A questão das delações premiadas,
contudo, é ainda mais profunda e complexa do que a obediência a um roteiro de
oitiva sucessiva entre delatores e delatados.
A sentença que condenou o ex-presidente
Lula em 2017, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, pela propriedade de
um apartamento triplex na cidade do Guarujá, no litoral paulista, foi de tal
forma uma deformidade legal, que causou grande reação do meio jurídico, de
pessoas preocupadas com a defesa dos parâmetros do devido processo legal
constitucional.
Diante disso, os professores Carol
Proner, Giselle Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo Dornelles organizaram
um livro, que foi publicado em agosto de 2017 chamado “Comentários a uma
Sentença Anunciada – O Processo Lula”. São ao todo 101 artigos curtos, de 122
autores, que abordam variados aspectos, equivocados ou ilegais, da sentença
divulgada em 12 de julho de 2017, pelo juiz Sérgio Moro.
O título da obra é inequívoco: não houve
surpresa com a sentença em seu desfecho, diante da postura totalmente parcial
do juiz, evidenciada em todas as fases do processo. A certeza da condenação era
um fato. O que estava em jogo, portanto, era conhecer os fundamentos da peça
final do processo, que não logrou apresentar nenhuma prova do cometimento dos
crimes pelos quais o ex-presidente fora condenado.
Convidada pela organização, quando
escrevi o artigo para o livro, resolvi trazer à luz uma das questões que mais
me incomodaram no desfecho: o papel de José Aldemario Pinheiro Filho, executivo
da empresa OAS, mais conhecido como Léo Pinheiro. Tratado como delator pela força-tarefa
da operação Lava Jato, e tendo recebido benefícios de delator pelo juiz Sérgio
Moro, ele não tinha, contudo, acordo assinado com o Ministério Público Federal,
como exige o art. 4º, §§ 6º e 7º da Lei 12.850/2013, que regulamenta o
instituto das delações premiadas.
Dois anos depois, precisamente no último
dia 13 de setembro de 2019, com parecer contrário da então Procuradora-Geral da
República Raquel Dodge, o ministro Edson Fachin homologou o acordo de delação
premiada de Leo Pinheiro. Nesse caso, a situação dele se estabelece legalmente,
e passa a ter os benefícios que a lei lhe confere. De igual modo, sua
localização processual em relação aos demais no processo não é mais apenas de
corréu.
Ao julgar, na quarta-feira (26) o Habeas Corpus 166373,
impetrado pelo ex-gerente de empreendimentos da Petrobras, Márcio de Almeida
Ferreira, condenado no âmbito da operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal
firmou a tese, por 7 votos a 3, de que que é direito dos delatados se
manifestarem depois dos delatores nos autos. Com maioria formada, o presidente
Dias Toffoli adiou a apresentação de seu voto para a próxima quarta-feira
(02/10), para definir como a decisão será aplicada aos processos em andamento
nas outras esferas do Poder Judiciário.
Não é de pouca relevância que o STF
tenha, afinal, proferido uma decisão com vistas a anular uma agressão ao devido
processo legal, praticada no âmbito da operação Lava Jato. Afinal, da
divulgação de grampos ilegais envolvendo uma presidenta da República, a
vazamentos de conteúdos sob sigilo em datas determinadas para obter resultado
político, a investigação possui abundância em ilicitudes.
A questão das delações premiadas,
contudo, é ainda mais profunda e complexa do que a obediência a um roteiro de
oitiva sucessiva entre delatores e delatados.
O instituto, cuja criação serviria, em
tese, para auxiliar o Estado na busca da verdade nas apurações sobre o
funcionamento das organizações criminosas, onde o agente indica os caminhos a
serem trilhados, em rastreio das provas que confirmarão seu depoimento,
transmutou-se, com o uso indevido, em um fim em si mesmo, realizado de
forma vulgarizada e espetaculosa, com réus presos, sendo publicadas antes mesmo
que qualquer prova seja apresentada, e sem qualquer cuidado com as regras do
jogo democrático.
O reconhecimento do Supremo, na sessão
plenária do dia 26 de setembro, importa no sentido de constatar o óbvio. Embora
estejam formalmente no campo passivo da ação, réu delator e réu delatado estão,
na prática, em posições processuais diversas. Ao primeiro não interessa sua
defesa, uma vez que assumiu culpa e negociou benefícios, que vão da redução da
pena até o perdão judicial. Seu interesse é tão somente fornecer informações,
que possam levar à condenação do segundo. O prazo comum viola, sem dúvida
alguma, os princípios constitucionais do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa, garantias para os administrados e dever para
todo e qualquer órgão, entidade ou agente público.
A delação premiada implica na renúncia
ao direito ao silêncio. O acusado que, voluntariamente, colaborar com a
investigação, poderá ter sua pena reduzida. Para tanto, não basta que mencione
delitos que teriam sido cometidos por outras pessoas. É essencial que as
informações prestadas sejam corroboradas com provas, para serem tidas por
verdadeiras, e aptas para a comprovação dos atos apontados.
Nesse ponto, o passo seguinte de nossa
Suprema Corte, com vistas a corrigir procedimentos distorcidos nas operações de
investigação, das quais a Lava Jato é a hipótese emblemática, seria o
reconhecimento de que a não confirmação, com dados evidentes, da palavra do
delator, também gera a nulidade do acordo de colaboração, e de qualquer ato
processual produzido com base no conteúdo de seu depoimento.
Não se trataria de reexame de provas,
que não pode ser efetuada pelos tribunais superiores, mas de afirmação das
regras postas na lei própria. Seria um passo importante para afirmação de um
Judiciário comprometido com as regras processuais impostas pelo processo civilizatório,
com punições dentro das regras processuais e com o respeito constitucional, não
de exceção ou de transgressão, patrocinadas por personagens que se guiam por
interesses particulares.
Por ora, estamos em vias de saber, com a
conclusão do julgamento no plenário do STF na próxima quarta-feira (02), que
limites e condições pretende o Tribunal impor ao seu próprio julgado. A
modulação, prevista no art. 927, § 3º do Código de Processo Civil, é medida
excepcional que, em regra, não se aplica ao habeas corpus, sendo presumível – pelo teor dos
debates havidos – que a nulidade das sentenças seja decretada apenas quando as
defesas tenham questionado a ordem das alegações finais, na primeira instância.
A rigor, após a homologação da delação
de Leo Pinheiro, a decisão se amolda perfeitamente às duas condenações do
ex-presidente Lula: a ação do apartamento do Guarujá e a do sitio de Atibaia.
No entanto, não sendo Leo Pinheiro, ao tempo do julgamento, um delator, como
poderia a defesa do ex-presidente Lula solicitar prazos sucessivos? Por outro
lado, agora sido admitida sua condição real, impõe-se o reconhecimento da
ilegalidade perpetrada.
Desse modo, ao se propor a modular
efeitos ao reconhecimento do princípio constitucional violado, o Supremo pode
assumir uma posição ambígua e oscilante para diversos casos concretos,
postando-se como parte do problema e não de sua solução, correndo o risco de
transformar uma decisão muito importante em uma vitória de pirro para a
racionalidade do Estado Democrático de Direito, pelo respeito ao seu
regramento, ao deixar de reconhecer a violação ocorrida em hipóteses idênticas
à do habeas corpus concedido.
Sendo essa a modulação feita, é
necessário que o STF analise situações anômalas, como a do ex-presidente Lula
no julgamento do Triplex, em que a defesa não poderia embargar decisão de prazo
comum de um corréu, que somente se confirmaria delator dois anos após ter
prestado depoimento, e cujas declarações foram consideradas nevrálgicas para a
condenação, conforme consta na sentença de primeiro grau, o que a coloca no
campo da nulidade apontada no julgamento proferido pela Corte, diante do
prejuízo evidente.
*Tania Maria de Oliveira participa da
Associação Brasileira de Juristas pela Democracia
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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