Ela flerta com o fascismo, mas submete a
nação aos poderes globais. É totalitária – mas não impõe a lógica do
Estado, e sim a da Mercadoria, da Empresa, da Meritocracia, do Investidor.
Contra tal distopia, a ideia de revolução social
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Marilena Chaui, filósofa |
Tornou-se corrente nas esquerdas o uso
de termos fascismo e neofascismo para descrever criticamente nosso presente.
Estamos acostumados a identificar o
fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje,
embora os governantes não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos
instrumentos característico do líder fascista, qual seja, a relação direta com
“o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se
encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio
ao outro – racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação
que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e
o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica
da arte de governar.
No entanto, não emprego esse termo por
três motivos: (a) porque o fascismo tem um cunho militarista que, apesar das
ameaças de Trump à Venezuela ou ao Irã, as ações de Nathanayu sobre a
faixa de Gaza, ou a exibição da valentia do homem armado pelo governo Bolsonaro
e suas ligações com as milícias de extermínio, não podem ser identificados com
a ideia fascista do povo armado; (b) porque o fascismo propõe um nacionalismo
extremado, porém a globalização, ao enfraquecer a ideia do Estado-nação como
enclave territorial do capital, retira do nacionalismo o lugar de centro
mobilizador da política e da sociedade; (c) porque o fascismo pratica o
imperialismo sob a forma do colonialismo, mas a economia neoliberal dispensa
esse procedimento usando a estratégia de ocupação militar de um espaço
delimitado por um tempo delimitado para devastação econômica desse território,
que é abandonado depois de completada a espoliação.
Em vez de fascismo, denomino o
neoliberalismo com o termo totalitarismo, tomando como referência as
análises da Escola de Frankfurt sobre os efeitos do surgimento da ideia
de sociedade administrada.
O movimento do capital transforma toda e
qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em
mercadoria, instituindo um sistema universal de equivalências próprio de uma
formação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria universal
abstrata, o dinheiro.
A isso corresponde o surgimento de uma
prática, a da administração, que se sustenta sobre dois pilares: o de que
toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse
motivo é administrável de fato e de direito, e o de que os princípios
administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações
sociais, sendo equivalentes, são regidas pelas mesmas regras. A administração é
concebida e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de
conteúdo particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as
manifestações sociais. A prática administrada transforma uma instituição social
numa organização.
Uma instituição social é uma prática
social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas
atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante
outras instituições sociais, sendo estruturada por ordenamentos, regras, normas
e valores de reconhecimento e legitimidade internos. Sua ação se realiza numa
temporalidade aberta ou histórica porque sua prática a transforma segundo as
circunstâncias e suas relações com outras instituições.
Em contrapartida, uma organização se
define por sua instrumentalidade, fundada nos pressupostos administrativos da
equivalência. Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de
um objetivo particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às
ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa,
mas a operações, isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e
de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular
que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle
e êxito, por isso sua temporalidade é efêmera e não constitui uma história.
Por que designar o neoliberalismo como o
novo totalitarismo?
Totalitarismo: por que em seu
núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual
seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e
políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são
concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma
sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da
existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de
comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.
Novo: por que, em lugar da forma do
Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores,
vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos
totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto
é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o
inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as
esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como
referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: a
empresa – a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro
cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é
uma empresa.
Deixando de ser considerada uma
instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos,
passa a ser considerado homogêneo ao mercado. Isto explica porque a política
neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e
políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados,
transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a
privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e
exclusão.
O neoliberalismo vai além: encobre o
desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e
por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um
empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário
de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado
pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.
O salário não é visto como tal e sim
como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a
criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O
indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar
a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e
violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de
uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e
desencadeando práticas de extermínio.
Quais são as consequências do novo
totalitarismo?
– social e economicamente, ao introduzir
o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a
uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome
de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego estável,
sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não
é simplesmente o trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada
pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente
alimentada e motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela
insegurança;
– politicamente põe fim às duas formas
democráticas existentes no modo de produção capitalista: (a) põe fim à
social-democracia, com a privatização dos direitos sociais, o aumento da
desigualdade e da exclusão; (b) põe fim à democracia liberal representativa,
definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão
públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os
gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da
maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por
meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital
party –, operando sem mediação institucional,pondo em dúvida a validade
dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo
manifestações contra eles; (c) introduz a judicialização da política, pois,
numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e
não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma
empresa, os conflitos não são tratados como questão pública e sim como
questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos
casos; (d) os gestores operam como gangsters mafiosos que
institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades.
Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece
“proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência
mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri,
conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as
decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente,
aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lgbtq+,
sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo
ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; (e)transformam
todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja,
praticamente, a única regra de governo; (f) têm controle total sobre o
judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e
profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade
completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe
acontece);
– ideologicamente, com a expressão
“marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do
pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os
apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem
fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso
desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por
intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se
formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas,
aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras.
Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos,
filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido
preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o
status quo e o senso comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução
das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da
relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos
governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc.,
isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em
discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;
– a dimensão planetária da forma
econômica neoliberal faz com que não exista um “fora” do capitalismo, uma
alteridade possível, levando à ideia de “fim da história”, portanto à perda da
ideia de transformação histórica e de um horizonte utópico. A crença na
inexistência da alteridade é fortalecida pelas tecnologias de informação, que
reduzem o espaço ao aqui, sem geografia e sem topologia (tudo se passa na
tela plana como se fosse o mundo) e ao agora, sem passado e sem futuro,
portanto sem história (tudo se reduz a um presente sem profundidade). Volátil e
efêmera, nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota
num presente vivido como instante fugaz;
– a fugacidade do presente, a ausência
de laços com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipado,
suscitam o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Assim, a figura
do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada teologia da
prosperidade, desenvolvida pelo neopentecostalismo. Mais do que isso. Os
fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política
são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a
construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas
simplesmente se esforça por contorná-la apelando para duas formas inseparáveis
de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do
governante (à qual apela o elogio da autoridade forte).
Diante dessa realidade, muitos afirmam
que vivemos num mundo distópico, no qual as distopias são concebidas sob a
forma da catástrofe planetária e do medo. Vale a pena, entretanto, mencionar
brevemente a diferença entre utopia e distopia.
A utopia é a busca de uma sociedade
totalmente outra que negue todos os aspectos da sociedade existente. É a visão
do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da
corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das
carências, ou seja, o presente como violência nua. Por isso mesmo é radical,
buscando a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade
individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo
e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade. Uma utopia não é um
programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem
o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar
a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução
social.
A distopia tem um significado crítico
inegável ao descrever o presente como um mundo intolerável, porém corre o risco
de transformá-lo em fantasma e rumar para o fatalismo, a imobilidade e o
desalento do fim da história. A utopia também parte da constatação de um mundo
intolerável, mas em lugar de curvar-se a ele, trabalha para colocá-lo em tensão
consigo mesmo para que dessa tensão surjam contradições que possam ser
trabalhadas pela práxis humana. A imobilidade distópica decorre de sua
estrutura fantasmática: nela, o intolerável não é o ponto de partida e sim o
ponto de chegada. Ao contrário, a mobilidade utópica provém de sua energia como
projeto e práxis, como trabalho do pensamento, da imaginação e da vontade para
destruir o intolerável: o intolerável é seu ponto de partida e não o de
chegada.
Se a utopia é a visão do presente sob o
modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do
pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, do presente
como violência intolerável, não podemos abrir mão da perspectiva utópica nas
condições de nosso presente.