Por Mariana Sanches
Da BBC Brasil em São Paulo
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'Dizer que essa parcela de pessoas que protesta e pede intervenção militar é majoritária é absurdo', diz Marcos Nobre. Foto: Régis Filho |
Em junho de 2013, o aumento de R$
0,20 na tarifa do transporte público detonou o movimento de uma massa
popular, que tomou as ruas para expressar as mais difusas insatisfações
com o governo e o estado de coisas. Cinco anos mais tarde, a sociedade
brasileira adotou uma estratégia quase suicida para demonstrar que o
descontentamento com o sistema político e a condução do país é ainda
mais intenso do que antes.
Essa é a interpretação do filósofo
Marcos Nobre, professor livre-docente da Unicamp e autor de uma das mais
importantes teses sobre o emedebismo, sobre os nove dias de greve de
caminhoneiros que levaram ao desabastecimento do país e ao colapso da
gestão Michel Temer (MDB).
Na sua avaliação, o sofrimento social
causado pelos anos de recessão econômica e a quebra de expectativa de
que o país melhorasse com a saída de Dilma Rousseff (PT), o que não
aconteceu, uniram a população em torno da pauta dos caminhoneiros. De
acordo com Nobre, para mostrar ao presidente que poderia "desligar os
aparelhos do governo", a sociedade atentou contra a própria
sobrevivência.
A resposta de Brasília não poderia ter sido pior, afirma.
Descoordenado, o Planalto teve que disputar o protagonismo da solução
com o presidente da Câmara, anunciou um "acordo-fantasma" com a
categoria e acabou tendo que recorrer ao governador de São Paulo, Márcio
França (PSB), para tatear uma solução para a crise. Apelou novamente
aos militares para emprestarem legitimidade às ações da gestão,
recordista de impopularidade.
Para o analista, independentemente
da movimentação em rodovias nos próximos dias, "o governo já acabou, o
ponto é saber se Temer chega ao final do mandato". Nobre afirma ainda
que o clima em que acontecerão as eleições presidenciais, em outubro,
depende da construção de um pacto entre as forças políticas que promova
alguma estabilidade no país até o fim do ano. Leia a seguir os
principais trechos da entrevista do filósofo à BBC Brasil.
BBC Brasil - Estamos vivendo uma reedição de 2013?
Marcos Nobre -
Não e sim. O que aconteceu na revolta dos caminhoneiros foi uma coisa
muito simples. A sociedade disse: "se a gente quiser, a gente desliga os
aparelhos desse governo". É uma outra etapa em relação a 2013. Em 2013,
não estava em causa desligar os aparelhos do governo. Dessa vez, você
teve bloqueio da reprodução material da vida. Lá atrás havia apenas um
aviso de que isso poderia acontecer. É muito diferente a situação.
BBC Brasil - Então, 2013 foi menos grave do que o que está acontecendo agora?
Nobre -
É menos grave porque 2013 não ameaçou o abastecimento, a produção, a
circulação. Poderia ter ido para esse sentido, não foi. Mas dessa vez, o
que se tem é primeiramente isso, a sociedade ameaçando o sistema
político de sufocamento. Mas não é um sufocamento do sistema político, é
um sufocamento da própria sociedade, que é quem vai ficar sem alimento,
sem remédio, sem circulação, sem emprego.
Ainda assim, a
sociedade resolveu que a única maneira de dizer para o sistema político o
quão insuportável está o sofrimento aqui embaixo é sufocando a nós
mesmos, até o limite do estrangulamento.
BBC Brasil - É suicida o movimento, então?
Nobre - No
momento em que de fato você vai se autoestrangular, você para. O
movimento vai no limite do que é possível fazer. Essa revolta dos
caminhoneiros é diferente da de 2013 porque em 2013 não tinha recessão. E
essa revolta é uma revolta de mais de três anos de um sofrimento social
muito intenso, então ela canalizou essa revolta contra esse governo.
É
uma revolta contra um sistema político que está totalmente desconectado
da sociedade e virou as costas para a sociedade para sobreviver,
colocou sua própria sobrevivência acima da economia, da vida dos
cidadãos e não consegue ver a insatisfação popular se não for por meio
de uma revolta.
BBC Brasil - Não é contraditório que a revolta peça por uma solução autoritária, por uma intervenção militar?
Nobre -
Em 2013, também teve gente que pediu intervenção militar. Mas quão
significativa é essa parcela? É preocupante? É preocupante, mas dizer
que essa parcela de pessoas que protesta e pede intervenção militar é
majoritária é absurdo. É claramente minoritário esse movimento agora,
como foi em 2013. Mas ele ganha uma visibilidade e uma amplitude
midiática primeiro porque ele é novo.
Desde a redemocratização, a
primeira vez que tínhamos visto isso foi em 2013 e agora estamos vendo
de novo. Essa novidade dá à coisa uma dimensão que ela não tem, embora
seja, sim, muito sintomática. Então, não acho que devamos centrar nossa
análise nessa parcela. Temos que tentar entender a insatisfação, por que
ela aconteceu e se desenvolveu dessa maneira.
Vamos pensar na
situação dos caminhoneiros, quem tomou crédito para comprar um caminhão,
quem alugou um caminhão para trabalhar, quem vive de frete, estas
pessoas estão no limite com essa crise.
Agora é possível comparar
isso com a situação de quem perdeu o emprego e passou a dirigir Uber – e
que quando a gasolina sobe, o pouco que ganha se esvai. Com as pessoas
que trabalham no mercado informal, as pessoas com trabalhos precários.
Quando a gente fala de petróleo, não é só diesel e gasolina, é gás de
cozinha também.
As pessoas não conseguem mais comprar um botijão
de gás. Então estamos falando de uma solidariedade a uma situação social
insuportável, principalmente porque o sistema político já tentou
canalizar esse sofrimento social para o apoio à parlamentada de 2016.
Naquele
momento, o sistema político disse assim: "olha, nós sabemos que vocês
estão sofrendo, mas é só tirar essa presidente (Dilma) que tudo vai se
resolver" e prometeram mundos e fundos. Dois anos depois, nada. O
sofrimento só piorou.
Chegamos ao ponto em que a sociedade
aceitou uma coisa absurda, o limite de seu próprio sufocamento para
demonstrar a revolta que sente em relação ao sistema político.
BBC Brasil - O governo errou na condução da crise?
Nobre - Esse
é um governo feudalizado, cada um faz em seu feudo o que quiser e a
promessa de lealdade ao rei é vazia. O governo não tem coordenação, até
porque o MDB não tem tecnologia para coordenar um governo. Em uma crise,
a descoordenação é muito clara. Essa incapacidade se tornou
sistemicamente perigosa, e levou o governo à beira do colapso. Para
começar, o governo não entendeu o problema. E isso é o esperado para um
governo que não tem conexão com a sociedade.
Na tentativa de
solução da crise, o sistema político resolveu estabelecer uma luta pela
hegemonia de quem seria o herói da história. E para isso, um começou a
sabotar o outro, um começou a escolher uma saída diferente do outro. Nem
em um momento extremamente grave e crítico o sistema político consegue
se reunir para superar a crise.
Concretamente, o que houve?
Rodrigo Maia (presidente da Câmara e presidenciável pelo DEM) percebeu
que essa era sua oportunidade de protagonismo. Decidiu ignorar o Temer e
o Eunício Oliveira (presidente do Senado). Fez então um acordo de
ocasião com o Romero Jucá e tentou passar uma solução completamente
equivocada de todos os pontos de vista (corte de PIS/COFINS com cálculo
de custo fiscal muito abaixo do correto).
Eunício Oliveira,
excluído, vai embora de Brasília. E o governo Temer ficou olhando o que
estava acontecendo. E a crise só começa a se resolver quando é chamado o
governador de São Paulo, Márcio França.
França é uma figura
totalmente marginal, fora dessa articulação brasiliense e das cúpulas
partidárias, acabou de assumir (no lugar de Geraldo Alckmin), quer o
protagonismo (porque tenta a reeleição ao cargo), mas efetivamente
entregou alguma coisa em São Paulo para servir de modelo para acordo com
caminhoneiros em outros Estados. E o governo Temer, depois de anunciar
até acordo-fantasma em uma patetada, foi pedir socorro para o Márcio
França.
BBC Brasil - Temer vai cair?
Nobre - O
governo federal está tão fraco que os governos estaduais retomaram o
protagonismo. O Rodrigo Maia, que se arvora candidato do mercado
financeiro, achou uma saída totalmente artificial, com erros grosseiros.
O deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), um dos porta-vozes desse grupo do
Maia, chegou a dar entrevista dizendo que, se tivesse uma terceira
denúncia da Procuradoria-Geral da República, a Câmara não salvaria o
Temer.
Tinha ali uma articulação ensandecida para que o Rodrigo
Maia se tornasse presidente e pudesse ser candidato com a caneta na mão.
Uma parcela importante desse grupo político acreditou que derrubaria o
Temer. Não se trata de questionar se o governo acabou, o governo acabou.
A questão é se vão conseguir fazer um acordo mínimo para que o
Temer chegue ao final de seu mandato ou não. Esse é ponto do momento. O
sistema político não pode inventar uma outra parlamentada a essa altura
do campeonato, a pouco mais de quatro meses da eleição.
O sistema
político vai ter que fazer esse acordo de sustentação temporário porque
senão o governo não vai sobreviver. Mas a condição para isso vai ser o
Temer parar de tentar ser relevante. Ele tem que aceitar seu destino de
ser Sarney, é a última chance que ele tem de se recolher à sua
insignificância.
BBC Brasil - A indicação de que Henrique Meirelles vai ser o candidato do MDB, há oito dias, é um movimento nesse sentido?
Nobre -
Isso é pouco. Ele continua querendo ser relevante, é ele que indica. Ou
o Temer aceita que é Sarney, submerge e não atrapalha mais, ou o
sistema político não vai segurar a onda e ele vai cair. Se Temer
insistir no protagonismo, ele vai cair. Da pacificação dessa situação do
Temer depende a unificação da centro-direita. Há quatro meses da
eleição, as máquinas partidárias ainda não começaram a funcionar.
BBC Brasil - Mas como vai ser o restante desse governo Temer?
Nobre -
O governo vai precisar de gente que mantenha a gestão andando num nível
mínimo, morno. A equipe não pode ter atitude ousada, é a saída Maílson
da Nóbrega (ministro da Fazenda do governo Sarney que assumiu prometendo
fazer uma "política econômica arroz com feijão" em meio à crise). É
tocar o dia a dia até o final do mandato e deixar a eleição acontecer.
BBC Brasil - Existe um risco de que as eleições não aconteçam em outubro?
Nobre - Não.
A questão é como elas vão acontecer. Podem acontecer em um clima em que
você não tem mais controle da violência e aí seriam eleições muito
complicadas.
Se o governo se retira da sua função principal, que é
arbitrar os conflitos na sociedade, seja porque não tem legitimidade,
seja porque não tem conexão com a sociedade, a mensagem que chega para
as pessoas é que se elas tem algum conflito, elas que se entendam. O
problema é que a principal função do Estado é impedir que particulares
resolvam suas diferenças como puderem. Não se pode passar para os
brasileiros a ideia de que abriu a porteira e vale tudo.
BBC Brasil - É o que parece estar acontecendo agora. O
governo cedeu em tudo na pauta original do movimento, mas os
caminhoneiros não saem da rua. Até onde vai?
Nobre -
Na minha hipótese, isso vai até o limite do estrangulamento, mas não
estrangula, porque senão o movimento perde o apoio social que tem.
BBC
Brasil - Nota-se um protagonismo grande dos militares nessa crise e no
governo Temer no geral. São eles quem têm aparecido, inclusive fardados,
em coletiva de imprensa sobre a crise. Por quê?
Nobre -
Nesse momento os militares têm dois papéis importantes: a primeira é
dizer: "nós não vamos admitir que isso aqui vire uma situação
pré-revolucionária". O segundo é de corrigir a bobagem que eles próprios
fizeram. O (ministro Sérgio) Etchegoyen é responsável pela situação
porque cabe ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) informar ao
presidente o que está acontecendo. Tem inteligência pra isso.
Agora,
isso mostra também que inteligência sozinha não é suficiente. Você
precisa estar conectado com a sociedade, o governo precisa ter conexões
com a sociedade, porque a inteligência precisa entender movimentos
profundos na sociedade.
Se você não tiver conversas com
movimentos sociais, não tem como medir corretamente a temperatura do que
está acontecendo – 2013 foi um grande exemplo disso, porque o governo
Dilma estava desconectado da sociedade e foi surpreendido pelo
movimento.
Dado o fato de que o governo Temer acabou, você precisa
dar a impressão de que isso não vai se transformar no caos, para isso
você precisa colocar os militares na linha de frente.
BBC Brasil - Alguém vai ganhar com essa crise?
Nobre -
Não necessariamente. Pode ser que o Márcio França se torne mais
competitivo (ele aparece com 3% nas pesquisas de intenção de voto para o
governo do Estado), mas não é certo que isso vá acontecer.
Fonte: Publicado na BBC Brasil
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