"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

Obrigado pelo acesso ao nosso blog
!

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.
#PauloFreireMereceRespeito #PatonoDaEducaçãoBrasileira #PauloFreireSempre

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Universidade e Interesse Público, por Jorge Alexandre Neves

Trabalho em uma universidade que é uma das líderes no Brasil e na América Latina em produção e registro de patentes, bem como no desenvolvimento de projetos de inovação e de relação com o mundo empresarial e a sociedade.

Toda vez que viajo para fazer avaliações institucionais de programas de universidades federais do interior de Minas Gerais, volto impressionado com o impacto positivo da grande expansão das IFES, principalmente por cidades menores, do interior dos estados, em particular promovida a partir do REUNI. No ano passado, participei da avaliação institucional do Programa de Internacionalização da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), em Diamantina. Voltei muito impressionado com a qualidade do que vi. Na semana passada, por sua vez, tive a oportunidade de participar da Comissão de Avaliação do Programa Institucional de Iniciação Científica e do Programa Institucional de Iniciação à Inovação Tecnológica da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL). Mais uma vez, fiquei muito bem impressionado com o que vi. Em particular, com o caso do Programa de Iniciação à Inovação Tecnológica. Um extraordinário esforço da UNIFAL para introduzir jovens estudantes, inteligentes e motivados, no mundo da inovação tecnológica, aprendendo a fazer a ponte entre o ambiente acadêmico e o mundo empresarial.

No que diz respeito à pesquisa, as IFES tinham três grandes desafios: a) desenvolver uma produção científica de maior impacto (ou seja, não só publicar em periódicos de elevado impacto, mas publicar trabalhos com elevado impacto; b) alcançar uma maior internacionalização da sua produção e; c) contribuir mais para a inovação tecnológica, desenvolvendo e registrando patentes, bem como conseguindo uma ligação mais estreita com o mundo produtivo. Esses desafios têm sido enfrentados e, em boa medida, superados. A massa crítica criada pela expansão, bem como a diversidade socioeconômica criada pela Lei de Cotas – que tem trazido para as universidades públicas aqueles que são, realmente, os mais talentosos em cada estrato social, não mais apenas os mais talentosos dos estratos superiores misturados aos mais privilegiados e aos mais bem adestrados desses mesmos estratos – também tem colaborado para essa superação. É a quantidade se transformando em qualidade, como previsto por uma das leis da dialética.

Trabalho em uma universidade que é uma das líderes no Brasil e na América Latina em produção e registro de patentes, bem como no desenvolvimento de projetos de inovação e de relação com o mundo empresarial e a sociedade. Além do excelente papel desempenhado nos esforços voltados à inovação tecnológica, a UFMG tem desenvolvido importantes projetos de extensão com fortes impactos sociais positivos. Isso faz com que ela seja procurada para colaborar com a solução de problemas de várias naturezas. Um bom exemplo recente desse papel virtuoso é o novo “Projeto Brumadinho”, que será desenvolvido pela UFMG por demanda do MP e do Judiciário. Trata-se de um enorme projeto de extensão voltado à reestruturação da dinâmica social e econômica do Município de Brumadinho, bem como da recuperação psicológica da população do município atingida pelo desastre causado pelo rompimento de uma barragem de dejetos. 

Boa parte desse sucesso só é possível, também, por causa das Fundações de Apoio das IFES. E aí chegamos a um ponto que me chama a atenção. As IFES já têm vinculadas a elas inúmeras organizações públicas de direito privado, suas Fundações de Apoio. Por que, então, ao propor um projeto de flexibilização e de suposto desenvolvimento das IFES – com objetivos declarados semelhantes aos pontos que analisei, acima, qual sejam, internacionalização, inovação e governança –, o chamado “Future-se”, o MEC não buscou aproveitar essa estrutura já existente de fundações, vindo a exigir a realização de contratos com Organizações Sociais estranhas ao mundo universitário? A melhor resposta me foi dada pelo Diretor de uma das fundações da UFMG: “porque as nossas fundações servem à universidade, ao passo que o ‘Future-se’ busca que a universidade fique a serviço das Organizações Sociais”. Trata-se apenas de mais uma agressão do atual governo a normas constitucionais. No caso em questão, ao princípio da Autonomia Universitária (Art. 207 da Constituição Federal) e o caráter público da universidade (Art. 206). O “Future-se” não intenciona desenvolver as IFES, mas torná-las lacaias de interesses particularistas, provavelmente dos mais inconfessáveis.

*Jorge Alexandre Barbosa Neves – Ph.D, University of Wisconsin – Madison, 1997.  Pesquisador PQ do CNPq. Pesquisador Visitante University of Texas – Austin. Professor Titular do Departamento de Sociologia – UFMG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas



Quem vai deter Bolsonaro?


Jornalista Tereza Cruvinel critica o fato de apenas dois do STF, Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, terem condenado o ataque de Jair Bolsonaro ao Supremo com o vídeo das hienas. "De resto, as demais instituições e a sociedade civil assistem perplexas a estes ensaios que apontam para seu não secreto nem dissimulado desejo: o de instalar de fato a autocracia do leão, através de um golpe", diz ela

 
Depois das últimas provocações institucionais de Bolsonaro, que culminaram com o desvairado vídeo do leão acossado pelas instituições democráticas – que implicitamente foram chamadas de “forças do mal” – apenas dois ministros do STF, e não o STF em si, levantaram a voz e o repreenderam: Celso de Mello ontem, e Marco Aurélio Mello, hoje. De resto, as demais instituições e a sociedade civil assistem perplexas a estes ensaios que apontam para seu não secreto nem dissimulado desejo: o de instalar de fato a autocracia do leão, através de um golpe.

Não devemos ter medo de considerar esta hipotése para não sermos chamados de paranoicos ou devotos do conspiracionismo. Pecado bem mais grave será o da leniência diante dos sinais que ele mesmo espalha, com palavras e gestos. É da boca de Bolsonaro que saem elogios a ditaduras, aprovações à tortura, ataques ao sistema político (um dos trunfos de sua eleição por brasileiros desiludidos com a política) e a violência verbal diária, contra tudo e todos, inclusive contra outros povos, como o argentino, temperada pela vulgaridade. Ontem ele fez até mesmo uma declaração de afinidade com o príncipe saudita sanguinário, envolvido na morte de um jornalista por esquartejamento e sumiço do corpo.

A indulgência em relação ao presidente desatinado ampara-se numa leitura ingênua ou conveniente às elites que esperam dele a aprovação e implementação de reformas e medidas neoliberais:  ele é assim mesmo, e com suas diatribes, ainda  que vulgares e preocupantes, contribui para o avanço das reformas, oferecendo temas diversionistas ao debate público.

De fato, enquanto discutimos o vídeo do leão acossado pelas malévolas instituições democráticas – imprensa, STF, OAB, CUT, partidos e outros – Guedes avança com sua agenda.

Já a  suposta paranoia, ou fiquemos na preocupação com o que de pior pode acontecer, ampara-se na prática, nas palavras, no passado e na natureza de Bolsonaro, essencialmente autoritária e antidemocrática. E neofascista, é preciso também dizer.

Mas convenhamos que eles fazem as coisas com uma loucura metodológica. Pelo vídeo, por exemplo, Bolsonaro hoje pediu desculpas explicando. Não o produziu, o vídeo apareceu, alguém (que negou ser o filho Carlos) achou interessante e postou em sua conta na rede social sem perceber que continha “injustiça”.  Certamente apenas em relação ao STF, que foi quem reclamou, embora não tenha sido mencionado.

A peça representa falta do presidente para com a honra, a dignidade e o decoro do cargo. Teoricamente, é motivo para impeachment. Mas quem haverá de propor isso, se ele já tirou o corpo fora: não é autor do vídeo, não sabe quem o postou,  embora se sinta responsável. Rodrigo Maia engavetaria o pedido por falta de fundamento.

Seguiremos, por mais tempo, assistindo ao espancamento das instituições, que vão sendo testadas ao limite, para gáudio dos 30% que constituem a base pétrea do bolsonarismo. Quando elas estiverem prostradas, talvez seja a hora esperada para o golpe. E será tarde para os que transigiram ou se omitiram.

Por mais pecados que tenha o STF cometido nestes tempos estranhos, como diz o ministro Marco Aurélio, é de lá que têm vindo censuras aos excessos de Bolsonaro e até ao assanhamento do general Vilas Boas. O Congresso tem se calado, os partidos, também, a sociedade civil parece ter hibernado, e o único líder que a oposição poderia ter, com força para fazer frente à situação, foi encarcerado justamente para que Bolsonaro pudesse tornar-se presidente, livre de sombras, contrapontos e forças dispostas a contê-lo.



Política externa de Bolsonaro não tem rumo, diz Belluzzo


Economista e ex-ministro diz que Bolsonaro deve acabar recuando das ameaças de abandonar o Mercosul por conta da eleição do novo presidente argentino

Errático: Bolsonaro, que queria alinhamento com Estados Unidos e Israel, faz acordo com árabes e se afasta da Argentina. (FOTO: VALDENIO VIEIRA/PR)
São Paulo – O economista e ex-ministro Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que após o fracasso da estratégia inicial do presidente Jair Bolsonaro de se alinhar automaticamente com os Estados Unidos, o Brasil segue sem rumo na política internacional. Acordos bilaterais assinados com os Emirados Árabes Unidos demonstram que também fracassou a estratégia de privilegiar Israel. Depois de muito criticar a China durante a campanha eleitoral, ele convidou os chineses a participar dos leilões do petróleo.

O próximo recuo, prevê Belluzzo, será em relação às ameaças de abandonar o Mercosul, feitas antes da vitória de Alberto Fernández nas eleições argentinas. “O que a gente precisa entender é que isso aí não tem rumo.” O economista classifica essa possibilidade como “desastrosa” para a indústria brasileira, principalmente para o setor automobilístico, que exporta para o país vizinho. Ele diz que a empresariado brasileiro não deve “achar graça” nesse tipo de declaração do presidente. “Bolsonaro vai recuar disso, como recuam de tudo. Não tem propósito e contaria com oposição enorme dentro do Brasil”, afirmou a Marilu Cabañas e Glauco Faria, para o Jornal Brasil Atual, nesta terça-feira (29).

“O Brasil sempre foi um país voltado para a universalidade das suas relações, sem preconceitos etc. A concepção estreita do presidente acaba se chocando com a realidade. Frequentemente ele é obrigado a abjurar das crenças que manifestou num primeiro momento, o que torna a nossa posição internacional muito complicada. Ele vai, na verdade, amansando a hostilidade que manifesta. É a política internacional do churrasco na laje e cervejada: Os caras enchem a cara, e ficam falando essas bobagens”, criticou o economista.

Belluzzo comentou também uma das gafes de presidente em sua passagem pelo Oriente Médio e também sobre a polêmico vídeo em que ele é retratado como um leão acuado por hienas. Questionado sobre a pauta que discutiria com o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, Bolsonaro afirmou que “todo mundo gostaria de passar a tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres”.

Além da grosseria habitual, são ações e declarações que revelam o despreparo do ocupante do mais importante cargo da República. “É uma coisa dolorosa. Não sei se devo rir ou lamentar profundamente. Ele se considera permanentemente ameaçado. Outra dimensão da sua personalidade é a paranoia. Ele não vê a presidência como uma instituição relacionada com as demais. Não tem nenhuma noção de como funcionam as instituições da República. Estamos na mão de um sujeito completamente despreparado. As pessoas acham que ele tem uma estratégia, mas não tem. A estratégia dele é a falta de estratégia”, ressaltou Belluzzo.



segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Marilena Chauí: o que é a “nova” ultradireita?

Ela flerta com o fascismo, mas submete a nação aos poderes globais. É totalitária – mas não impõe a lógica do Estado, e sim a da Mercadoria, da Empresa, da Meritocracia, do Investidor. Contra tal distopia, a ideia de revolução social

Marilena Chauifilósofa 
Tornou-se corrente nas esquerdas o uso de termos fascismo e neofascismo para descrever criticamente nosso presente.

Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característico do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro – racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica da arte de governar.

No entanto, não emprego esse termo por três motivos: (a) porque o fascismo tem um cunho militarista que, apesar das ameaças de Trump à Venezuela ou ao Irã,  as ações de Nathanayu sobre a faixa de Gaza, ou a exibição da valentia do homem armado pelo governo Bolsonaro e suas ligações com as milícias de extermínio, não podem ser identificados com a ideia fascista do povo armado; (b) porque o fascismo propõe um nacionalismo extremado, porém a globalização, ao enfraquecer a ideia do Estado-nação como enclave territorial do capital, retira do nacionalismo o lugar de centro mobilizador da política e da sociedade; (c) porque o fascismo pratica o imperialismo sob a forma do colonialismo, mas a economia neoliberal dispensa esse procedimento usando a estratégia de ocupação militar de um espaço delimitado por um tempo delimitado para devastação econômica desse território, que é abandonado depois de completada a espoliação.

Em vez de fascismo, denomino o neoliberalismo com o termo totalitarismo, tomando como referência as análises da Escola de Frankfurt sobre os efeitos do surgimento da ideia de sociedade administrada.

O movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, instituindo um sistema universal de equivalências próprio de uma formação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria universal abstrata, o dinheiro.

A isso corresponde o surgimento de uma prática, a da administração, que se sustenta sobre dois pilares: o de que toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável de fato e de direito, e o de que os princípios administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo equivalentes, são regidas pelas mesmas regras. A administração é concebida e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações sociais. A prática administrada transforma uma instituição social numa organização.

Uma instituição social é uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, sendo estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos. Sua ação se realiza numa temporalidade aberta ou histórica porque sua prática a transforma segundo as circunstâncias e suas relações com outras instituições.

Em contrapartida, uma organização se define por sua instrumentalidade, fundada nos pressupostos administrativos da equivalência. Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações, isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito, por isso sua temporalidade é efêmera e não constitui uma história.

Por que designar o neoliberalismo como o novo totalitarismo?

Totalitarismo: por que em seu núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.

Novo: por que, em lugar da forma do Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: a empresa – a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa.

Deixando de ser considerada uma instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos, passa a ser considerado homogêneo ao mercado. Isto explica porque a política neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e exclusão.

O neoliberalismo vai além: encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.

O salário não é visto como tal e sim como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.

Quais são as consequências do novo totalitarismo?

– social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois  sua identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela insegurança;

– politicamente põe fim às duas formas democráticas existentes no modo de produção capitalista: (a) põe fim à social-democracia, com a privatização dos direitos sociais, o aumento da desigualdade e da exclusão; (b) põe fim à democracia liberal representativa, definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital party –, operando sem mediação institucional,pondo em dúvida a validade dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo manifestações contra eles; (c) introduz a judicialização da política, pois, numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma empresa, os conflitos não são tratados  como questão pública e sim como questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos casos; (d) os gestores operam como gangsters mafiosos que institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades. Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece “proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente, aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lgbtq+, sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; (e)transformam todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; (f) têm controle total sobre o judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece);

– ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;

– a dimensão planetária da forma econômica neoliberal faz com que não exista um “fora” do capitalismo, uma alteridade possível, levando à ideia de “fim da história”, portanto à perda da ideia de transformação histórica e de um horizonte utópico. A crença na inexistência da alteridade é fortalecida pelas tecnologias de informação, que reduzem o espaço ao aqui, sem geografia e sem topologia (tudo se passa na tela plana como se fosse o mundo) e ao agora, sem passado e sem futuro, portanto sem história (tudo se reduz a um presente sem profundidade). Volátil e efêmera, nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz;

– a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipado, suscitam o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Assim, a figura do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada teologia da prosperidade, desenvolvida pelo neopentecostalismo. Mais do que isso. Os fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas simplesmente se esforça por contorná-la apelando para duas formas inseparáveis de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do governante (à qual apela o elogio da autoridade forte).

Diante dessa realidade, muitos afirmam que vivemos num mundo distópico, no qual as distopias são concebidas sob a forma da catástrofe planetária e do medo. Vale a pena, entretanto, mencionar brevemente a diferença entre utopia e distopia.

A utopia é a busca de uma sociedade totalmente outra que negue todos os aspectos da sociedade existente. É a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, ou seja, o presente como violência nua. Por isso mesmo é radical, buscando a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade. Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.

A distopia tem um significado crítico inegável ao descrever o presente como um mundo intolerável, porém corre o risco de transformá-lo em fantasma e rumar para o fatalismo, a imobilidade e  o desalento do fim da história. A utopia também parte da constatação de um mundo intolerável, mas em lugar de curvar-se a ele, trabalha para colocá-lo em tensão consigo mesmo para que dessa tensão surjam contradições que possam ser trabalhadas pela práxis humana. A imobilidade distópica decorre de sua estrutura fantasmática: nela, o intolerável não é o ponto de partida e sim o ponto de chegada. Ao contrário, a mobilidade utópica provém de sua energia como projeto e práxis, como trabalho do pensamento, da imaginação e da vontade para destruir o intolerável: o intolerável é seu ponto de partida e não o de chegada.

Se a utopia é a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, do presente como violência intolerável, não podemos abrir mão da perspectiva utópica nas condições de nosso presente.



A metralhadora giratória vesga de Ciro Gomes, por Luis Nassif

Ciro torna-se um paradoxo ambulante. Seu estilo é o de promover polêmicas. Logo, provocar adesões e críticas. A cada crítica, responde com mão pesada

Ciro Gomes
Não sei onde Ciro Gomes pretende chegar com suas incontinências verbais e sua absoluta intolerância às críticas que recebe.

Ciro torna-se um paradoxo ambulante. Seu estilo é o de promover polêmicas. Logo, provocar adesões e críticas. A cada crítica, responde com mão pesada. Todos os críticos são corruptos, diz ele, em uma mesma entrevista em que define o seu estilo como racional, baseado nos fatos e na razão. Ou seja, Ciro não mente, não chuta, não faz críticas irresponsáveis e todas suas denúncias são fundamentadas, é este o seu bordão.

Nos ataques a Paulo Moreira Leite e a Kiko Nogueira, cometidos na mesma entrevista, falhou de todos os modos. Falhou factualmente, ao atribuir a Paulo Moreira Leite, em sua passagem por Veja, o apoio à ultradireita e a demissão. Pelo contrário, nem Paulo Moreira Leite dirigiu a revista na fase esgoto (que foi posterior à sua saida) nem foi demitido, mas contratado por uma revista concorrente. Em relação a Kiko, jamais trabalhou na Época e, assim como Paulinho, jamais foi alvo de nenhuma suspeita de trabalho aético.

Mais que isso, a espingarda de Ciro estava tão vesga que, em um setor contaminado pela pusilanimidade, maledicência e disputas sem regras, mirou justamente dois jornalistas que, além de brilhante carreira jornalística, são excelentes carácteres, unanimidade nos ambientes em que trabalharam.

O terceiro erro foi classificá-los como petistas militantes. Ambos são jornalistas que atuam nos vácuos de cobertura da mídia. Hoje em dia atendem a um público preferencialmente petista, devido ao claro viés antipetista da mídia. Mas, dentro do padrão de mediação jornalística que professam, no qual não há militância política nem posição apriorística: critica-se quando se julga que se deve criticar; elogia-se quando se enxergam aspectos positivos na pessoa.

Eles provavelmente seriam os primeiros a apoiar Ciro, quando abandonasse sua metralhadora giratória, ou a calibrasse melhor, e passasse a trilhar caminhos mais positivos, na construção da grande frente democrática.



Nova Vaza Jato revela: Lula foi joguete nas mãos de sociopatas

Leandro Fortes, do Jornalistas pela Democracia, reforça que, para denunciar Lula no caso do sítio de Atibaia, a Lava Jato montou "uma matemática que servisse de 'distração' para proteger Rodrigo Janot, então procuradora-geral da República". "No cárcere, condenado sem provas, o maior líder popular da história do Brasil tornou-se um joguete nas mãos de sociopatas"

Foto: Felipe Gonçalves/247 | Lula Marques | ABr)
Aos poucos, o País desperta para o submundo de trapaças e vaidades que se tornou, nas sombras, o Ministério Público Federal. 

A mais nova revelação do Intercept Brasil demonstra um conluio entre procuradores e procuradoras federais, ditos fiscais da lei, para criar "distração" às custas da vida de um prisioneiro: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As recentes mensagens do Telegram reforçam a rotina de desumanidade e desprezo às normas éticas que passou a definir os trabalhos da força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba.

Deltan Dallagnol, um fanático delirante, comandava um bando de desocupados que dedicava a maior parte dos dias a bolar a melhor forma de destruir a vida e a reputação de Lula, dentro de uma agenda de marketing.

Para denunciá-lo, no caso do sítio de Atibaia, montaram uma matemática que servisse de "distração" para proteger Rodrigo Janot, então procuradora-geral da República. Ao mesmo tempo, certificaram-se de que não haveria ações da Lava Jato, de modo a não atrapalhar a repercussão na mídia.

No cárcere, condenado sem provas, o maior líder popular da história do Brasil tornou-se um joguete nas mãos de sociopatas. 

(Conheça e apoie o projeto Jornalistas pela Democracia)

Malvadinhos da Lava Jato: por que o Brasil não pode crescer como as potências capitalistas? Por Tiago Camarinha Lopes

O Ministério Público Federal quebrou o setor de engenharia nacional e serviu aos interesses dos Estados Unidos, mesmo que de forma inconsciente. Procuradores e juízes se mostraram ignorantes demais para vislumbrar o cenário maior

*Por Tiago Camarinha Lopes 
Deltan Dallagnol e Rodrigo Janot 
No final do capítulo 14 de seu livro Nada menos que tudo, o ex-Procurador Geral da República Rodrigo Janot tece alguns comentários sobre o contexto geopolítico em que a Lava Jato se insere.

Janot reconhece que os EUA, no intuito de ajudar a Lava Jato, financiaram cursos de capacitação de procuradores brasileiros não porque são bonzinhos e querem combater a corrupção, mas porque queriam acessar um mercado que lhes estava fechado devido à associação do Estado brasileiro com determinados agentes privados.

Esse é, para manter o espírito da narrativa, um dos pontos de maior sobriedade de todo o livro. Ainda assim o relato fica muito aquém de tudo. Isso porque Janot afasta com desprezo a tese de que todo o processo do golpe deriva de interesses diretos do imperialismo estadunidense, como se tratasse de uma teoria da conspiração absurda de esquerdistas que acreditam que a Terra é plana.

Para ele é como se houvesse uma (in)feliz coincidência entre as ações absolutamente necessárias e técnicas de combate à corrupção levadas adiante pela Lava Jato e os interesses econômicos do Estado norte-americano. É, de fato, uma coincidência feliz para um lado e infeliz para o outro, mas de todo modo uma mera coincidência, totalmente aleatória. A conformação com essa sina, que apenas reforça nosso viralatismo, só vai ser superada quando o povo brasileiro compreender o tabuleiro interimperialista sobre o qual ocorre o jogo da economia mundial.

Todas as potências construíram suas economias a partir da associação entre o setor público e o setor privado, desde as companhias comerciais da era mercantilista até o setor energético do século 21. Por que o Brasil não pode seguir essa receita? O ex-PGR replica em seu raciocínio uma noção totalmente ingênua sobre Economia Política, que foi brutalmente difundida no país desde antes das jornadas de junho de 2013 (aliás, desde sempre) por meio de think-tanks intimamente ligados a poderes alheios ao Brasil. Ele acha que o caminho para a soberania seria possível pela via de um “capitalismo verdadeiramente concorrencial” ao invés do chamado “capitalismo de compadrio”, termo depreciativo usado por aqueles que querem desvalorizar o tremendo, ainda que contraditório, avanço da civilização brasileira dos últimos anos.

Todas as análises sérias, pautadas pelos interesses materiais em escala global indicam que a emergência da economia brasileira como potência decisiva no hemisfério Sul provocou uma reação certeira, principalmente com a confirmação da descoberta do pré-Sal (ver, por exemplo, Fiori e Nozaki 2019: https://diplomatique.org.br/conspiracao-e-corrupcao-uma-hipotese-muito-provavel/).

Todas as análises robustas também conseguem estabelecer um vínculo sólido entre essa reação e a Lava Jato, cujo efeito concreto foi tirar o Brasil do cenário mundial. Moniz Bandeira, eminente historiador falecido em 2017 que provou com farta documentação a interferência estadunidense nos golpes de Estado na América Latina ao longo do século 20 (como o caso brasileiro e o caso chileno já indicava em 2016 que a análise de custo-benefício do assim chamado combate à corrupção apontava para uma perda de bem-estar social dos brasileiros, porque os recursos recuperados não cobriam os recursos perdidos com a eliminação dos postos de trabalho em toda cadeia produtiva em torno da Petrobras (ver Bandeira (2016): https://atarde.uol.com.br/cultura/literatura/noticias/1812096-o-estado-brasileiro-parece-desintegrarse-diz-historiador

E caso Janot considere esses autores suspeitos de serem representantes de “certos setores da esquerda brasileira”, que acreditam “que a corrupção é a graxa que move a economia” e que portanto, trata-se de “um discurso míope e tosco” como ele escreve, pode-se ainda referir à bacharel em Direito Érika Gorka, que foi candidata a deputada federal pelo NOVO e é colaboradora do Instituto Millenium segundo o jornalista Luis Nassif . Seu levantamento detalhado (publicado na Ilustríssima da Folha aqui mostra que as punições da Lava Jato não consideraram as estruturas de propriedade dos acionistas, de modo que os danos oriundos das sentenças recaíram sobre todos os proprietários minoritários e trabalhadores e trabalhadoras que nada tinham a ver com o esquema.

O resultado é evidente: o efeito colateral das investigações e sentenças foi o desmantelamento da indústria de base tupiniquim em vias de se estabelecer no México, Argentina, Venezuela, Peru, Colômbia, Angola, Moçambique etc. Mas será que não era exatamente essa a razão de ser da operação, desde o começo? Não pode haver dúvida de que a Lava Jato se relaciona com a desordem mundial do século 21 e que o Brasil foi o perdedor da vez.

Assim, há certa convergência objetiva sobre esse processo, tanto da perspectiva de análise geopolítica e de Economia Política quanto do Direito, independentemente da posição do analista no que tange a classificação entre esquerda e direita. Por quê? Porque a verdade é objetiva: o Ministério Público Federal, com a Lava Jato, quebrou o setor de engenharia nacional e serviu aos interesses dos Estados Unidos, mesmo que de forma inconsciente. Ou seja, os procuradores e juízes realizaram essa façanha não porque são todos malvadinhos, mas porque muitos deles, ao serem ignorantes demais para vislumbrar o cenário maior e, principalmente, por terem identidade de classe com o estrato médio submisso à nossa elite do atraso, puderam ser manobrados sem dificuldades através da cadeia de comando que parte de Washington e que colocou essa moçada para surfar na crista do devido processo legal.

A linha divisória entre minions conscientes e inconscientes poderá ser discutida no futuro. Por ora, é certo que muitos desconhecem a concretude da disputa entre os Estados pelo mercado mundial e acreditam no faz de conta de uma concorrência igualitária que impede o Brasil de adotar o mesmíssimo truque de expansão como fizeram e fazem todas as grandes potências na história do capitalismo.

*É economista pela Goethe Universitat Frankfurt a.M., Alemanha; professor da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Coordenador da Formação do Núcleo Goiás da Auditoria da Dívida Pública



Pesquisadores alertam para risco de desmonte da ciência no Brasil

Proposta do governo federal de tirar CNPq e Finep da pasta de Ciência e Tecnologia representaria um “retrocesso irreparável” no sistema de financiamento da pesquisa nacional, segundo especialistas

Fotos: Herivelto Batista / ASCOM-MCTIC via Flickr – CC e Divulgação/Capes
A comunidade científica brasileira está em alerta máximo contra a possibilidade de extinção das agências de fomento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) — um esvaziamento que colocaria em xeque a sobrevivência do próprio ministério, segundo pesquisadores.

Fontes próximas à pasta confirmam a existência de uma articulação política intensa por parte do Ministério da Educação (MEC) com o intuito de anexar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) à estrutura da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o que conferiria ao MEC controle financeiro sobre grande parte da ciência produzida no Brasil, dentro e fora das universidades. 

“A proposta de fusão do CNPq e Capes, se efetivada, poderá trazer consequências comprometedoras, tanto para o sistema de ensino brasileiro como para o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Seria uma medida equivocada sob todos aspectos já que as duas instituições, criadas e desenvolvidas ao longo de mais de seis décadas, têm missões bastante claras e complementares, que funcionam como pilares do sistema educacional e científico do País”, diz uma carta preparada por diversas entidades científicas, encaminhada na sexta-feira (11/10) a autoridades do Executivo e do Legislativo em Brasília. Entre os signatários estão as academias nacionais de Ciências (ABC), Medicina (ANM) e Engenharia (ANE), e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Leia a íntegra da carta aqui. 

A fusão “seria um desastre para o sistema de financiamento à pesquisa no Brasil”, segundo Marcio de Castro Silva Filho, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), presidente da Sociedade Brasileira de Genética (SBG) e presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação (Foprop). “Na verdade, a Capes engoliria o CNPq”, avalia ele. “São agências diferentes, com missões diferentes, que operam de forma diferente. Não tem como juntar as duas coisas.”

“Não há dúvida de que a fusão será um caos para ambas as agências, com prejuízos tanto para a pesquisa quanto para a pós-graduação”, reforça o pesquisador Glaucius Oliva, professor do Instituto de Física de São Carlos da USP e ex-presidente do CNPq. O argumento de que a junção proporcionaria uma otimização de recursos, segundo ele, “é absolutamente falacioso”. “Trata-se, estritamente, de uma disputa de poder; uma ação predatória do MEC para canibalizar o CNPq e impor uma agenda ideológica dentro da ciência brasileira.”

Procurada por e-mail para falar sobre o assunto, a Capes respondeu às diversas perguntas enviadas pela reportagem com uma única frase: “O Ministério da Educação acatará a decisão que o presidente da República considerar mais conveniente para o Brasil”.

O presidente da Capes, Anderson Correia, tem dado atenção ao tema da inovação e da produção científica brasileira em entrevistas e postagens recentes nas redes sociais — apesar da produção de ciência e tecnologia não ser uma missão da Capes, mas sim, do CNPq. Em uma entrevista ao programa Brasil em Pauta, da TV Brasil (canal de televisão estatal), veiculada em 8 de outubro, Correia afirma que a Capes é “a maior agência de pesquisa do Brasil, em todos os números possíveis”; e o apresentador inicia o programa dizendo que a Capes é “responsável por 80% da produção científica brasileira”.

A reportagem solicitou à Capes uma explicação sobre qual seria a base de cálculo para essa afirmação dos 80%. A assessoria de imprensa do órgão respondeu que o número não foi fornecido pela Capes e não sabia qual era a conta que o apresentador havia feito. Segundo pesquisadores, trata-se de uma colocação incorreta, pois a Capes não financia pesquisas científicas diretamente — atribuição que cabe, essencialmente, ao CNPq, Finep e às fundações de amparo à pesquisa (FAPs) dos Estados. A agência do MEC tem como missão central apoiar o desenvolvimento e avaliar a qualidade dos programas de pós-graduação no Brasil, principalmente por meio da concessão de bolsas de mestrado e doutorado. Esses mestres e doutores, de fato, produzem uma grande quantidade de conhecimento científico por meio de suas teses e dissertações, mas não é esse o critério usado para a concessão das bolsas, que têm como objetivo a formação de recursos humanos, e não a produção de ciência.

Finep de saída

Paralelamente, o Ministério da Economia estuda a possibilidade de transferir a gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) — uma das principais fontes de recursos para a ciência no Brasil, com arrecadação anual da ordem de R$ 4 bilhões — para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Uma mudança que, para muitos, representaria uma sentença de morte para a Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep), empresa pública vinculada ao MCTIC que atualmente gerencia e distribui esses recursos do fundo para apoio à pesquisa em universidades e empresas. A proposta foi apresentada numa reunião da Secretaria de Orçamento Federal, no dia 18 de setembro, segundo reportagens do blog Direto da Ciência e do jornal Valor Econômico.

Em outra configuração, o FNDCT seria absorvido pelo Ministério da Economia e a Finep seria incorporada ao BNDES — “um retrocesso irreparável”, segundo a carta das entidades científicas. “Lembramos que as atividades desenvolvidas pela Finep não poderão ocorrer no BNDES, por muitas razões, inclusive aquelas relativas ao fato do BNDES ser um banco e estar sujeito às normas da Basileia”, diz a carta, referindo-se ao acordo internacional que estabelece regras para o setor bancário.
Valores totais previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de cada ano, excluídas as reservas de contingência. Fonte: SIOP. Elaboração: Fernanda De Negri / Ipea
Ministério em xeque

Sem CNPq e Finep, a existência do próprio ministério seria colocada em xeque, segundo especialistas. “Vejo que um desdobramento natural desses processos seria o fim do MCTIC”, diz o cientista político Luis Manuel Rebelo Fernandes, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que já foi secretário-executivo do ministério, presidente da Finep e hoje integra o Conselho Superior da Capes. “Tudo isso me preocupa enormemente.”

As ações propostas, segundo ele, representam “efetivamente um desmonte” do sistema nacional de ciência e tecnologia — que tem na tríade CNPq-Capes-Finep a sua espinha dorsal há mais de meio século. “É um sistema exitoso e muito bem consolidado, que perpassou diversas mudanças de governo”, destaca Fernandes. “Claro que sempre há espaço para melhorias, e cada governo pode dar a sua respectiva ênfase, mas nunca houve antes uma proposta de desestruturação do sistema.”

“Vão esvaziar o financiamento à pesquisa do MCTIC? Qual é a lógica disso?”, questiona o físico Sylvio Canuto, pró-reitor de Pesquisa da USP. “Vamos ter um ministério de ciência e tecnologia que não financia ciência e tecnologia? Não faz sentido.”

Antes dedicado exclusivamente à ciência, tecnologia e inovação, o MCTI foi fundido ao Ministério das Comunicações em 2016, na primeira reforma ministerial do governo Michel Temer. Ganhou um “C” a mais no nome e passou a ser responsável, também, pela execução das políticas nacionais de telecomunicações e radiodifusão. Inversamente proporcional a esse aumento de responsabilidades, porém, o orçamento da pasta só encolheu nos últimos anos — e deve encolher ainda mais no ano que vem. A proposta do governo prevê apenas R$ 3,5 bilhões para investimentos do MCTIC em 2020; um terço do valor de uma década atrás e 32% a menos do que o previsto no orçamento deste ano (fora os contingenciamentos), segundo uma carta preparada pela Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) e entregue a parlamentares no dia 3 de outubro. Veja a íntegra aqui. 

“É o fim das agências, o fim do ministério e o fim da ciência no Brasil”, decreta a pesquisadora Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e também membro do Conselho Superior da Capes.

O tema foi levantado na última reunião extraordinária do conselho, no dia 1º de outubro, em que estavam presentes os presidentes das três agências de fomento. Anderson Correia, da Capes, defendeu a fusão com o CNPq, enquanto que Waldemar Magno Neto, da Finep, e João Luiz Azevedo, do CNPq, se posicionaram contra. A discussão deixou claro que a proposta de fusão existe, e que há “uma disputa” entre os ministérios com relação a isso, relata Helena. 

Com um orçamento oito vezes maior e muito mais influência política do que o MCTIC, o MEC leva clara vantagem nessa disputa. “O MCTIC está contra as cordas”, diz uma fonte próxima ao ministério, que pediu para não ser identificada.

Desprovido de suas duas agências, restaria ao ministério a gestão dos institutos de pesquisa federais vinculados a ele, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) e suas organizações sociais, como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que recebem recursos do orçamento do MCTIC para sua gestão, mas cujos cientistas também dependem de recursos do CNPq e Finep para realizar suas pesquisas.

O orçamento do CNPq também foi severamente desidratado nos últimos anos, e a proposta do governo para 2020 praticamente acaba com os recursos de fomento à pesquisa da agência, deixando-lhe apenas com dinheiro para bolsas. Um cenário favorável à lógica daqueles que defendem a fusão com a Capes. “Essa é a estratégia: estrangular primeiro, para conquistar depois”, avalia Glaucius Oliva, da USP. “Eu já vi e vivi muitas crises financeiras ao longo da minha vida acadêmica”, diz. “Falta de dinheiro não é novidade, mas eu nunca tinha visto um governo que é anticiência. Isso é inédito. Mesmo na ditadura, os militares acreditavam na ciência.”

Fogo amigo?

“A gente precisa trabalhar junto”, disse o ministro do MCTIC, Marcos Pontes, na abertura de uma exposição itinerante sobre os 50 anos do FNDCT, dia 22 de agosto, que tinha o presidente da Capes na plateia. Ele ressaltou explicitamente a importância da “conexão” entre os ministérios da Ciência e da Educação. “A gente precisa focar no objetivo; a gente precisa focar no inimigo, digamos assim, que está lá fora. Aqui dentro a gente não pode ter inimigo; aqui dentro a gente precisa se juntar para vencer.”

Em um encontro com jornalistas em Brasília, dia 9 de outubro, Pontes falou também sobre a possibilidade de fusão das agências de fomento. “A junção do CNPq com a Capes não faz muito sentido, exceto na parte econômica. E, se houver a necessidade de juntar os dois, o local ideal é dentro do ministério que trabalha com pesquisa e desenvolvimento, que é a finalidade dessas bolsas”, afirmou o ministro, segundo reportagem do Correio Braziliense.

A Associação dos Servidores do CNPq emitiu uma nota na sequência, criticando a fala do ministro: “É muito preocupante para nós gestores em ciência e tecnologia que o titular do Ministério desconsidere as diferenças de atuação entre CNPq e Capes e que reverbere o coro desinformado (e por vezes mal-intencionado) que defende a união de ambas as agências”.

O MCTIC foi procurado mas não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

“Em todos os países desenvolvidos existem múltiplas agências governamentais para o apoio à pesquisa científica e tecnológica. Reafirmamos a importância da manutenção das três agências de fomento federais, CNPq, Finep e Capes, e com recursos compatíveis com suas atribuições. Qualquer extinção/fusão/incorporação dessas agências será prejudicial e lesiva ao funcionamento do Sistema Nacional de ciência, tecnologia e inovação”, diz a carta da ICTP.br.