"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A necessidade de reconexão social do Ministério Público

Por Marcos Luiz Alves Melo* e Jonata Wiliam Sousa da Silva*
Imagem: Eugênio Aragão (Lula Marques/Agência PT)
O Ministério Público (MP) como instituição foi recepcionado em sede Constitucional somente em 1934, figurando como auxiliar do Poder Executivo. Permaneceu nesta categoria mesmo após as Cartas Políticas de 1937 e 1967, após o Ato Institucional nº 05/1969 e a Emenda Constitucional nº 01/69.

A organização institucional do Ministério Público só se deu através da Lei Complementar n° 40, de 14 de dezembro de 1981, contemplando relativa autonomia à Instituição e aos seus membros; por fim, o fortalecimento do Ministério Público nos moldes atuais só se deu com a promulgação da Carta Magna de 1988.

No Texto Constitucional de 88, fora conferida uma série de prerrogativas e garantias, tanto no que se refere a própria instituição quanto aos seus membros. Neste sentido, cabe mencionar o caput do art. 127 da Constituição Federal de 1988, que estabelece que o Ministério Publico “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Sobre a definição do Ministério Público na Constituinte de 88, se manifesta com muita percuciência o membro do Grupo Nacional do Ministério Público (GNMP) Claudio Barros Silva:

“A Constituição Federal de 1988 retratou, com muita sobriedade e espontaneidade, o resultado da evolução do perfil institucional do Ministério Público, destacando-o, diferenciadamente, das demais instituições públicas ligadas à administração da justiça, alterando radicalmente sua estruturação e organização, conferindo autonomias dedicadas, apenas, aos Poderes do Estado, definindo, em texto constitucional, o seu conceito, que, a cada leitura repetida, mais amplo e abrangente se mostra, afirmando princípios que traduzem o seu perfil nacional, concedendo aos seus membros os mesmos poderes, deveres, garantias e vedações reconhecidas aos magistrados.” [1]

Durante o processo de transição após o fim do regime autoritário e quando em vigor os preceitos da Carta Cidadã, o Ministério Público se transfigurou numa instituição protagonista na salvaguarda dos direitos e garantias individuais e coletivos e um dos bastiões na luta contra a corrupção endêmica que assola o país, dando grande exemplo de importância institucional e enchendo de esperança os corações que carregavam o trauma dos regimes autoritários de outrora.

Nesse diapasão, restou inconteste o protagonismo do Ministério Público como titular da ação penal pública e como fiscal da lei nas ações cíveis lato sensu e foram consolidadas a sua autonomia em relação aos Poderes da República e importância de sua posição e atuação na consolidação da cidadania e do Estado Democrático de Direito.

Todavia, uma frase marcada na cultura popular é que “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”, e com o órgão ministerial não foi diferente; em 2004, a Emenda Constitucional nº 45 instituiu o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão de controle externo do MP Nacional, incumbido de realizar a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do Ministério Público no Brasil e de seus membros, respeitando a autonomia da instituição, através de seus 14 membros, que representam setores diversos da sociedade. [2]

Noutro giro, repise-se, é notável que nos últimos anos, o Ministério Público tem assumido um protagonismo ainda maior no seio social, sobretudo na esfera criminal, onde atua como titular da ação penal e parte indissociável dos procedimentos de investigação, lado a lado com os órgãos de investigação policial.

A despeito deste protagonismo, alguns representantes do Ministério Público, em caráter individual e em diálogos em redes sociais, têm constantemente aparecido em destaque na mídia em virtude de suas atuações e manifestações, entretanto, com posturas bem distantes daquelas imaginadas pelos Constituintes e pelo seio social que legitimou a instituição.

A título de exemplos, citamos, primeiramente, uma manifestação de um promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que em um grupo privado em rede social, justificando o uso obrigatório de roupas brancas para empregadas domésticas em um clube de luxo da cidade, declarou que: “a cor branca reflete o calor do sol, em vez de absorvê-lo. É por isso que negro, em geral, é catinguento, porque sua muito e, não tomando a quantidade diária certa de banhos, acaba fedendo mais do que o recomendável“. [3]

Já à época, em outubro de 2017, entendemos (em artigo publicado aqui) que a publicação deveria servir de reflexão à carreira, pois mesmo sendo uma manifestação individual, foi feita em um grupo de representantes do Ministério Público e teve muitas manifestações de apoio, demonstrando um claro sinal de distanciamento das funções institucionais trazidas pela Constituição Federal.

Em razão dessa lamentável publicação, nos manifestamos no sentido de requerer uma postura forte por parte dos órgãos de controle externo na coibição dessa conduta lastimável, visto que:

“O momento de fragilidade que hoje vivemos em nosso contexto social exige que tenhamos firmeza na defesa da dignidade da pessoa humana, bem como dos demais princípios que asseguram os direitos e garantias individuais e coletivos, como reclama nossa Constituição Federal, caso contrário, estaremos a pôr em cheque a supremacia da nossa Carta Magna, dando carta branca para todo o tipo de violações e arbitrariedades que possam advir.” [4]

Todavia, os holofotes continuaram a pairar vergonhosamente sobre o Ministério Público, vez que em junho deste ano (2019), através do portal “The Intercept”, diversos portais de notícias passaram a divulgar o conteúdo de mensagens trocadas por procuradores de justiça em grupo de aplicativo de mensagens instantâneas, trazendo à lume uma sorte de ilegalidades e violações éticas, tais quais conluios espúrios com juiz de primeiro grau, palestras privadas subsidiadas por empresas sob investigação criminal, articulações para atuação política, mau uso da colaboração premiada como tática de coerção, coordenação de grupos da sociedade civil para pressionar julgadores dos Tribunais Superiores, dentre outros malabarismos, vilipendiando por completo a atuação em favor da sociedade norteada pelo princípio da impessoalidade e buscando a satisfação de interesses privados. [5]

Em razão dessa vergonhosa atuação, o ex-procurador de justiça e ex-ministro da justiça Eugênio Aragão, em carta aberta destinada a seus (ex)-colegas de Ministério Público, explicou a razão dessas ilegalidades em série cometidas pelos procuradores federais em seus diálogos:

“Subiu-lhes à cabeça. Perderam toda capacidade de discernir entre o certo e o errado, entre o público e o privado, tamanha a prepotência que os cega. Não têm qualquer autocrítica. Nem diante do desnudamento de sua vilania, são capazes de um gesto de satisfação, de um pedido de desculpas e do reconhecimento do erro. Covardes, escondem-se na formalidade que negaram àqueles que elegeram para seus inimigos.”

E ainda, reconheceu esse desvio do Ministério Público Federal das suas atividades precípuas, bem como pôs em cheque o sucesso da instituição na representação da sociedade em geral nos moldes pretendidos quando da Constituinte, nos seguintes termos:

“Sangro na alma sempre que constato a monstruosidade em que se transformou o Ministério Público Federal. E vocês são a toxina que acometeu o órgão. São tudo que não queríamos ser quando lutamos, na Constituinte, pelo fortalecimento institucional. Esse desvio de vocês é nosso fracasso. Temos que dormir com isso.” [6]

Tais fatos, per se, já seriam graves o suficiente, mas nada obstante, ainda neste mês (setembro/2019), tivemos nova manifestação de representante do Ministério Público, desta vez no estado de Minas Gerais, reclamando da falta de aumento salarial para o ano de 2020, indagou em tom indignado:

“Como é que o cara vai viver com R$ 24 mil? Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado. Eu não sou acostumado com tanta limitação. Ou se nós vamos ficar nesse miserê aí?”

Não satisfeito, o referido procurador ainda relatou o “enorme sacrifício” que tem feito em razão da política de “austeridade”:

“Estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou gastando R$ 8 mil. Pra poder viver com os R$ 24 mil. Eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimido, à base de antidepressivo” [7].

Tais manifestações, que extrapolam (em muito) os níveis de absurdo, soam como um verdadeiro achincalho à realidade nacional, que, embora o referido representante da sociedade aparente não saber, pesquisas demonstram que a média salarial no Brasil em 2019 é de R$ 2.340,00 (dois mil trezentos e quarenta reais), e que sua situação de “miserê” é melhor do que a de 99% dos brasileiros [8]

A soberba que sobrepuja o senso de ridículo do procurador escarnece a realidade de inúmeras famílias brasileiras que se sustentam com um ou dois salários mínimos, e tantas outras que parcamente sobrevivem com menos de um salário mínimo nacional, num país onde aqueles que se atrevem a apontar a pululante desigualdade social que nos acomete são oprimidos por aqueles que vivem opulentamente com “míseras” fortunas.

Esse é, dentre todos os exemplos aqui trazidos, o mais claro sinal do total afastamento de parcela do Ministério Público da realidade social, sobretudo daqueles que atuam na seara criminal. Portanto, esses indícios acima trazidos denotam uma parcela do Ministério Público racista, elitista, retrógrado e conservador, totalmente alheio ao cenário nacional, que necessita urgentemente de uma reaproximação dos seus valores primordiais.

A presente análise não se presta a atacar o Ministério Público como instituição; pelo contrário: devemos reconhecer a importância do Parquet para o nosso Estado Democrático de Direito, ressaltar a atuação exemplar de muitos dos seus membros e a articulação coletiva em prol da retomada dos valores pelo qual a instituição se pauta, como é o caso do coletivo “Transforma MP”, mas não podemos fechar os olhos, tampouco deixar os ouvidos moucos à realidade que se apresenta cada vez mais constante em episódios lastimáveis dos representantes, de modo que pugnamos mais uma vez por um controle externo mais efetivo e menos corporativista.

O MP que queremos e precisamos é um órgão autônomo, independente, pautado pelo respeito à diversidade, à pluralidade e verdadeiramente compromissado com o Estado Democrático de Direito, atuando não exclusivamente em favor de parcelas específicas da sociedade, mas sim à sociedade como um todo e em toda a sua amplitude, deixando de lado cartas de compromisso com setores retrógrados e reiterando o compromisso irrestrito com a Constituição Federal, pois só assim poderemos seguir em frente em direção a um país melhor, visto que o amadurecimento da nossa República está diretamente ligado ao amadurecimento do Ministério Público em todas as suas esferas, bem como a sua legitimidade perante a sociedade.


*Marcos Luiz Alves Melo é Professor em Penal e Processo Penal e especialista em Docência Universitária pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador/BA, Advogado Criminalista

*Jonata Wiliam Sousa da Silva é Vice-presidente do Escritório Modelo Professor Manoel Ribeiro da UCSAL/BA no biênio 2014-2016. Membro da Comissão da Comissão Especial de Sistema Prisional e Segurança Pública da OAB/BA, membro da Comissão de Direito Criminal da OAB/BA, Membro Associado do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP. Advogado Criminalista.



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