O voto decisivo foi dado por este
trabalhador, levado ou não por correntes de WhatsApp, levado ou não por crenças
na masculinidade a reconquistar, levado ou não pelo desejo de combate a
corrupção.
Não foram poucas as análises sobre as
razões do voto em Bolsonaro. No momento em que sua popularidade é
comprometida com a crise internacional gerada pelas queimadas na Amazônia, é
importante compreender as razões para sua eleição e para compreensão da
rejeição a ciência no Brasil
Nós estávamos lá e declamamos com
todas as notas possíveis que não seria possível e aceitável eleger um
presidente cujo motor de ascensão era o ódio. Marielle havia sido assassinada e
por caminhos nada virtuosos, a milícia que cresce no Rio, sem alardes ou
comemoração, era apontada como integrante do crime. O crime chegava aos
gabinetes. Mas isto não era novidade. E vimos nas avenidas do país,
aquele tipo social jovem, em uma caminhonete grandiosa, fazendo gestos obscenos
e agressivos. Nunca vi uma comemoração sem alegria. Mas era um desfile de
névoa.
O que era diferente? Como muitos amigos,
vivo lendo Theodor Adorno. Não por esporte, mas por desafio. Havia um filme de
Ettore Scola, Concorrência Desleal, de 2001. A história de dois comerciantes na
Itália de 1930 é contada pelo seu cotidiano. Pessoas vivem juntas, pessoas têm
conflitos. Mas como o conflito se transforma em um regime fascista? E
então, descobri um livro: “As estrelas descem à terra”. De Adorno, lançado em
1957. Sim, estava interessada em entender a comunicação de massa materializada
na novidade das mensagens virtuais, da mentira compartilhada e dos efeitos das
redes sociais sobre o voto. Haveria uma psicologia de massas atuando para que
não se levasse a sério o candidato em 2018? Ou o ódio era mesmo um motor tão
poderoso para aglutinar aqueles tipos comuns em torno de uma mensagem poderosa?
Não seria a primeira vez na história, mas vivemos este tempo, então é dele que
nos ocupamos.
Quem eram estes? Certamente não era o
“Véio” da Havan, nem artistas de emissoras famosas. Não eram os ruralistas. Nem
os freqüentadores de academia ciosos de sua masculinidade. Não eram os
religiosos, tomados por em sentimento messiânico. Nem os desiludidos com a
esquerda conciliatória…
Quando debatemos o desgaste das formas
de participação política e as formas pelas quais os indivíduos adquirem
informações para decidir o voto, devíamos ler a pesquisa de Adorno sobre a
coluna de astrologia do Los Angeles Times. Entenderíamos o ataque à ciência, a
negação do passado (a tortura praticada durante a Ditadura) e o otimismo sobre
algo que “vai melhorar em algum momento”.
Este é o leitor que acredita no poder
dos astros para emitir opiniões sobre dinheiro, amor, saúde, família e outros
assuntos deixados a cargo das estrelas. Sim, repito: a cargo das estrelas. Mais
do que isto, me diziam os motoristas de Uber, que votar 17 produziria melhoras
no país, quebrado. Mas se algum dado era apresentado, era rapidamente rechaçado
com alteração psíquica visível e, em casos lamentáveis, violência e morte. Como
Moá do Katendê. Contabilizei no mínimo 10 mortes diretas ou indiretas durante
as eleições, inclusive de um menino de 7 anos baleado durante uma festa de
comemoração da vitória de Bolsonaro. Qual seria a diferença entre estas adesões
e a crença na astrologia? Bem, a astrologia tem sua poética.
O voto decisivo foi dado por este
trabalhador, levado ou não por correntes de WhatsApp, levado ou não por crenças
na masculinidade a reconquistar, levado ou não pelo desejo de combate a
corrupção. Mas, principalmente, tomado pela impotência imposta pelo
capitalismo, no qual sua força de trabalho se transforma em exploração
contínua. Suas necessidades mínimas não podem ser satisfeitas pelo sistema
público de saúde. E cioso de sua condição de indivíduo, esfrega o voto como
desejo de morte sobre seus opositores. Dentro deste complexo tabuleiro de
estímulos, promoções, demissões e privatizações, este motorista terceirizado é
o tipo ideal de revolta sem organização. Ele zela pela moral, ele paga
impostos. E acredita que algo como uma eleição ou um golpe de sorte podem
alterar a ordem de sua vida cotidiana. Ele não é um fascista (ou ainda não).
Sua forma de expressão social é um curto circuito de violência e celebração
de memes. E não há dúvida de que se sente ameaçado pelo espaço ocupado por
outros grupos (mulheres, gays, nordestinos não subalternos).
A monotonia de um trabalho repetitivo e
mal pago é mortificante. A vida moral das famílias e seus preconceitos é
mortificante. Mas a desigualdade é insuportável. E a crença na astrologia,
assim como a crença em um capitão sem brilho, conferem por alguns meses um
transe no qual se pode mergulhar. Quem sabe a vida poderia ser outra, sem crime
e desemprego. A crença na saída meritocrática é de mesmo tipo. Como a
astrologia, sua validade é absolutamente obscura.
Dedico este texto a cada um dos
brasileiros que, com seu voto, nos proporciona esta experiência. Esta
distopia que tem produzido dias da mais profunda angústia, com retrocessos
em todas as áreas: saúde, soberania nacional, meio ambiente, ciência e
educação.
*Luciane Soares da Silva é professora de
sociologia da UENF, 2ª vice presidente da ADUENF.
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