatar limites como mote para não apreciar como tese capaz de orientar decisões do Poder Judiciário em suas diversas instâncias. É preciso estabelecer o recorte, em que circunstâncias determinado discurso está, ou não, ao abrigo do princípio da liberdade de expressão ou se pode ser objeto de limitação jurídica.

Em período contemporâneo temos assistido no Brasil, com ênfase ao período pós-eleitoral de 2018, o uso de mídias sociais para espalhar ódio contra oponentes, contra instituições, personalidades públicas, propiciando a desqualificação do estado democrático de direito. Pensamentos que antes escondiam-se nas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se coletivo. Finalmente era possível falar tudo, gritar tudo. O que passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade. Tudo operado em nome da Pátria, da Família e de Deus, evidentemente.

O ódio, em tempo de pós-verdade, deixou de ser algo a ser reprimido e trabalhado para ser ostentado. Expor os desejos mais primitivos em relação ao outro, mesmo que seja retirar-lhe direitos individuais ou mesmo a vida, anda lado a lado com as declarações de não saber, de não querer saber e de achar que não precisa saber. Porque a verdade não se pauta em fatos, dados, pesquisa, nada disso, apenas no que se afirma. Não é que não há mais pudor na ignorância, na estupidez e na defesa da prática de violência. É que há orgulho.

Cabe, nesse ponto, ao Supremo Tribunal Federal estabelecer os parâmetros entre discurso de ódio e liberdade de expressão, com vistas a sedimentar uma jurisprudência que esteja de acordo com os pilares do estado democrático de direito e da democracia. Liberdade de opinião e de manifestação que sirva a mobilizar hordas para a destruição da democracia não pode se qualificar dentro da liberdade de expressão, justamente uma conquista democrática.

Foi nesse sentido que a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) apresentou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) requerendo que a Corte suprema, que possui a missão precípua de interpretar e fazer aplicar a Constituição Federal, estabeleça os parâmetros e a pertinência de critérios jurídicos que sirvam como base para a correta criminalização do discurso de ódio, como a harmonização das leis pátrias com os inúmeros tratados internacionais de que o Brasil é signatário, sem descuidar da legitimidade do direito à liberdade de expressão.

O Supremo Tribunal Federal precisa agir como a Corte capaz de analisar o problema para além dos umbigos de seus juízes, afetados em sua honra, ameaçados em sua integridade física e moral, atuando para ofertar uma resposta corporativa, atingidos pela onda que supõe que o direito ao ódio e à eliminação do outro são soberanos.

A resposta de quais os limites da liberdade para a prática de ódio é um desafio. Um desafio que não pode mais ser evitado, de cuja resposta depende a abertura da travessia para o reencontro com a estabilidade democrática no Estado de Direito. Assim como a secular tradição filosófica do ocidente dada pela vitória de Édipo sobre a Esfinge, é possível criar uma trajetória interpretativa, baseada em valores e princípios. A escolha é decifrar ou ser devorado.

(Edição: Rodrigo Durão Coelho)

*Advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb - GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD



As águas do Brasil, de novo ameaçadas. Por Amauri Pollachi

Senado tenta hoje (24/6), mais uma vez, privatizar serviços de água e esgoto. Enquanto grandes cidades do mundo reassumem controle sobre seus mananciais, país pode desmontar empresas de excelência e criar oligopólio privado

Reservatório da Sabesp (SP). Mundialmente conhecida por sua capacidade técnica, estatal ficará ameaçada, se projeto do governo for aprovado
Quais interesses estão por trás da atuação em favor da rápida aprovação do Projeto de Lei (PL) 4.162, de 2019, que tramita no Senado Federal? Na prática, esse projeto viabiliza um oligopólio privado nos serviços de água e esgoto, alavancando exponencialmente a privatização do saneamento básico brasileiro. O seu conteúdo, trazido das arquivadas MP 844/2018 e MP 868/2018, está longe de ser um consenso entre parlamentares e grande parte das entidades de representação atuantes no saneamento, dos municípios e dos estados.

As dificuldades enfrentadas no acesso ao saneamento básico não se relacionam com a necessidade de alteração da Lei nº 11.445, de 2007, que definiu as diretrizes para o setor, como pretende o PL 4.162. Essa lei, inovadora por estabelecer o marco para o saneamento básico após vinte anos sem qualquer orientação, ofereceu condições para que o setor tivesse avanços positivos e expressivos em todos os seus indicadores desde 2007. Ainda há muitos desafios a superar. Entretanto, é um enorme erro apontar, muitas vezes manipulando dados, que os problemas no saneamento residem na prestação de serviços por entes públicos. Os argumentos a favor do PL 4.162/2019 deliberadamente esquecem do desempenho do setor privado no saneamento, com péssimos resultados na prestação dos serviços, por exemplo, nos municípios de Manaus (AM), Itu (SP) e no Estado do Tocantins. Em suma, abrir espaço para os negócios privados à custa do desmonte de autarquias e empresas estaduais e municipais de saneamento básico, tal como induz o malfadado projeto de lei, não é a solução para a universalização de água e esgotos a preços compatíveis com a condição social da população.

Aliás, é falsa a argumentação de que a legislação atual impede a atuação do setor privado no saneamento, pois ela já dispõe de formas de participação mediante concessão total ou parcial, subconcessão, PPP, alienação total ou parcial dos ativos, emissão de debentures e locação de ativos, entre outras.

Os municípios brasileiros, sobretudo os menores, necessitam de apoio técnico e financeiro para o planejamento e a expansão dos seus sistemas. É inconcebível que o saneamento básico, setor essencial para o desenvolvimento socioeconômico, não disponha de um fundo nacional para viabilizar a universalização e não proporcione subsídios diretos e indiretos à população carente e mais vulnerável, a exemplo de outros setores (energia, telefonia e transporte público) e da experiência em diversos países.

Por décadas, o saneamento amargou a ausência das culturas de planejamento, de regulação e de fiscalização e, principalmente, de aportes regulares de recursos públicos, fato que somente começou a reverter-se no século XXI. Ainda, é notória a ausência de integração com políticas públicas de habitação, saúde, recursos hídricos, meio ambiente e planejamento urbano.

Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), de 2019, entre 2003-2017, o Governo Federal disponibilizou R$166,1 bi [1], entre recursos onerosos e não onerosos. Para atender toda a população brasileira em abastecimento de água e esgotamento sanitário são necessários R$ 357,15 bilhões [2] para as áreas urbana e rural, sendo R$ 142,15 bilhões para água e R$ 215 bilhões para esgoto, incluindo recursos para implantação, ampliação e reposição.

A ampla e irrestrita privatização não vai melhorar a gestão e trazer os investimentos necessários à universalização dos serviços de água e esgoto. A alavancagem do setor de saneamento por meio de financiamentos com agentes nacionais ou internacionais pelo tomador público ou privado será sempre limitada pela capacidade de geração de recursos dos ativos dos prestadores de serviço. As experiências nacionais e internacionais demonstram que a expectativa de aportes elevadíssimos de recursos privados carece de sustentação em fatos e dados, pois se deve avaliar a remuneração deste capital a partir dos excedentes econômicos gerados no setor.

Manaus, após 20 anos de gestão privada, tem 12,5% de coleta de esgotos e mais de 600 mil pessoas sem acesso à água. O Instituto Trata Brasil coloca o saneamento de Manaus – 6° maior município brasileiro – em 96º lugar entre os 100 maiores municípios do país [3]. Não por acaso, as regiões da cidade mais assoladas pela Covid-19 são as mais desassistidas em saneamento básico. Este estudo também aponta que as dez melhores cidades são operadas por autarquias ou empresas públicas e apresentam indicadores elevadíssimos de atendimento.

Estudo publicado em maio de 2020 pelo Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, mostra que 1.408 municípios de 58 países, nos 5 continentes, reestatizaram seus serviços, sendo que 312 municípios na área de água e/ou esgoto de 36 países entre os anos de 2000 e 2019. Encontram-se casos emblemáticos na Alemanha, nos EUA, no Canadá, na Espanha e na França, país onde 152 municípios, inclusive Paris, sede das duas maiores empresas multinacionais que atuam setor [4], tiveram os serviços remunicipalizados. A reestatização deveu-se: às falsas promessas dos operadores privados; à prevalência do interesse do lucro sobre o interesse das comunidades; ao não cumprimento das metas contratuais de investimentos e expansão e universalização principalmente das áreas periféricas e mais carentes; aos aumentos abusivos de tarifas; e a deficiência dos órgãos reguladores para garantir regras contratuais, impedir aumento abusivo das tarifas e punir as empresas.

Não se trata de corporativismo, mas da garantia do acesso aos serviços de saneamento básico para toda a população, inclusive aquela que não tem condições de pagar integralmente pelos serviços, não pode ser submetida aos interesses privados, aonde o lucro vem em primeiríssimo lugar. O saneamento não pode prescindir de uma forte atuação dos operadores públicos estaduais e municipais.

Não será por meio do PL 4.162, de 2019, que virá o “remédio” que trará a universalização. Ele servirá, isso sim, para desestruturar completamente o setor, ampliar a exclusão social da população na periferia das grandes cidades, nos pequenos municípios e na zona rural e provocar profunda insegurança jurídica que jogará o saneamento para a estagnação. Será um verdadeiro desastre. Um remédio que vai matar o doente.

1 Dados Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal – SIAFI e do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS

2 Valores atualizados pelo IGP-DI (FGV) para dezembro de 2017.

3 http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/ranking_2020/Relatorio__Ranking_2020_18.pdf

4 www.tni.org/en/futureispublic


*Mestre em Planejamento e Gestão do Território e conselheiro do ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento)



quinta-feira, 18 de junho de 2020

Fascismo, loucura e o delírio autoritário no Brasil, por Marcia Noczynski

Sem freios, pensamento crítico, compromisso ético ou alguma empatia, os fascistas, simpatizantes, flertantes e aspirantes ao fascismo nunca se sentiram tão em casa.

*Por Marcia Noczynski | Artigos - GGN
Há duas semanas, o Coletivo Iniciativa Alemã Lula Livre conversou com a filósofa e escritora Marcia Tiburi sobre o tema “Psicopoder e loucura no Brasil atual”, na tentativa de discutir e entender a crescente onda fascista que se instalou no Brasil. Para a filósofa, o alarme do fascismo havia soado há mais tempo, antes mesmo do Golpe político que retirou Dilma Rousseff da Presidência da República, em 2016, nos discursos ou ações com sinais de configuração subjetiva idêntica às das personalidades fascistas. Seu livro “Como conversar com um fascista” foi publicado em 2015.

No encontro com o nosso Coletivo, no entanto, Marcia apresenta um elemento a mais ao tema. Ela versa sobre a relação do fascismo com os sistemas demenciais. Sustentada pelo pensamento de Theodor Adorno (1903-1969), filósofo e sociólogo alemão, que formulou o conceito da Síndrome Autoritária, ela busca rastrear e definir a origem do campo fértil aberto ao fascismo na sociedade brasileira. Com muita responsabilidade teórica e empírica, a filósofa aponta sob qual registro e de que forma o fascismo foi introduzido em nossa cultura.

Em seu mais recente livro, “Delirio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação” (2019), a escritora elucida o termo psicopoder, um dispositivo que se utiliza das categorias do mundo psi como categorias políticas. À guisa de Adorno e sua afirmação de que os sistemas fascistas têm uma sensível intimidade com os sistemas demenciais, Marcia articula a radicalização dos extremismos de direita com a “loucura” coletiva no Brasil atual.

Ao conceber o mundo psi nas relações políticas, não poderia faltar na dissertação da filósofa uma alusão ao pai da Psicanálise. Extrai da obra de Freud, o caso de Daniel Schreber, paciente paranoico que o psicanalista jamais teve, mas a quem se autorizou a analisar e elaborar interpretações a partir da leitura acurada de sua autobiografia datada de 1903, e reuni-las, posteriormente, no livro “Notas psicanalíticas sobre o relato autobiográfico de um caso de paranoia” em 1911.

Mas que equiparação seria possível construir a partir do caso Schreber para se falar da situação política do Brasil? Aqui, entro eu, do lugar de psicanalista e me aventurando pelos ventos psis que Marcia veleja, naveguei um pouco mais a fundo em sua menção a Freud e ensaiei algumas suposições. Para tanto, é necessário que conheçamos um pouco da história familiar de Schreber, e quem sabe, com alguma alegoria, reconhecê-la em certos personagens e contextos do nosso picadeiro político.

Daniel Schreber nasceu em 1842 no seio de uma renomada família alemã. Seu pai, um educador tirânico e opressor, ganhou reconhecimento na sociedade alemã da época por ter criado um sistema educacional capaz de coibir os impulsos sexuais das crianças. Para difundir suas teorias criou as Associações Schreber e conseguiu reunir uma média de dois milhões de alemães interessados em praticar sua tese. Em seu principal livro “Ginástica Médica de Salão”, que atingiu quarenta edições, atestava que através da ginástica, do higienismo e da ortopedia nasceria um novo homem, puro, forte e sem os vícios mundanos.

O mais trágico é que o educador não se continha apenas com a propagação da sua teoria desumana. Uma das criações do pai de Schreber foi um aparelho ortopédico que impedia à criança tocar em seu corpo enquanto dormia. Essa engenhoca, ele testava nos próprios filhos. Schreber nunca conseguiu dizer não às barbáries do pai, ao contrário, dizia-se apaixonado e devoto ao progenitor como a um deus.

Interessa a nós, no momento, destacar que o surto paranoico de Schreber foi deflagrado bem mais tarde em uma situação em que também não conseguiu dizer não a uma autoridade. Aos cinquenta anos, foi convidado a ocupar o cargo de Presidente do Tribunal de Apelação em Dresden, posição que não se sentia capaz de sustentar, mas viu-se impelido a aceitar à revelia, pois rejeitar uma proposta daquele calibre seria uma heresia imperdoável para alguém que foi educado para ser o “novo homem”.

O sistema delirante de Schreber era circunscrito na figura de Deus. Acreditava, assim como o seu pai, que deveria criar um novo homem, perfeito como ele estava incumbido de ser e como o Criador. Seu delírio consistia então em ter o seu corpo transformado em uma mulher para poder copular com Deus. A partir desse cruzamento, o mundo seria povoado apenas por homens superiores.

Para Freud, o Deus a quem Schreber entregaria seu corpo para cópula, dentro de sua fantasia delirante, era o seu próprio pai, a quem admirava, temia e se achava em dívida, pois não havia se tornado o super-homem aspirado pelo pai. Não logrou ser o Presidente do Tribunal. Restava agraciar o pai com seus filhos supremos produto do coito com Deus.

No Brasil de hoje, qualquer semelhança ao caso clínico de Freud não é mera coincidência. Vivemos um momento “pai de Schreber”, em que temos no poder um tirano, que vilaniza seus filhos de todas as formas. Alguns já ousaram diagnosticar Bolsonaro como doente mental; psicopata, esquizofrênico, paranoico, louco varrido. Outros, simplesmente o identificam como um fascista dos mais sórdidos. Tiburi, assertiva, nos esclarece, “gente, as coisas não são excludentes”. Ele é louco e é fascista, e seu discurso é capaz de deixar o povo brasileiro em transe, provocar delírios coletivos de autoritarismo, como trajar símbolos do nazismo e do fascismo com segurança e acreditar na cegueira da sua ordenação delirante.

Em nome de Deus, Bolsonaro quando eleito, sem nenhum filtro crítico, anunciou que não estaria ali para construir nada, que seu negócio, ao invés, era destruir. Desejava refazer todo um projeto de país, baseado em seus princípios morais/mortais edificados em sua carreira fracassada no exército, seu porte atlético de ex paraquedista e seu passado de vinte e oito anos de privilégios em sua invisível vida política.

Bolsonaro tem orgulho de ser branco de origem europeia, de carregar sobrenome italiano, de frequentar o círculo dos militares, de suas atividades físicas, mas principalmente, de ser subletrado até o último fio de cabelo. Em sua ignorância sem paralelo, sente-se autorizado a sequestrar a consciência das pessoas, pois para ele o povo não passa de uma gentalha subalterna, um bando de miscigenados pobres e vagabundos, que precisam a passos largos melhorar como raça, do contrário, infelizmente, vão ter que morrer alguns inocentes.

Declaradamente racista, homofóbico, eugenista, misógino, Bolsonaro orienta o povo a quebrar o pacto civilizatório, a recusar a enxergar a realidade, a surfar nas ondas do fascismo, haja vista o seu apelo às pessoas invadirem os hospitais, o que foi obedecido. Mas por que uma insanidade dessas ganha corpo? O povo, inebriado com a possibilidade de se transformar nos homens super-heróis à imagem e semelhança do seu amo, não se intimida em sair dos patamares básicos da convivência democrática e buscar seu ninho no covil do fascismo.

O fascismo passa a se configurar um traço cultural, construído através de estratégias implantadas pelos criadores do Mito, isto é, pelas oligarquias financeiras, que têm interesse no avanço da ultra direita para poder sedimentar seu ideal de sistema político inescrupulosamente neoliberal. Eles atuam de maneira coordenada, são responsáveis pela indústria de fake News, pelos robôs, os conhecidos Bots do Bolsonaro, pela manutenção do gabinete do ódio, a cargo de Carlos Bolsonaro, e pelo aperfeiçoamento de todas as táticas disseminadoras de desinformação.

Hoje, os pensamentos, atos e falas fascistas não respeitam qualquer fronteira. O ódio está autorizado, legitimado, deve ser difundido e bastante exposto, pois além de tudo, para fazer parte da seita dos raivosos, é preciso também honrar o seu ódio. Como lembra Marcia, temos inclusive um novo tipo de fascismo a serviço, o fascismo ostentação.

Sem freios, pensamento crítico, compromisso ético ou alguma empatia, os fascistas, simpatizantes, flertantes e aspirantes ao fascismo nunca se sentiram tão em casa. Incentivados por seu mito e tementes a ele, ignoram que são usados para uma causa na qual estão sumariamente excluídos. Reagem com ódio irrefletido a qualquer um que se oponha ao seu delírio autoritário. Ameaçam, atacam, agridem, saqueiam a mínima possibilidade de convívio civilizado. Assim como seu mestre, não respeitam as diferenças, a alteridade, especialmente aquelas que fazem ressonância à fragilidade do homem comum.

Com esse cenário, afundamos dia a dia numa fascistização abissal, convertendo o que outrora o antropólogo Sérgio Buarque de Holanda havia se referido como povo cordial em seu oposto, em fantoches que permitem que os ovos do fascismo sejam gestados em seus corações, e diferente de Schreber que levou alguns anos até que seu delírio fosse deflagrado, nos brasileiros os ovos estragados eclodem diariamente. E isso já passou há muito do ponto de ser perigoso.

*Marcia Noczynski – Psicóloga e Psicanalista



Cadê o Bolsonaro?, por Fernando Brito

Bolsonaro está sumido porque este é o menor dano que pode causar a si mesmo, e nem mesmo isso o segura.

“Cadê o Queiroz?” foi a pergunta que mais se repetiu na política brasileira há um ano e meio.

Com a sua prisão hoje cedo, a pergunta é “Cadê o Bolsonaro?”

Porque é impossível que, tendo sido o ex-policial militar procurado preso na casa do advogado de seu filho e frequentador assíduo do gabinete e da residência presidenciais, o presidente tem de vir a público dar satisfações ao país.

Deveria, ainda que seja difícil explicar-se o seu alegado distanciamento de Queiroz depois de tantos anos de intimidade se o acoitador do ex-assessor era figura de sua intimidade.

Bolsonaro, que já perdia força em seus planos golpistas, é agora um presidente em perigo gritante.

Flávio, o único filho que parecia não estar ameaçado pelo processo das fake news, já é um cadáver insepulto.

O STF, a esta altura, já tem elementos para avançar sobre outros integrantes do núcleo familiar do presidente.

Sentado numa cela em Benfica, no Rio, há um personagem que só tem saída por uma delação premiada.

A alternativa de colocar tudo nas costas do advogado não parece promissora, por incrível.

Bolsonaro está sumido porque este é o menor dano que pode causar a si mesmo, e nem mesmo isso o segura.

Em poucos dias, deixou de ser o poderoso golpista para ser candidato à deposição.



Como o desespero de Bolsonaro mantém a República em suspense, por Andrei Meireles

Na ilusão de barrar o avanço das investigações, que atormentam sua família, Bolsonaro insinua um golpe militar. Mas sabe do risco que, se tentar, pode perder a cadeira presidencial para Mourão

(Foto: Orlando Brito)
Como as feras, toda vez em que se sente acuado, o clã Bolsonaro parte para o ataque. Essa suposta valentia não é prova de coragem. É medo. Investigações em Brasília, no Rio de Janeiro e em outros estados avançam nas apurações de variados crimes atribuídos à família Bolsonaro e a seus aliados. Quanto mais evoluem, mais pânico causam.

Desde o começo de seu mandato, Jair Bolsonaro vive atormentado por esses fantasmas. Quando o ministro Dias Tofolli, presidente do STF, em uma canetada, suspendeu as investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, o presidente achou que poderia respirar. Virou arara quando soube que o então ministro Sérgio Moro ponderou a Toffoli que havia exagerado na dose, ao atender o pedido do senador Flávio, e suspender todas as investigações país afora baseadas em relatórios do COAF. Só não demitiu Moro porque ali lhe faltou coragem.

Depois que o STF corrigiu essa bola fora de Toffoli, Bolsonaro voltou a ter surtos frequentes de nervosismo. Ele nunca conseguiu entender que, mesmo sendo presidente da República, não tem poder para blindar seus filhos e aliados de investigações autorizadas pela Justiça. Desde a Constituição de 1988, que redemocratizou o país, nenhuma blindagem funcionou para os poderosos que violaram as leis do país. Mesmo os que escaparam de punição, como o presidente Michel Temer, pagaram um preço alto. Não saíram impunes. A conta sempre chegou. Lula é um caso exemplar.

Após o Supremo liberar as investigações, a situação se deteriorou. De nada adiantou Bolsonaro escolher a dedo Augusto Aras para chefiar a Procuradoria-Geral da República, forçar a demissão de Sérgio Moro e emplacar um novo diretor-geral na Polícia Federal. Se esperava com essas mudanças uma blindagem contra as investigações que tanto o incomodavam, mais uma vez quebrou a cara.

Não aprendeu que as instituições do Estado têm uma lógica própria de funcionamento, sobreviveram às tentativas em outros governos de aparelhá-las. A Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça cumprem seu papel. O problema é que, mesmo depois de todas essa mudanças, ele continua se sentindo acuado. E diariamente vocifera no cercadinho do Alvorada.

Sua opção é apelar para as Forças Armadas. Seu principal programa nos fins de semana, além das manifestações antidemocráticas, é visitar quartéis do Exército e até da PM nas proximidades de Brasília. Mesmo depois do recado de generais da ativa, que efetivamente comandam as tropas, de que não bancam nenhuma aventura militar, manteve as mesmas ameaças. Diz, agora, que não vai ser o “primeiro a chutar o pau da barraca”, na narrativa de que os outros poderes, especialmente o STF, não o deixam governar.

Ao mesmo tempo em que faz o discurso de vítima, não pode passar pelo cercadinho de seus apoiadores na porta do Alvorada para subir o tom e fazer ameaças, veladas ou não, às instituições democráticas. Mantém assim mobilizados seus fanáticos seguidores, que parecem em contagem regressiva para um golpe militar, e deixa o país em suspense. “É igual a uma emboscada”, disse à noite. Pela manhã, foi mais explícito.”Eles estão abusando. Está chegando a hora de tudo ser colocado no lugar”.

A democracia resolveu dar um basta nisso. Nessa quarta-feira, esse constante tom de chantagem tomou um didático chega para lá na votação no STF sobre a legalidade do polêmico inquérito sobre as fake news, tocado pelo ministro Alexandre de Moraes.  O voto de cada ministro foi um libelo em defesa da democracia nesse placar parcial de 8 a 0. Só os maluquetes bolsonaristas apostam no eventual sucesso de alguma tentativa de virar a mesa no jogo democrático. Bolsonaro até que gostaria, mas sabe do risco que corre. O custo mais provável de uma aventura golpista seria perder a cadeira presidencial para o vice Hamilton Mourão.

O mais provável, portanto, é que ele continue nessa retórica de morde e assopra, para alimentar sua militância, e, na prática, continue abrindo espaço no governo para o Centrão, sua principal aposta contra seu impeachment, e fazendo acenos nos bastidores ao Supremo, como a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação.

A conferir.

*Repórter de Política há mais de 40 anos, Andrei Meireles passou pelas redações dos jornais O Globo e Jornal de Brasília, das revistas IstoÉ e Época, foi comentarista político do boletim diário da revista Época na rádio CBN e colunista do Fato Online. Um dos mais premiados jornalistas brasileiros, tem dois prêmios Esso (de Reportagem em 2000 e de Jornalismo em 2001) e três prêmios Embratel (de Jornais e Revistas em 2001 e 2004 e o Grande Prêmio Embratel Barbosa Lima Sobrinho em 2009).




sexta-feira, 12 de junho de 2020

DW: Bolsonaro recria Ministério das Comunicações

Extinta por Temer, pasta volta turbinada e passará a ser responsável pelo controle e distribuição das verbas publicitárias do governo. Ministro será deputado do "centrão" Fábio Faria, genro de Silvio Santos.

O presidente Jair Bolsonaro nega que ministério seja aceno ao "centrão"
O presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira (11/06) a recriação do Ministério das Comunicações, pasta que havia sido extinta durante o governo Michel Temer.

O ministério nascerá a partir da divisão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, hoje chefiado por Marcos Pontes e que vinha sendo alvo de cobiça de partidos do "centrão” em meio às negociações com Bolsonaro.

A pasta renasce turbinada: vai incorporar, por exemplo, as funções da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) e passará a ser responsável pelo controle e distribuição das verbas publicitárias do governo.

Atualmente, a Secom está nas mãos do publicitário Fabio Wajngarten, considerado um amigo dos filhos do presidente e que é ligado à chamada "ala ideológica” do governo.

O ministro será o deputado Fábio Faria (PSD-RN), genro do empresário Silvio Santos, dono do SBT. Seu partido é integrante do chamado "centrão", bloco de legendas com quem Bolsonaro vem negociando a formação de uma base de apoio no Congresso.

"Nesta data, via MP, fica recriado o Ministério das Comunicações a partir do desmembramento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações”, disse Bolsonaro no Facebook. Segundo o Palácio do Planalto, o novo ministério não aumentará as despesas.

As negociações com o "centrão" ganharam força ao mesmo tempo em que cresce a atenção em torno da possibilidade de um processo de impeachment contra Bolsonaro ou possível avanço de investigações contra o entorno do presidente. Integrantes ou indicados do "centrão", até então, ocupavam apenas cargos de fora do primeiro escalão do governo.

No final da noite de quarta, Bolsoanaro negou que o novo ministério seja uma sinalização ao "centrão" – ele disse, segundo o jornal Folha de S. Paulo, que "não teve acordo com ninguém" e que nem sabia de qual partido é Faria.

Na mesma fala, o presidente disse também que pretende privatizar o mais rapidamente possível a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que será incorporada ao novo ministério.

Ainda não foi divulgado todas as estruturas que serão transferidas para a recém-criada pasta. Mas a expectativa é que entrem nela pautas que já estavam sob sua tutela no governo Temer. Entre essas atribuições, a definição de políticas públicas dos serviços de telecomunicações (telefonia fixa, móvel e internet) e de radiodifusão (concessão de rádios e TVs).

RPR/ots



sábado, 6 de junho de 2020

“Não posso respirar”, por Frei Betto

Eu também. Não consigo respirar neste Brasil (des)governado por militares que ameaçam as instituições democráticas e exaltam o golpe de Estado de 1964, que implantou 21 anos de ditadura

*Por Frei Betto
Frei Betto (Foto: PUC)
Foram as últimas palavras de George Floyd: “Não posso respirar”. Eu também. Não consigo respirar neste Brasil (des)governado por  militares que ameaçam as instituições democráticas e exaltam o golpe de Estado de 1964, que implantou 21 anos de ditadura; elogiam torturadores e milicianos; acertam o “toma lá, dá cá” com notórios corruptos do Centrão; plagiam ostensivamente os nazistas; manipulam símbolos judaicos; tramam, em reuniões ministeriais, agir ao arrepio da lei; proferem palavrões em reuniões oficiais, como se estivessem num antro de facínoras; debocham de quem observa os protocolos de prevenção à pandemia e saem às ruas, indiferentes aos 30 mil mortos e suas famílias, como a celebrar tamanha letalidade.

“Não posso respirar” quando vejo a democracia asfixiada; a Polícia Militar proteger neofascistas e atacar quem defende a democracia; o presidente mais interessado em liberar armas e munições que recursos para combater a pandemia; o ministério da Educação dirigido por um semianalfabeto que ameaça reprisar a “noite dos cristais” dos nazistas, proclama odiar povos indígenas e propõe prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal.

“Não posso respirar” ao ver os comandantes das Forças Armadas calados diante de um presidente destemperado que não esconde ter como prioridade de governo a sua proteção e a de seus filhos, todos suspeitos de graves crimes e cumplicidade com assassinos profissionais.

“Não posso respirar” diante da inércia dos partidos ditos progressistas, enquanto a sociedade civil se mobiliza em contundentes manifestos de indignação e pela defesa da democracia.

“Não posso respirar” diante desse empresariado que, de olho nos lucros e indiferente às vítimas da pandemia, pressiona para a abertura imediata de seus negócios, enquanto os leitos hospitalares estão lotados e covas rasas se multiplicam nos cemitérios quais gengivas desdentadas de Tânatos. 

“Não posso respirar” quando, no Brasil e nos EUA, cidadãos são agredidos, presos, torturados e assassinados pelo “crime” de serem negros e, portanto, “suspeitos”. Falta-me ar ao ver João Pedro, um garoto de 14 anos, perder a vida dentro de casa ao levar um tiro de fuzil pelas costas, enquanto brincava com amigos. Ou entregadores de encomendas serem assassinados por policiais que nos consideram imbecis ao tentar justificar a morte de tantos civis desarmados.

“Não posso respirar” ao pensar que o bárbaro crime cometido contra George Floyd se repete todos os dias e permanecem impunes por não haver ali uma câmera capaz de flagrar assassinatos semelhantes. Ou ao ver Trump, do alto de sua arrogância, reagir aos protestos antirracistas ameaçando calar os manifestantes com o indiciamento deles como terroristas e a intervenção de tropas do exército.

Como oxigenar minha cidadania, meu espírito democrático, minha tolerância, ao me ver cercado por mimólogos da Ku Klux Klan; generais improvisados em ministros da Saúde em plena tragédia sanitária; manifestantes infringirem, impunes, a lei de segurança nacional; e a Bolsa de Valores subir, enquanto milhares de caixões baixam nas tumbas que recebem as vítimas da pandemia? 

Preciso respirar! Não deixar que sufoquem a sociedade civil, a mídia, a liberdade de expressão, a arte, os direitos civis, o futuro dessa geração condenada a viver esse presente nefasto.

Respiro, apesar de tudo, quando leio o que o estilista Marc Jacobs postou no Instagram depois de ter uma de suas lojas destruída pelos protestos em Los Angeles: “Nunca deixe que eles te convençam que vidro quebrado ou saque é violência. Fome é violência. Morar na rua é violência. Guerra é violência. Jogar bomba nas pessoas é violência. Racismo é violência. Supremacia branca é violência. Nenhum cuidado de saúde é violência. Pobreza é violência. Contaminar fontes de água para obter lucro é violência. Uma propriedade pode ser recuperada, vidas não.”

Faço meus os versos de Cora Coralina: quero “mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus ombros”. 

*Frei Betto é escritor, autor do romance histórico “Minas de Ouro” (Rocco), entre outros livros. Site: www.freibetto.org Twitter: @freibetto



sexta-feira, 5 de junho de 2020

“Rumorese”: A estratégia de controle mental mais sutil que opera em toda a sociedade

Um discurso em "rumorese" é composto de palavras vazias ou termos excessivamente ambíguos que são frequentemente contraditórios entre si.

Em “O Grande Ditador”, Hynkel, o personagem interpretado por Charles Chaplin, fala Grammelot, uma linguagem composta de sons, palavras e rumores que têm significado que, no entanto, outros parecem entender.

No romance “1984”, George Orwell se referiu a uma “linguagem neo” a serviço do sistema de controle, na qual todas as palavras consideradas “perigosas” para o regime foram eliminadas. O lema do partido é: “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”.

Na verdade, essa linguagem sem sentido, que fala muito sem dizer nada, se espalhou entre nós a uma velocidade vertiginosa, como uma epidemia real. O filólogo Igor Sibaldi chamou de “rumorese”. E é importante ser capaz de detectá-lo, porque – sem perceber e de maneira sub-reptícia – pode acabar restringindo nosso pensamento e, portanto, limitando nossas decisões de vida.

O que é rumorese?

Rumorese é falar muito sem dizer nada, é a “capacidade” de colocar uma palavra após a outra, rapidamente, sem se preocupar que a mensagem seja consistente, tenha significado ou valor. Um discurso em rumorese é composto de palavras vazias ou termos excessivamente ambíguos que são frequentemente contraditórios entre si.

Rumorese é, portanto, a linguagem de todos aqueles que querem se destacar, mas não têm nada importante para contribuir com o mundo. É também a linguagem daqueles que querem exercer controle sem recorrer à razão ou ao entendimento. É uma linguagem em que os sons prevalecem e o significado é óbvio.

Vivendo na sociedade da loquacidade

Nos tempos em que conta mais quantidade do que qualidade, não deve nos surpreender que falar muito sem dizer nada tenha se tornado a norma. Como Thoreau disse, “parece que o importante é falar com rapidez e não com bom senso”.

Quem não aprende esse idioma, mas fala de maneira sensata, pode ser visto com desconfiança pelos outros. Seu discurso será classificado como muito complicado e raro, porque exige uma capacidade de atenção e reflexão perdida.

Assim, discursos razoáveis, lógicos e coerentes tornam-se incompreensíveis para a maioria, uma maioria que foi convenientemente lobotomizada graças a uma educação sistemática à loquacidade.

De fato, para funcionar em certos contextos sociais e ter “sucesso”, muitas pessoas são forçadas a aprender a falar mais e dizer menos. Quem não se sente perdido, como um peixe fora d’água, como se fosse o único são em um manicômio, testemunhando uma cena absurda que se desenrola com extraordinária normalidade. Quem não fala esse idioma acaba, portanto, se sentindo marginalizado, excluído e raro.

O “rumorese” cria o absurdo que nos lobotomiza

“Estamos prontos para fazer as modificações necessárias, de uma justiça por parte do cidadão, implementando reformas que não modificam o processo em andamento …”

Essas palavras, tiradas de um jornal, podem nos parecer familiares, uma vez que fazem parte dos rumores políticos, embora seja verdade que existem muitas outras variantes que falam muito sem dizer nada que se estenda a diferentes áreas de nossas vidas.

Nesse exemplo, embora o leitor possa se sentir feliz porque as “reformas necessárias” serão aplicadas, na realidade elas “não modificarão o processo em andamento”, o que significa que tudo mudará para que nada mude. A isto se acrescenta que o fato de a justiça ser da parte do cidadão é uma contradição, uma vez que a justiça não deve estar em lugar nenhum, mas ser imparcial.

O rumorese, portanto, serve apenas para gerar confusão e criar expectativas que nunca serão satisfeitas, por isso acaba gerando frustração. As contradições flagrantes e o absurdo que ele gera fazem com que uma parte do nosso cérebro se desligue, cansada de procurar uma lógica inexistente. E é precisamente esse tipo de lobotomização autoinfligida que se adapta a todos aqueles que aproveitam os rumores para alcançar seus objetivos.

A isto se acrescenta que, como os rumoreses não têm significado em si, geralmente é mais credível quem tem maior autoridade. Se não entendermos dois discursos antagônicos, teremos a tendência de fundamentar e acreditar no discurso institucionalizado e canonizado. O poder do referente trabalha sua mágica onde não há hábito do pensamento livre.

E isso significa que a razão e o diálogo não prevalecem, mas o poder. Como Thoreau advertiu, “o homem aceita não o que é verdadeiramente respeitável, mas o que é respeitado”.

A reflexão como arma contra palavras vazias

O rumorese é composto por uma série de idéias projetadas para serem acreditadas, independentemente de sua veracidade ou racionalidade. Geralmente, trata-se de especulações ou deturpações que se espalham porque causam impacto em nossas emoções mais atávicas.

De fato, o rumorese se espalha de maneira extremamente eficaz e é uma ferramenta de manipulação perfeita, porque geralmente ajustamos nossa visão de mundo à percepção que os outros têm. Pensamos que muitas mentes não podem estar erradas, portanto, quem eu estou errado sou eu.

O melhor antídoto para conter essa conversa vazia é a razão. Precisamos passar tudo pela peneira do nosso pensamento. Não importa de onde venham as palavras ou quem as disse, temos que questioná-las e, se necessário, refutá-las. É nesse ato de desconstrução do que foi dito que encontramos nossa verdade e nos tornamos livres.