"A extrema-direita age para
esvaziar o conteúdo da democracia nos seguintes pontos: aumentando as
desigualdades, reduzindo os direitos sociais e trabalhistas, atacando direitos
de liberdade e direitos de minorias, estabelecendo aparelhamento e intromissão
nos sistemas de controle do Estado, esvaziando os sistemas de controle e de
participação popular a exemplo dos conselhos participativos", diz o
colunista Aldo Fornazieri
*Por Aldo
Fornazieri
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Jair Bolsonaro (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker) |
Uma das formas mais comuns de cometer
erros na ação política consiste em errar nos diagnósticos, nas avaliações de
conjuntura. Na sua essência, a política consiste numa atividade orientada para
a conquista do poder ou para influenciar o exercício do poder. Não há política
sem comando, sem liderança, pois se trata de uma atividade que visa conferir
direção e sentido ao curso dos acontecimentos humanos no tempo. Os erros de
avaliação se traduzem em erros estratégicos e táticos, o que implica na perda
da capacidade de conferir direção e sentido ao curso dos acontecimentos.
Geralmente, as forças políticas que cometem esses erros terminam por assumir
posições defensivas e mergulham na apatia, na incapacidade de agir, de
organizar e de mobilizar. Este é o quadro sinótico da situação das oposições ao
governo Bolsonaro.
As oposições não conseguiram fazer nem
avaliações sérias e profundas das razões que levaram à vitória de Bolsonaro e
nem conseguiram faz um diagnóstico preciso da natureza do seu governo. A
avaliação inicial de alguns partidos e analistas consistia em apontar que o
Brasil estava caminhando para a constituição de um governo fascista. Trata-se
de um claro equívoco. O que caracteriza o fascismo consiste na existência de um
movimento fascista que usa a violência política sistemática para a conquista ou
manutenção do poder. Nem o PSL é tal movimento e o que se convenciona chamar de
bolsonarismo é um conjunto de grupos e indivíduos informes. O fato de Bolsonaro
esposar algumas ideias fascistas não autoriza a conclusão de que se está diante
de um governo fascista.
Outra tese equivocada que circula em
várias análises é a de que o governo Bolsonaro se encaminha para uma ditadura
de tipo militar. Não há nenhuma evidência, nenhum fato, nenhum movimento que
respalde tais avaliações. Nem há disposição ou inclinação no alto comando das
Forças Armadas no sentido de avalizar tal aventura. Não é disto que se trata,
evidentemente.
Os próprios líderes da extrema-direita,
em vários países, vêm proferindo discursos em defesa da democracia e denunciam
como riscos potenciais à mesma os partidos e líderes de esquerda, o socialismo,
o comunismo, Cuba, Venezuela etc. Foi isto que Bolsonaro fez com seu discurso
na ONU. Onde a extrema-direita governa, aparentemente, não há ameaças de
interrupção dos processos eleitorais.
Como as oposições se perderam nas
avaliações, não conseguem se achar na ação. Passados nove meses desde o início
do governo elas não sabem ainda qual frente formar, em que frente participar,
se formam uma frente e qual a forma da frente. Muitas das avaliações davam pouco
tempo de vida a Bolsonaro na presidência. Ele seria substituído polo vice. O
governo já teria acabado nos dois ou três primeiros meses. A reforma da
Previdência não seria aprovada e por aí vai.
Então, o que se vê hoje nos governos e
nos líderes da extrema-direita é uma defesa da forma da democracia enquanto
agem para esvaziar o seu conteúdo. Na medida em que o conteúdo da democracia já
vinha sendo esvaziado por governos de centro e de centro-esquerda, a
centro-direita teve seu caminho facilitado e decidiu percorrê-lo sem as
sutilizas e boa educação dos governantes de punho de renda. A extrema-direita
decidiu agir de forma mais grotesca e grosseira, sem as boas maneiras, sem os
discursos politicamente corretos, sem as mediações das velhas instituições democráticas
decadentes e corrompidas.
Os governantes da extrema-direita, ao
colocarem o enferrujado sistema de mediações num segundo plano, decidiram agir
como bonapartistas digitais, estabelecendo uma relação direta com o eleitorado,
com o povo, atacando os parlamentos e a mídia tradicional. Trump e Bolsonaro
são dois típicos bonapartistas digitais.
O Brasil, a rigor, nunca teve uma
democracia efetiva pelos critérios clássicos de sua definição. Alexis de
Tocqueville, no seu clássico “A Democracia na América”, identificou a igualdade
como o principal de distintivo valor da democracia. Igualdade nos vários
aspectos: perante a lei, igualdade de oportunidades, igualdade como senso
reduzido das diferenças, igualdade como equidade etc. Este sempre foi o grande
problema da democracia brasileira.
A extrema-direita age para esvaziar o
conteúdo da democracia nos seguintes pontos: aumentando as desigualdades,
reduzindo os direitos sociais e trabalhistas, atacando direitos de liberdade e
direitos de minorias, estabelecendo aparelhamento e intromissão nos sistemas de
controle do Estado, esvaziando os sistemas de controle e de participação
popular a exemplo dos conselhos participativos, atacando a legitimidade das
ciências e das universidades em nome de valores conservadores, agredindo
manifestações cultuais humanistas e universalistas em nome de um nacionalismo
tanto xenófobo quanto falso e assim por diante. Em suas ações de esvaziamento
do conteúdo da democracia os governos de extrema-direita contam com o concurso
ora do Judiciário, ora do Legislativo.
Com a democracia esvaziada em seu
conteúdo, esses governantes agem como déspotas. A possível existência de um
despotismo na democracia, ao que se saiba, foi cogitada, antes de todos, por
Tocqueville ao elencar os possíveis males em que poderiam incorrer a democracia
e a igualdade. A mediação do poder central sem corpos intermediários era
apontada por ele como uma das características principais do despotismo na
democracia. De fato, Bolsonaro não esvaziou apenas os conselhos participativos,
mas bloqueou a participação de todas as instituições da sociedade civil – dos
sindicatos às ONGs passando por instituições tradicionais como a OAB, a CNBB
etc.. A sociedade civil brasileira sempre foi gelatinosa. Agora está
liquefeita, amorfa.
Sem organizações ativas e sem
mobilizações, as pessoas permanecem isoladas, mergulhadas na sua própria
solidão, sem potência para lutar. O capitalismo anárquico pós-moderno,
constituído por multidões de indivíduos todos estranhos uns aos outros,
favorece o despotismo na democracia. Tocqueville afirma que esse despotismo não
é tão violento como o antigo. É mais suave, mas mais extenso: “degrada os
homens sem atormentá-los”. É mais de tutores do que de tiranos. Mas esses
tutores querem fazer valer sua vontade absoluta.
Para combater o mal do despotismo,
Tocqueville aponta para algumas saídas. O exercício da liberdade política. A
liberdade política não é algo que deve estar apenas garantido nas leis. Não há
liberdade política sem atividade, sem participação e sem mobilização dos
cidadãos. Existem duas formas para fazer isto: 1) pela participação no poder
local, como municípios, bairros, prefeituras regionais etc., 2) pela
participação nas entidades da sociedade civil como sindicatos, associações
culturais, de bairro, organizações de vários tipos, partidos políticos.
No Brasil, as duas coisas vão mal. Não
há uma tradição de participação e de controle no poder local. Este também é um
poder esvaziado em face da hipercentralização do poder no plano federal. Por
outro lado, como se disse, a sociedade civil sempre foi gelatinosa. Boa parte
das organizações e associações que existem são aparelhadas por interesses de
pequenos grupos. Os partidos estão sequestrados por burocracias incompetentes
que defendem privilégios, tanto os seus quanto os privilégios incrustrados no
Estado brasileiro. Somente a juventude, com novos movimentos, com novas
bandeiras, com novas lutas, pode romper este sistema passivo, omisso e
conivente com o capitalismo predatório vigente no Brasil.
*Aldo Fornazieri – Professor da Escola
de Sociologia e Política (FESPSP).
Fonte: Publicado no Brasil 247
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