"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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sábado, 13 de novembro de 2021

Moro e Deltan: a política suja da Lava Jato e a necessária responsabilização dos agentes. Por Tânia Maria Saraiva de Oliveira

"O uso dos cargos públicos de juiz e procurador com fins políticos, em escancarada parcialidade e inúmeras transgressões, (...) deveria ser óbice para que esses indivíduos possam se candidatar. Na verdade, é um verdadeiro escárnio que suas artimanhas com o uso do aparato do Estado e do dinheiro público, camufladas sob um véu de heróis da nação, sejam agora blindadas com a possibilidade de acessarem um cargo político, quando o verdadeiro debate a ser feito é: quando serão apuradas as responsabilidades e os crimes dos agentes da Lava Jato?"

A Lava Jato – e isso já foi dito, além de comprovado à exaustão – foi a maior farsa jurídica já produzida e o maior escândalo judicial da história brasileira - Nelson Almeida / AFP

"A trajetória de Moro é um escândalo em si mesma"

“Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?”

(Carlos Drummond de Andrade)

Pode-se afirmar, sem muitas delongas, que a filiação de Sérgio Moro a um partido político, a tempo de lançar candidatura para as próximas eleições, e a exoneração de Deltan Dallagnol do Ministério Público Federal no mesmo período, surpreendem zero pessoas. Exceto, talvez, pelo cálculo político que pudessem fazer do momento ideal de se apresentarem como nomes a disputar cargos públicos eletivos.

O impressionante é que isso seja tratado como um processo normal pela grande imprensa e pelas instituições, e que ainda se cogite que ambos se coloquem como candidatos da luta contra a corrupção, quando os fatos já demonstraram, sem sombra de qualquer dúvida, que houve o uso do aparato do sistema de justiça com fins meramente políticos e eleitorais, sem qualquer propósito republicano. A Lava Jato serviu para retirar o principal adversário de Jair Bolsonaro da disputa em 2018 de maneira ilegal, além de contribuir para a demonização da prática política, auxiliando, fundamentalmente, a construção da vitória da extrema direita, com a eleição do presidente e de bancadas expressivas no Congresso Nacional e nas Assembleias legislativas Brasil afora, vinculadas às pautas reacionárias.

A Lava Jato – e isso já foi dito por juristas e analistas dentro e fora do Brasil, além de comprovado à exaustão – foi a maior farsa jurídica já produzida e o maior escândalo judicial da história brasileira. Suas consequências, infelizmente, perdurarão por muito tempo ainda no país, seja no âmbito econômico, com a destruição de empresas e imenso impacto no desemprego, seja no âmbito das garantias do devido processo legal constitucional.

O distanciamento entre a verdadeira índole de Moro e de Deltan - e dos demais procuradores da Lava Jato - e o discurso que tenta apresentá-los como cidadãos de intenções nobres, é um devaneio intencional feito para provocar uma ideia distorcida na sociedade.

Bolsonaro foi acusado pelo ex-ministro Sérgio Moro de tentar intervir em inquéritos da PF relacionados ao clã do presidente / C. Antunes/Agência Brasil

Quando Sérgio Moro virou ministro da Justiça, aceitando o cargo no final de 2018, ainda como juiz, qualquer fachada de simulação de imparcialidade já caiu por terra. As mensagens divulgadas do aplicativo Telegram, a partir de junho de 2019, foram a pá de cal sobre qualquer ilusão de republicanismo na Lava Jato, revelando, inclusive, Deltan Dallagnol em sua intenção de se candidatar ao Senado desde 2018 e mais, que a candidatura seria parte de uma estratégia nacional para o Ministério Público Federal lançar um candidato por Estado.

A trajetória de Moro é um escândalo em si mesma. De juiz que condenou e prendeu Lula a ministro de Bolsonaro. Deixou o cargo e virou diretor de disputas e investigações da consultoria Alvarez & Marsal, escolhida pela 1ª Vara de Falências de São Paulo como administradora da recuperação judicial da Odebrecht, empresa na qual o ex-magistrado atuou ativamente nos processos que julgou os executivos e homologou o acordo de leniência do grupo. Moro encerrou o contrato com a consultoria no dia 31 de outubro para se filiar ao Podemos.

O uso dos cargos públicos de juiz e procurador com fins políticos, em escancarada parcialidade e inúmeras transgressões, inclusive de benefícios financeiros por meio de palestras, diárias, passagens, vendas de livros, deveria ser óbice para que esses indivíduos possam se candidatar. Na verdade, é um verdadeiro escárnio que suas artimanhas com o uso do aparato do Estado e do dinheiro público, camufladas sob um véu de heróis da nação, sejam agora blindadas com a possibilidade de acessarem um cargo político, quando o verdadeiro debate a ser feito é: quando serão apuradas as responsabilidades e os crimes dos agentes da Lava Jato?

Na quarta-feira (10), o Tribunal de Contas da União determinou que procuradores que atuaram na operação Lava Jato devolvam os recursos de diárias e viagens que receberam quando trabalhavam na força-tarefa que investigou desvios na Petrobras. A conclusão é de que houve prejuízo ao erário público e violação ao princípio da impessoalidade, com a adoção de um modelo “benéfico e rentável” aos integrantes da força-tarefa, com milhares de reais em diárias e passagens. Além dos outros cinco procuradores, Dallagnol será citado para devolver solidariamente recursos aos cofres públicos por ter idealizado e coordenado o modelo de trabalho do grupo de procuradores da operação. Se condenado em definitivo, ficará inelegível e terá seus planos frustrados.

O fato é muito importante, assim como foi a condenação de Diogo Castor no CNMP, no dia 18 de outubro, por financiar um outdoor sobre a “República de Curitiba”. A revelação de todos os fatos gravíssimos não podem ser contemplados sem a consequente responsabilização.

Diante do quadro de nossa conjuntura, o risco para a democracia com esses indivíduos é tão ou mais intenso do que com os bolsonaristas declarados. O projeto de poder e de país assemelha-se no conteúdo econômico, antidemocrático e antissocial, nos métodos de artifícios à margem da lei, bem como nos resultados nefastos. A passagem de uma vertente para a outra obedeceria apenas ao plano imaginário das vias distorcidas de quem são os personagens a encarnar o poder.

Bolsonarismo e lavajatismo não resistem ao mais simples teste de realidade, senão como gêmeos siameses, onde seus principais agentes foram mistificados como oráculos da antipolítica para se revelarem apenas como farsantes, que utilizam os sentimentos de frustração social como mecanismos de experimentações para criar espaço de confiança, imprescindível para sua ascensão ao poder.

*Tânia Maria Saraiva de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. Membra do Grupo Candango de Criminologia da Unb - GCcrim/Unb. Membra da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia - ABJD.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo




quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Cristiana, por Tereza Cruvinel

"Com Cristiana Lobo vivi um bom pedaço da minha vida profissional e disso resultou uma amizade perene, inabalada pela separação dos caminhos no trabalho. Quando parte alguém assim, morre-se um pouco também. É como me sinto nessa manhã triste", escreve Tereza Cruvinel

Cristiana Lobo (Foto: Reprodução)

Com Cristiana Lobo vivi um bom pedaço da minha vida profissional e disso resultou uma amizade perene, inabalada pela separação dos caminhos no trabalho. Quando parte alguém assim, morre-se um pouco também. É como me sinto nessa manhã triste, olhando o mar de Maceió, onde vim para uma palestra e onde ainda ontem me perguntavam sobre ela.

Eu e Cristiana trabalhamos juntas no Globo por dez anos, nos tempos inesquecíveis da transição, do enterro da ditadura e do início da construção democrática. Atravessamos juntas a campanha das diretas, a eleição de Tancredo e a Nova República, a Constituinte, os anos Sarney, FH, Lula, várias legislaturas do Congresso.

No Globo,  por algum tempo ela foi minha interina na coluna Panorama Político, inclusive durante a minha licença maternidade. Rodrigo, que ela viu então nascer, hoje é diplomata e foi recentemente removido para Nova York. Ela fez questão de mandar por sua filha Bárbara um presente, um voucher para um jantar em Nova York, num restaurante de que ela gostava. Assim era a Cris, sempre generosa, tocando delicadamente o coração das pessoas. Fazendo-se também por isso inesquecível.

Entre 1997 e 2007, passamos outros dez anos juntas na Globonews, como comentaristas do Jornal das Dez e de momentos especiais, como eleições. Eu e ela fomos as primeiras comentaristas do canal, desde sua implantação, criando uma função até então praticamente inexistente entre nós. Estando sempre juntas no vídeo, com nosso biotipo moreno, e andando muito juntas pelo Congresso e outras plagas, éramos muito confundidas por telespectadores que nos encontravam por aí. Me chamavam de Cristiana e a ela de Tereza. Em 2007 deixei as Organizações Globo para ir criar a EBC/TV Brasil, mas nunca nos perdemos uma da outra. Posso dizer melhor: Cristiana nunca largou minha mão. 

Ela era uma jornalista completa, que combinava a garra de repórter na apuração com a capacidade de analisar, interpretar e projetar os efeitos dos fatos apurados. Quando deixou O Globo para ser colunista política no Estadão, após ter sido minha interina, ela buscava a possibilidade de exercer plenamente essas capacidades. Mas foi na Globonews que ela acabou encontrando espaço para desempenhar seu papel tão singular: apurava e comentava, não se limitando nunca a derramar falações sobre o já apurado. Alguma informação ela sempre acrescentava. Tinha paixão pelo furo, e deu muitos. Nunca se deixou levar também pela postura arrogante assumida por alguns jornalistas, a de donos da verdade autorizados a julgar, não pelos fatos, mas pelas próprias convicções ou conveniências. Não lhe faltavam coragem, lucidez, argúcia, independência.

Cristiana pertenceu a uma escola de jornalismo em extinção, comprometida com mandamentos profissionais que foram sendo relegados. O maior deles, o compromisso com a verdade, e  por isso angariou tanto respeito e admiração. Ela inovou, ao atuar como repórter que comentava. Vindo do jornalismo impresso, dominou logo o video, o uso do microfone, fazia entradas ao vivo com enorme segurança. Era generosa com os colegas: compartilhava fontes e encontros, dava dicas, ensinava o caminho das pedras aos mais jovens.

Enquanto trato de voltar para Brasilia para me despedir dela, escrevo estas linhas, mas penso mesmo é nos bons momentos que vivemos juntas. Agora em setembro, quando da partida de Rodrigo, recordamos as viagens que fizemos juntos, ela com Murilo, Bárbara e Gustavo. Eu com Rodrigo. E quando era hora das malas ou de qualquer problema prático, eu dizia: Cristiana, chame o nosso marido! E lá vinha o Murilo. 

Recordamos uma viagem a Tiradentes e Ouro Preto, onde nos hospedamos numa pousada que fica na casa que pertenceu à arquiteta Lota Macedo Soares e sua companheira de então, a poeta americana Elizabeth Bishop. E como eu e a Suzy, irmã dela, dormimos no mesmo quarto, Cris passou o dia me chamando de Lota e à sua irmã Elizabeth. O apelidos ficaram por muito tempo.

Lembramo-nos também de quando fomos a uma festa de aniversário de Marta Suplicy e José Dirceu, durante o governo Lula, em São Paulo. Tomamos alguns uisques com muito energético. Não sabíamos que a bebida pilhava, estávamos querendo apenas ralear o uisque para continuarmos papeando com as fontes. Resultado, tivemos uma bruta insônia, conversamos a noite inteira. Pegamos cedo um avião para Brasília e fomos almoçar com uns políticos na casa de Jorge Bastos Moreno, nosso inesquecível compadre, e falávamos como duas matracas. Vocês se drogaram, brincava o Moreno.

Recordamos estas e outras passagens e prometemos que quando ela ficasse boa voltaríamos a viajar. Quem sabe iríamos a NY e jantaríamos no tal restaurante recomendado ao Rodrigo, com voucher para ele pagar a conta.

Cristiana, eu daria tudo para ter falado mais com você nos últimos dias, e não o fiz. Para termos viajado novamente, e jamais faremos isso. Eu daria tudo para podermos tricotar longamente sobre a vida, para comprarmos juntas mais bonecas do Jequitihonha em Belo Horizonte,  para tomar café no Senado atormentando os senadores, para fazer de novo tantas coisas que fizemos juntas. Para voltarmos à Índia, onde nos divertimos tanto cobrindo a viagem de FH!

Não tenho palavras para Murilo, Bárbara, Gustavo, Suzy, Leti e todos da "alcateia", como eu chamava a familia de brincadeira. Cristiana era uma força enorme e poderosa na vida deles. O vazio será imenso mas pensem sempre que ela foi grande em tudo: grande jornalista, grande figura humana, mãe, esposa, mulher, avó, amiga....

Descanse, amiga.


Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.



sábado, 6 de novembro de 2021

Feminejo: Marília Mendonça colocou mulheres como protagonistas na música brasileira. Por Nayá Tawane

Termo ficou conhecido a partir da presença de mulheres no sertanejo com temáticas de respeito, direitos e até denúncias

Por Nayá Tawane
Brasil de Fato | Brasília (DF)
Cantora faleceu na tarde desta sexta-feira (5) vítima de um acidente de avião - Reprodução

Com letras sobre desilusões amorosas, superação de relacionamentos abusivos, autoestima feminina e apoio entre mulheres, Marília Mendonça trouxe o termo Feminejo para o cenário desse estilo musical ainda tão masculino. Apesar de ser uma das principais representantes dessa tendência, Marília sucedeu várias vozes femininas que começaram a ocupar o sertanejo brasileiro no início da década de 80, como Roberta Miranda, Irmãs Barbosa e Irmãs Galvão.

A "Rainha da Sofrência", como ficou conhecida, compôs e cantou várias músicas que inspiraram diversas mulheres do sertanejo a tomarem os palcos e enfrentarem o machismo ainda muito ligado a esse meio, como é o caso de Biahh Cavalcante, que com 4 anos de carreira, conta que as canções de Mendonça a ajudaram a seguir seu sonho como cantora e compositora sertaneja.
Cantora se inspirou em Marília Mendonça e destaca que assédio ainda é comum no Sertanejo / Biahh Cavalcante/ Divulgação

"Já encarei muito machismo e assédio sim, na estrada, principalmente por ser uma mulher cantando. Temos uma imagem sujeita a muitas coisas, de estar ali cantando no palco, às vezes com uma roupa mais chamativa, e sofremos muito com isso", expõe.
As mulheres vem tomando conta do mercado sertanejo há um bom tempo. Buscamos justiça através das nossas músicas
As composições cantadas pelas mulheres do sertanejo exprimem comportamentos que antes eram permitidos somente para homens, como beber, ir ao bar e ter liberdade sexual. Além disso, a temática que envolve os direitos das mulheres sempre esteve presente no Feminejo. A dupla Simone e Simaria lançou a música "Ele bate nela", para denunciar a violência doméstica.

Na canção, apresentam inclusive o receio que muitas mulheres têm ao terminarem um relacionamento abusivo e violento: "Eu tô sem saída e se eu for embora, ele vai acabar com a minha vida”.

Ter referências femininas neste estilo musical é um recado para uma sociedade que ainda oprime e violenta tantas mulheres, como afirma Cristiele, da dupla Mayele e Cristiele.
Cantoras afirmam que Feminejo empodera mulheres / Mayele e Cristiele/ Divulgação

"A sociedade evolui quando mulheres ocupam estes cenários artísticos, porque é muito mais que se tornar uma simples cantora, é mostrar que a mulher pode ser o que ela quiser e onde ela quiser. É o empoderamento feminino que alcança outras mulheres".

Com uma carreira de 14 anos, Marília Mendonça deixa um legado artístico que encorajou muitas mulheres a tomarem os postos da música sertaneja, como descreve Mayele.

"Eu me sinto muito feliz em fazer parte do mundo da música sertaneja. São letras que falam de independência, realizações de sonhos e crescimento. Isso é um marco não só na música sertaneja, mas para a cultura brasileira."

Edição: José Eduardo Bernardes





sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Moro e Deltan, tornem-se no que são!, por Paulo Brondi

Para trás, Deltan e Moro deixaram um país arrasado e um histórico continuado de estupro das regras e princípios processuais, além de um Ministério Público em frangalhos e nas cordas.

Por Paulo Brondi

Fernando Frazão/Lula Marques

Que maravilha, caíram as máscaras! Enfim, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, os chefetes da “Operação Lava Jato”, despiram-se de suas fantasias.

Não se engane, nobre e especulativo leitor: a Lava Jato não pretendeu combater a corrupção. Deltan e seu séquito atuaram ideologicamente a fim de retirar da corrida eleitoral você-sabe-quem. Após isso, nada mais fizeram. Sumiram do mapa.

Os áulicos da República de Curitiba, coalhada de bolsonaristas e antipetistas, abandonaram seus postos e picaram a mula. Alguns, inclusive, para escritórios de ponta na advocacia criminal. O outrora guardião-mor da moral nacional, Deltan Dallagnol, escafedeu-se assim que a força-tarefa caiu em desgraça, aparecendo de quando em vez nalgum tuíte enfadonho e vazio, como do estilo. A coisa, é óbvio, perdera o encanto. A missão estava cumprida.

Enquanto juízes, promotores e procuradores faziam seu trabalho de forma digna, sóbria e silenciosa por este país-continente, em rincões esquecidos, um grupelho virava manchete dia após dia, concedia entrevistas, ia a convescotes, deixava-se fotografar em poses cafonas de falsos heróis, dava palestras e sermões, pagava outdoor de autoelogio.

A essa gente, e a todos do Ministério Público brasileiro, a sempre atual lição de Cordeiro Guerra:

“Não lhe compete, contudo, mudar a ordem jurídica, substituir-se a ela, pois a lei tem uma longa história e traduz a experiência multissecular de homens afeitos ao trato da coisa pública. Entretanto, há quem pretenda, de boa ou má-fé, exigir do Ministério Público ou do Poder Judiciário a reforma das leis que têm simplesmente que aplicar com inteligência, probidade e firmeza […] A função do Ministério Público é promover o bem comum através da ordem jurídica estabelecida na Constituição e nas leis do país […] No exercício de suas atribuições o Ministério Público só deve conhecer, dentro da lei, o limite do possível e jamais ficar aquém do necessário […] para acusar, é preciso ter caráter, firmeza e veracidade, probidade, uma integridade acima do comum, e, ainda, cultura, servida pela experiência de um espírito arguto e atento às realidades do seu tempo e do seu meio” (A arte de acusar, Forense Universitária, 1989, p. 41).

Para trás, Deltan e Moro deixaram um país arrasado e um histórico continuado de estupro das regras e princípios processuais, além de um Ministério Público em frangalhos e nas cordas.

Quo vadis, domine? Bem, agora a dupla dinâmica resolveu se aventurar em outros campos, quiçá a carreira política. Moro se filiará ao Podemos nos próximos dias; suspeita-se que Deltan, já fora do MPF, também concorrerá a algum cargo eletivo. Quem sabe possam fazer uma dobradinha e postular a própria Presidência da República! Ótimo, seja como for, estarão no campo em que há muito já deveriam estar.

Ambos, óbvio, não o fazem pela “vontade de mudar o país e combater a corrupção”; tudo vem muito bem calculado. Ninguém deixa uma profissão, com ótimo salário, assim, da noite para o dia. Moro ganha um bom dinheiro hoje na advocacia (que ironia, não?!); Deltan não jogaria toda uma carreira para o ar se não tivesse seus planos já bem definidos.

Quem sabe uma boa ponta em algum escritório de advocacia? Não custa também lembrar que a exoneração manda ao arquivo os inúmeros procedimentos administrativos que tinha contra si no Conselho Nacional do Ministério Público e que lhe poderiam render – justa ou injustamente – gravíssimas punições, até mesmo a demissão do cargo.

Para Moro e Deltan, a Lava Jato – como já se disse tantas vezes – era apenas um projeto de poder, e um projeto de poder que passava por criminalizar a política e sobretudo a esquerda. “Ah, mas ela prendeu e investigou gente do centro e da direita”. Quem? Eduardo Cunha, Gedel Vieira, Temer, Aécio? Bateram em defuntos, nada mais. Tudo para manter uma pretensa aparência de imparcialidade. Há quem acredite na legitimidade dessa “operação”. Há quem acredite em cloroquina, terra plana, duendes e milagres.

Deltan, em suas redes sociais, disse, com seu messianismo pueril e monótono de sempre: “Tenho várias ideias sobre como posso contribuir e serei capaz de avaliar, refletir e orar sobre essas ideias […]” Essa gente, definitivamente, perdeu todo e qualquer pudor.

Como bem dito pelo Grupo Prerrogativas em nota divulgada hoje:

“Esses dois cínicos personagens, que se notabilizaram por um conúbio promíscuo, mediante o qual fraudaram escancaradamente garantias processuais básicas, durante a chamada Operação Lava Jato, agora exibem à luz do sol seus verdadeiros propósitos. Os pretextos de “combate à corrupção”, “Brasil justo para todos”, “lei que deve valer para todos” e até “amor ao próximo”, utilizados por esses farsantes, na verdade sempre constituíram veículos de busca de interesses pessoais, à custa da destruição de empresas nacionais e da condenação de inocentes, numa tenebrosa deformação das funções da magistratura e do Ministério Público”.

Tempos esquisitos, estes, donde só nestas terras pessoas públicas tão medíocres poderiam alcançar o estrelato, tomando de assalto todas as esferas desta adoecida República. Gente inculta, provinciana e dissimulada, aspirando tão somente à fama efêmera e barata. Pobres e podres de espírito.

Ambos, Deltan e Moro, deram azo a um falso combate à corrupção, que, como bem mencionado por Jessé de Souza, “surge no Brasil como testa de ferro universal de todos os interesses inconfessáveis que não podem se assumir enquanto tais”. O lavajatismo uniu o que existe de pior: o fanatismo religioso e o moralismo messiânico.

Ao tomarem caminhos outros, prestam um bom serviço à moralidade pública, pois desnudam de vez e sem vergonha os interesses outrora inconfessáveis, embrulhados na capa do cinismo, do oportunismo e do engodo.

A inesgotável alienação do nosso povo sofrido aceitou de bom grado a cruzada moralista da dupla, a da “guerra à corrupção”, a mesma cantilena que já levou o país ao caos no passado e a 21 anos de sombras de uma ditadura civil-militar, e que em 2018 nos legou o bolsonarismo.

Fossem os dois bons leitores – o que não são – teriam em conta os inconvenientes da grandeza e os conselhos de Michel de Montaigne:

“Esforço-me por ser paciente e moderar meus desejos. Em verdade, posso ambicionar e desejar […] entretanto, nunca ocorreu desejar posições eminentes e de comando; não é o que viso: amo demais a mim mesmo. Quando sonho com ampliar minha importância, meus objetivos não se elevam muito alto […] a simples ideia do poder abafa-me a imaginação”.

A Deltan Dallagnol, “terrivelmente” religioso e frequentador da Igreja Batista, cabe o bom sermão que Deus dá ao Diabo, pela pena genial de Machado de Assis, no conto “A igreja do Diabo”:

“Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires”.

De minha parte, Deltan, alívio imenso por não tê-lo mais como colega. Creio que os inúmeros soldados anônimos deste incansável Ministério Público, respeitadores das leis e da Constituição e que não fazem desta maravilhosa instituição um mero trampolim para inconfessáveis ambições, carregam neste instante semelhante sentimento.

Vade retro!

Paulo Brondi – Promotor de Justiça. Ministério Público do Estado de Goiás


Fonte: Publicado no Jornal GGN