Proposta do governo federal de tirar
CNPq e Finep da pasta de Ciência e Tecnologia representaria um “retrocesso
irreparável” no sistema de financiamento da pesquisa nacional, segundo
especialistas
Por Herton Escobar
Editorias: Políticas
científicas – Jornal da USP
A comunidade científica brasileira está
em alerta máximo contra a possibilidade de extinção das agências de fomento do
Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) — um
esvaziamento que colocaria em xeque a sobrevivência do próprio ministério,
segundo pesquisadores.
Fontes próximas à pasta confirmam a
existência de uma articulação política intensa por parte do Ministério da
Educação (MEC) com o intuito de anexar o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) à estrutura da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes), o que conferiria ao MEC controle
financeiro sobre grande parte da ciência produzida no Brasil, dentro e fora das
universidades.
“A proposta de fusão do CNPq e Capes, se
efetivada, poderá trazer consequências comprometedoras, tanto para o sistema de
ensino brasileiro como para o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação.
Seria uma medida equivocada sob todos aspectos já que as duas instituições,
criadas e desenvolvidas ao longo de mais de seis décadas, têm missões bastante
claras e complementares, que funcionam como pilares do sistema educacional e
científico do País”, diz uma carta preparada por diversas entidades
científicas, encaminhada na sexta-feira (11/10) a autoridades do Executivo e do
Legislativo em Brasília. Entre os signatários estão as academias nacionais de
Ciências (ABC), Medicina (ANM) e Engenharia (ANE), e a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC). Leia a íntegra da carta aqui.
A fusão “seria um desastre para o
sistema de financiamento à pesquisa no Brasil”, segundo Marcio de Castro Silva
Filho, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da
Universidade de São Paulo (Esalq-USP), presidente da Sociedade Brasileira de
Genética (SBG) e presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e
Pós-Graduação (Foprop). “Na verdade, a Capes engoliria o CNPq”, avalia ele.
“São agências diferentes, com missões diferentes, que operam de forma
diferente. Não tem como juntar as duas coisas.”
“Não há dúvida de que a fusão será um
caos para ambas as agências, com prejuízos tanto para a pesquisa quanto para a
pós-graduação”, reforça o pesquisador Glaucius Oliva, professor do Instituto de
Física de São Carlos da USP e ex-presidente do CNPq. O argumento de que a
junção proporcionaria uma otimização de recursos, segundo ele, “é absolutamente
falacioso”. “Trata-se, estritamente, de uma disputa de poder; uma ação
predatória do MEC para canibalizar o CNPq e impor uma agenda ideológica dentro
da ciência brasileira.”
Procurada por e-mail para falar sobre o
assunto, a Capes respondeu às diversas perguntas enviadas pela reportagem com
uma única frase: “O Ministério da Educação acatará a decisão que o presidente
da República considerar mais conveniente para o Brasil”.
O presidente da Capes, Anderson Correia,
tem dado atenção ao tema da inovação e da produção científica brasileira em
entrevistas e postagens recentes nas redes sociais — apesar da produção de
ciência e tecnologia não ser uma missão da Capes, mas sim, do CNPq. Em
uma entrevista ao
programa Brasil em Pauta, da TV Brasil (canal de televisão
estatal), veiculada em 8 de outubro, Correia afirma que a Capes é “a maior
agência de pesquisa do Brasil, em todos os números possíveis”; e o apresentador
inicia o programa dizendo que a Capes é “responsável por 80% da produção
científica brasileira”.
A reportagem solicitou à Capes uma
explicação sobre qual seria a base de cálculo para essa afirmação dos 80%. A
assessoria de imprensa do órgão respondeu que o número não foi fornecido pela
Capes e não sabia qual era a conta que o apresentador havia feito. Segundo
pesquisadores, trata-se de uma colocação incorreta, pois a Capes não financia
pesquisas científicas diretamente — atribuição que cabe, essencialmente, ao
CNPq, Finep e às fundações de amparo à pesquisa (FAPs) dos Estados. A agência
do MEC tem como missão central apoiar o desenvolvimento e avaliar a qualidade
dos programas de pós-graduação no Brasil, principalmente por meio da concessão
de bolsas de mestrado e doutorado. Esses mestres e doutores, de fato, produzem
uma grande quantidade de conhecimento científico por meio de suas teses e
dissertações, mas não é esse o critério usado para a concessão das bolsas, que
têm como objetivo a formação de recursos humanos, e não a produção de ciência.
Finep de saída
Paralelamente, o Ministério da Economia
estuda a possibilidade de transferir a gestão do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT)
— uma das principais fontes de recursos para a ciência no Brasil, com
arrecadação anual da ordem de R$ 4 bilhões — para o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Uma mudança que, para muitos,
representaria uma sentença de morte para a Financiadora de Inovação e Pesquisa
(Finep), empresa pública vinculada ao MCTIC que atualmente gerencia e distribui
esses recursos do fundo para apoio à pesquisa em universidades e empresas. A
proposta foi apresentada numa reunião da Secretaria de Orçamento Federal, no
dia 18 de setembro, segundo reportagens do blog Direto da Ciência e do jornal Valor Econômico.
Em outra configuração, o FNDCT seria
absorvido pelo Ministério da Economia e a Finep seria incorporada ao BNDES —
“um retrocesso irreparável”, segundo a carta das entidades científicas.
“Lembramos que as atividades desenvolvidas pela Finep não poderão ocorrer no
BNDES, por muitas razões, inclusive aquelas relativas ao fato do BNDES ser um
banco e estar sujeito às normas da Basileia”, diz a carta, referindo-se ao acordo
internacional que estabelece regras para o setor bancário.
![]() |
Valores totais previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de cada ano, excluídas as reservas de contingência. Fonte: SIOP. Elaboração: Fernanda De Negri / Ipea |
Ministério em xeque
Sem CNPq e Finep, a existência do
próprio ministério seria colocada em xeque, segundo especialistas. “Vejo que um
desdobramento natural desses processos seria o fim do MCTIC”, diz o cientista
político Luis Manuel Rebelo Fernandes, professor do Instituto de Relações
Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que
já foi secretário-executivo do ministério, presidente da Finep e hoje integra
o Conselho
Superior da Capes. “Tudo isso me preocupa enormemente.”
As ações propostas, segundo ele,
representam “efetivamente um desmonte” do sistema nacional de ciência e
tecnologia — que tem na tríade CNPq-Capes-Finep a sua espinha dorsal há mais de
meio século. “É um sistema exitoso e muito bem consolidado, que perpassou
diversas mudanças de governo”, destaca Fernandes. “Claro que sempre há espaço
para melhorias, e cada governo pode dar a sua respectiva ênfase, mas nunca
houve antes uma proposta de desestruturação do sistema.”
“Vão esvaziar o financiamento à pesquisa
do MCTIC? Qual é a lógica disso?”, questiona o físico Sylvio Canuto, pró-reitor
de Pesquisa da USP. “Vamos ter um ministério de ciência e tecnologia que não
financia ciência e tecnologia? Não faz sentido.”
Antes dedicado exclusivamente à ciência,
tecnologia e inovação, o MCTI foi fundido ao Ministério das Comunicações em
2016, na primeira reforma ministerial do governo Michel Temer. Ganhou um “C” a
mais no nome e passou a ser responsável, também, pela execução das políticas
nacionais de telecomunicações e radiodifusão. Inversamente proporcional a esse
aumento de responsabilidades, porém, o orçamento da pasta só encolheu nos
últimos anos — e deve encolher ainda mais no ano que vem. A proposta do governo
prevê apenas R$ 3,5 bilhões para investimentos do MCTIC em 2020; um terço do
valor de uma década atrás e 32% a menos do que o previsto no orçamento deste
ano (fora os contingenciamentos), segundo uma carta preparada pela Iniciativa
para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) e entregue a parlamentares no
dia 3 de outubro. Veja a
íntegra aqui.
“É o fim das agências, o fim do
ministério e o fim da ciência no Brasil”, decreta a pesquisadora Helena Nader,
professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), presidente de honra
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e também membro do
Conselho Superior da Capes.
O tema foi levantado na última reunião
extraordinária do conselho, no dia 1º de outubro, em que estavam presentes os
presidentes das três agências de fomento. Anderson Correia, da Capes, defendeu
a fusão com o CNPq, enquanto que Waldemar Magno Neto, da Finep, e João Luiz
Azevedo, do CNPq, se posicionaram contra. A discussão deixou claro que a
proposta de fusão existe, e que há “uma disputa” entre os ministérios com
relação a isso, relata Helena.
Com um orçamento oito vezes maior e
muito mais influência política do que o MCTIC, o MEC leva clara vantagem nessa
disputa. “O MCTIC está contra as cordas”, diz uma fonte próxima ao ministério,
que pediu para não ser identificada.
Desprovido de suas duas agências,
restaria ao ministério a gestão dos institutos de pesquisa federais vinculados
a ele, como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Laboratório
Nacional de Computação Científica (LNCC) e suas organizações sociais, como o
Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que recebem
recursos do orçamento do MCTIC para sua gestão, mas cujos cientistas também
dependem de recursos do CNPq e Finep para realizar suas pesquisas.
O orçamento do CNPq também foi
severamente desidratado nos últimos anos, e a proposta do governo para 2020
praticamente acaba com os recursos de fomento à pesquisa da agência,
deixando-lhe apenas com dinheiro para bolsas. Um cenário favorável à lógica
daqueles que defendem a fusão com a Capes. “Essa é a estratégia: estrangular
primeiro, para conquistar depois”, avalia Glaucius Oliva, da USP. “Eu já vi e
vivi muitas crises financeiras ao longo da minha vida acadêmica”, diz. “Falta
de dinheiro não é novidade, mas eu nunca tinha visto um governo que é
anticiência. Isso é inédito. Mesmo na ditadura, os militares acreditavam na
ciência.”
Fogo amigo?
“A gente precisa trabalhar junto”, disse
o ministro do MCTIC, Marcos Pontes, na abertura de uma exposição itinerante sobre os 50 anos do FNDCT,
dia 22 de agosto, que tinha o presidente da Capes na plateia. Ele ressaltou
explicitamente a importância da “conexão” entre os ministérios da Ciência e da
Educação. “A gente precisa focar no objetivo; a gente precisa focar no inimigo,
digamos assim, que está lá fora. Aqui dentro a gente não pode ter inimigo; aqui
dentro a gente precisa se juntar para vencer.”
Em um encontro com jornalistas em
Brasília, dia 9 de outubro, Pontes falou também sobre a possibilidade de fusão
das agências de fomento. “A junção do CNPq com a Capes não faz muito sentido,
exceto na parte econômica. E, se houver a necessidade de juntar os dois, o
local ideal é dentro do ministério que trabalha com pesquisa e desenvolvimento,
que é a finalidade dessas bolsas”, afirmou o ministro, segundo reportagem do Correio Braziliense.
A Associação dos Servidores do CNPq
emitiu uma nota na sequência, criticando a fala do ministro: “É muito preocupante
para nós gestores em ciência e tecnologia que o titular do Ministério
desconsidere as diferenças de atuação entre CNPq e Capes e que reverbere o coro
desinformado (e por vezes mal-intencionado) que defende a união de ambas as
agências”.
O MCTIC foi procurado mas não se
manifestou até o fechamento desta reportagem.
“Em todos os países desenvolvidos
existem múltiplas agências governamentais para o apoio à pesquisa científica e
tecnológica. Reafirmamos a importância da manutenção das três agências de
fomento federais, CNPq, Finep e Capes, e com recursos compatíveis com suas
atribuições. Qualquer extinção/fusão/incorporação dessas agências será
prejudicial e lesiva ao funcionamento do Sistema Nacional de ciência,
tecnologia e inovação”, diz a carta da ICTP.br.
Fonte: Publicado no Jornal da USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário