Após cortes de verbas, “solução mágica”. Feito sem
consultar Universidades, programa entrega Fundo Soberano do Conhecimento,
composto por imóveis e orçamentos públicos, ao mercado financeiro. No fundo,
retrato de um capitalismo dependente…
*Por Luiz Filgueiras I Outras Palavras
Introdução
A avaliação criteriosa dos
reais objetivos e do significado do Future-se, a recente proposta do Governo
Bolsonaro para às Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), tem que
passar, necessariamente, pela compreensão da natureza estrutural do capitalismo
dependente brasileiro e de sua burguesia. E, no plano conjuntural, pela clara
caraterização do Governo Bolsonaro e das forças sociais que o sustentam, bem
como de suas políticas – em especial aquelas direcionadas à educação. Ao se
proceder desta maneira, pode-se afirmar/adiantar as seguintes proposições:
1- É parte da estratégia de
implantação do Future-se, que pretende mudar estruturalmente o sistema federal
de ensino superior público brasileiro, o estrangulamento financeiro conjuntural
das IFES, através do contingenciamento dos seus orçamentos. Portanto, a
suspensão deste contingenciamento e a garantia do financiamento das IFES pelo
Estado, conforme garante a Constituição do Brasil (Artigo 207), é a luta
prioritária e imediata a ser travada pela comunidade universitária e os seus
aliados.
2- O Future-se, tal como está
proposto e supostamente pretende, não irá alavancar, de forma significativa, a
pesquisa e a inovação nas IFES para além do que já existe e está sendo feito: a
natureza da grande burguesia brasileira não permite isso. Um país de
capitalismo dependente, tecnológica e financeiramente, com uma burguesia
umbilicalmente atrelada ao imperialismo, não se transformará como num passe de
mágica em produtor de conhecimento de ponta – graças a um arranjo financeiro
“meia sola”, que oportunisticamente permitirá a apropriação do patrimônio
público pelo capital financeiro.
3- As IFES, tais como
funcionam e estão estruturadas hoje, já estão articuladas com o setor
produtivo, de acordo com as características, limitações e a natureza deste
último. Só é possível articular duas partes autônomas quando ambas se dispõem a
tal. Portanto, o objetivo e a justificativa centrais da proposta são
redundantes (UNB, 2019) ou inexequíveis: uma espécie de “canto da sereia” ou uma
“cortina de fumaça” que encobre os seus reais objetivos.
4- O Future-se tem dois
objetivos fundamentais: o primeiro é criar condições institucionais, impostas
de fora para dentro (camuflada em “livre escolha”), que possibilite a
operacionalização de um processo de “acumulação por espoliação” (Harvey, 2006)
do orçamento e do patrimônio público, bem como do conhecimento produzido pelas
IFES, através da criação de fundos de investimento que farão a privatização e
securitização dessa riqueza e sua posterior transferência para ser movimentada
no mercado financeiro. Portanto, mais uma vez, está-se diante dos interesses e
da ação do capital financeiro – tal como ocorreu no congelamento por 20 anos do
gasto corrente do governo, na Reforma Trabalhista e na Reforma da Previdência.
As digitais da especulação e do rentismo são evidentes; nem a linguagem
conseguiu-se disfarçar.
5- O segundo objetivo
fundamental do Future-se, associado umbilicalmente ao primeiro, é transformar
estruturalmente o sistema de Universidades e Institutos Federais,
desarticulando-o e quebrando a sua unidade político-operacional, através de:
extinção do financiamento das IFES pelo Estado, assim como de sua autonomia
administrativa, de gestão e pedagógico-científica; desorganização da carreira docente
hoje claramente estruturada e unificada; hierarquização, por critérios
regionais e de mercado, das IFES, quebrando a unidade entre
ensino-pesquisa-extensão; terceirização e subordinação dos objetivos didáticos,
pedagógicos e científicos das IFES e de sua direção, através de gerenciamento
de fora para dentro orientado pela lógica privada (por meio das Organizações
Sociais); transformação de docentes-pesquisadores em micro/pequenos empresários
guiados pela lógica do lucro e benefícios individuais; estímulo à competição
interna, entre docentes, pela captação de recursos privados no mercado.
A seguir discute-se a
natureza estrutural do capitalismo dependente brasileiro e o caráter de sua
grande burguesia cosmopolita; analisa-se a conjuntura econômico-política mais
recente, que levou ao surgimento e desenvolvimento de um movimento de massas de
caráter neofascista no país e à eleição de Jair Bolsonaro para Presidente da
República; e, por fim, critica-se a proposta denominada pelo Governo de
“Future-se”, qualificando-se e detalhando-se mais as proposições acima
enunciadas e tendo por pano de fundo as circunstâncias econômico-sociais e
políticas do país.
A natureza estrutural do capitalismo dependente brasileiro
A marca característica
fundamental das economias dos países periféricos ou “em desenvolvimento” é,
desde sempre, a dependência; são economias capitalistas cujas dinâmicas e
trajetórias são fortemente condicionadas e restringidas pelo processo de
acumulação de capital no plano mundial – que lhes impõem a necessidade de
adaptar suas respectivas estruturas produtivas internas às exigências dos
países dominantes. Portanto, são economias subordinadas, com um grau de
autonomia muito pequeno e que transferem continuadamente renda e riqueza para
os países centrais (imperialistas) do sistema capitalista mundial (Filgueiras,
2014).
Elas são economias nacionais
de países que, desde o seu surgimento no século XIX, ocupam uma posição
subalterna na divisão internacional do trabalho constituída, a partir de meados
daquele século, sob a hegemonia inglesa e reconfigurada, diversas vezes, pelo
capitalismo durante o seu processo de desenvolvimento. As formas dessa
dependência, sempre com a transferência de renda e riqueza (excedente) para os
países centrais, modificaram-se ao longo da história, refletindo as mudanças
ocorridas na divisão internacional do trabalho em cada momento.
Essa realidade empírica, que
evidencia o caráter hierarquizado (de poder) das relações internacionais,
desmente a visão tradicional acerca do processo de desenvolvimento do
capitalismo, que entende “subdesenvolvimento e desenvolvimento” como sendo dois
estágios distintos temporalmente, na qual parte-se do primeiro para se atingir
o segundo, como se fosse uma subida de uma escada. Nessa visão, os países que
hoje são considerados desenvolvidos também já teriam sido, no passado,
subdesenvolvidos.
Na verdade, o
subdesenvolvimento e o desenvolvimento são duas faces da mesma moeda, pertencem
ao mesmo processo e estão umbilicalmente imbricados, são dois tipos de
capitalismos distintos presentes na mesma ordem mundial, na mesma divisão
internacional do trabalho: de um lado, um capitalismo dependente (tecnológica,
financeira, política e culturalmente) e, de outro, um capitalismo imperialista
(que dá a dinâmica do conjunto do sistema, através do domínio financeiro, do
conhecimento e da tecnologia de ponta em cada momento do desenvolvimento). Os
países imperialistas jamais foram periféricos ou subdesenvolvidos, pelo simples
motivo de que foram eles que criaram a economia mundial e estabeleceram, em
cada momento, e hoje mais do que nunca, o tipo de divisão internacional do
trabalho prevalecente – na qual exercem sua hegemonia sobre os demais, situados
na periferia (Filgueiras, 2014).
Desde quando a questão do
subdesenvolvimento/desenvolvimento foi colocada em pauta após a 2ª Guerra
Mundial, não houve qualquer país, com exceção da Coreia do Sul (produto da
geopolítica dos EUA durante a Guerra Fria), que tenha saído da condição de
subdesenvolvimento e alcançado o centro do capitalismo. E mais, o chavão sobre
a educação ser a condição necessária e suficiente para sair do
subdesenvolvimento não tem a menor sustentação; na Coreia do Sul, sempre
citada, a educação foi apenas um dos elementos do processo que contou com inúmeras
reformas estruturais fundamentais, inclusive a Reforma Agrária, apoiadas
decisivamente pelos EUA. O processo de desenvolvimento é muito complexo para
ser reduzido a um “fator”.
A partir dos anos 1970 – com
os processos mundiais distintos, mas articulados, de reestruturação produtiva,
mundialização do capital e financeirização, sob a direção da ideologia e das
políticas neoliberais -, foi-se configurando uma nova (e atual) forma de
dependência, que se mostrou plenamente constituída na década de 1990 (Anderson,
1995).
Essa nova dependência, de
natureza tecnológico-financeira, redefiniu, mais uma vez, a inserção dos países
periféricos na divisão internacional, aprofundando e radicalizando a sua
dependência: transformou-os em plataforma de acumulação do capital financeiro
internacional (Paulani, 2009), através da securitização e do financiamento de
suas dívidas públicas e do pagamento de rendas derivadas do monopólio do
conhecimento e da informação; trouxe de volta, para aqueles, como o Brasil, que
haviam se industrializado no período anterior, a condição de exportadores de
commodities agrícolas (soja e carnes) e minerais (ferro) e de manufaturados de
baixo valor agregado e menor intensidade tecnológica; e tornou-os consumidores,
mas não produtores, dos produtos típicos da 3ª e 4ª Revoluções Tecnológicas
(Osório, 2012).
A consequência maior dessa
nova dependência foi, de um lado, a quase completa perda de autonomia dos
países dependentes para operacionalizar as políticas econômico-sociais e, de
outro, o desencadeamento de um longo e penoso processo de desindustrialização
(Dossiê, 2019; Filgueiras, 2019): a queda da participação da indústria, em
particular a indústria manufatureira (em termos de valor adicionado e emprego),
no conjunto da economia (PIB e emprego total) – com o distanciamento, cada vez
maior, do país da fronteira da inovação tecnológica.
Em suma, e de forma
sintética, o Brasil é um país dependente tecnológica e financeiramente; de um
lado, não gera endogenamente, com raras exceções (fundamentalmente Instituições
e empresas públicas, que atualmente estão sendo atacadas ou se encontram em
processo de privatização pelo atual governo), tecnologia própria e se afasta,
cada vez mais, da vanguarda do conhecimento. De outro, como todos os demais
países periféricos, não tem moeda conversível internacionalmente, além de ter a
sua dívida pública, a partir dos anos 1990, transformada em objeto e
instrumento de acumulação e especulação financeira internacional; o que
significa dizer que sua inserção econômica no mundo está condicionada ao acesso
às moedas dos países centrais (dólar e euro).
Dependência e Padrões de Desenvolvimento
No Brasil, a dependência
esteve associada, ao longo de sua história, a três padrões de desenvolvimento
capitalista distintos, que acompanharam as reconfigurações da divisão
internacional do trabalho. (Filgueiras, 2013a)
No padrão de desenvolvimento
capitalista primário-exportador (1850-1930) a fração da burguesia hegemônica no
bloco no poder era o grande capital cafeeiro – que unificava as funções de
produtor, comerciante, financiador e exportador de café. No seu interior também
se acomodava as diversas oligarquias regionais constituídas a partir da grande
propriedade fundiária.
A rigor, do ponto de vista da
relação capital-trabalho, pode-se identificar dois momentos distintos durante o
predomínio desse padrão: o primeiro que se baseava no trabalho escravo e o
segundo estruturado a partir do trabalho livre assalariado. Essa mudança na
relação de trabalho teve impacto importante no desenvolvimento das forças
produtivas e na ampliação do processo de acumulação de capital, mas não alterou
a natureza comercial-financeira da dependência vigente em todo o período nem a
dinâmica reflexa da economia: o motor de seu funcionamento estava situado fora,
no mercado mundial – em razão da importância decisiva de suas exportações de
café para o conjunto da economia.
No padrão de desenvolvimento
de substituição de importações (1930-1990), o bloco no poder era constituído,
inicialmente, até meados da década de 1950, pelo grande capital industrial
(nacional e estatal) e pelas oligarquias agrárias, sob a hegemonia da burguesia
industrial. A partir daí, com entrada dos investimentos diretos estrangeiros na
indústria de bens de consumo duráveis (Governo JK) e, portanto, com a
internalização de seus interesses, o capital multinacional incorpora-se ao
bloco no poder – passando a ocupar uma posição hegemônica, juntamente com a
parcela do grande capital nacional a ele associado e o capital estatal.
Assim, o nacional-desenvolvimentismo
dos primeiros momentos da industrialização se transforma em desenvolvimentismo
associado-dependente, com o centro de decisões da economia se exteriorizando e
a constituição de uma fração burguesa cosmopolita e de uma classe média alta
com ela identificada – que tenta copiar o seu comportamento e estilo de vida e
consumo.
Nesse Padrão, com a
implantação da indústria de bens de consumo durável e segmentos de bens de
capital, a industrialização deslancha e o ciclo do capital e da acumulação, em
grande medida, se internaliza, com a ampliação concomitante do mercado interno
– que passa a ser mais importante que o mercado externo para a produção do país
(Mello, 2009).
Os interesses da grande
burguesia cosmopolita, assim como o seu modo de se reproduzir enquanto classe
social, estão, desde sempre, fortemente associados e imbricados com os capitais
estrangeiros, o capital financeiro e o imperialismo; com sua hegemonia
político-ideológica se expressando, de forma inequívoca, no parlamento, no
judiciário e nos grandes meios de comunicação [1].
Finalmente, o atual padrão de
desenvolvimento capitalista no Brasil (1990-2019) – aqui denominado de
Liberal-Periférico (PLP) – constituído a partir dos anos 1990, com o Governo
Collor de Mello, configurou o que já era uma realidade no plano mundial, qual
seja: uma nova hegemonia, desta feita comandada pelo capital financeiro, que
subordinou a lógica produtiva a sua própria lógica volátil e de curto prazo.
O Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico
As características
estruturais fundamentais desse padrão, que o diferencia do Padrão de
Substituição de Importações, podem ser resumidas em cinco pontos (Filgueiras,
2006):
– A relação capital/trabalho
teve a sua assimetria aumentada a favor do primeiro, em razão da reestruturação
produtiva e da abertura comercial – que implicaram o crescimento do desemprego
estrutural, do trabalho informal, da terceirização e da precarização do
trabalho. Como consequência, a capacidade de organização, mobilização e negociação
dos sindicatos se reduziu – embora tenha sido recuperada a partir do final do
Primeiro Governo Lula, quando a economia voltou a crescer e o emprego formal
aumentou.
– As relações
intercapitalistas, em razão da abertura comercial-financeira e das privatizações,
foram redefinidas, alterando-se a posição e a importância relativa das
distintas frações do capital no processo de acumulação e na dinâmica
macroeconômica: o capital financeiro (nacional e internacional) passou a ocupar
posição dominante, deslocando a antiga hegemonia do capital industrial; o
capital estatal perdeu relevância em favor do capital estrangeiro; e
fortaleceram-se grandes grupos econômicos nacionais produtores/exportadores de
commodities (Brasil Foods, JBS, Gerdau, Votorantim) e o agronegócio.
– A inserção internacional do
país na nova divisão internacional do trabalho se alterou para pior, aumentando
a sua vulnerabilidade externa estrutural. De um lado, a pauta de exportação do
país se reprimarizou (produtos de baixo valor agregado e reduzida intensidade
tecnológica, cuja balança comercial superavitária compensa os déficits
verificados nos segmentos de média-alta e alta tecnologia) e se aprofundou o
processo de desindustrialização iniciado ainda na década de 1980. De outro,
cresceu dramaticamente a sua dependência financeira, fragilizando o Estado e
reduzindo fortemente a sua capacidade de fazer política macroeconômica. Tudo
isso decorreu da abertura comercial-financeira que também alimentou a
desindustrialização do país e o crescimento da dívida pública – em março deste
ano atingiu o montante bruto de R$ 5,4 trilhões, quase 80% do PIB – que, como
em outros países periféricos, transformou-se em plataforma de acumulação para o
capital financeiro internacional (Banco Central do Brasil).
– O papel e a importância do
Estado, no processo de acumulação e na dinâmica macroeconômica, se alteraram –
em virtude do processo de privatização e da abertura financeira. O Estado
fragilizou-se financeiramente e perdeu capacidade de regular a economia e de operacionalizar
políticas macroeconômicas e de apoio à produção apesar do seu resgate parcial e
momentâneo pelos Governos Lula da Silva e Dilma Rousseff.
– Por fim, em razão de todas
essas mudanças, e ao mesmo tempo alimentando-as, constituiu-se um novo bloco no
poder, sob a hegemonia, num primeiro momento, do capital financeiro (nacional e
estrangeiro) e da burguesia cosmopolita, associada direta ou indiretamente ao
capital estrangeiro, que passou a ditar as políticas fundamentais do Estado:
monetária, fiscal e cambial, além da política industrial e de comércio
exterior. Posteriormente, como condição de sobrevivência do próprio PLP,
cresceu a importância do agronegócio e da indústria produtora de commodities,
com o protagonismo da burguesia interna.
Em suma, o padrão é liberal
porque foi constituído a partir da abertura comercial e financeira, das
privatizações e da desregulação da economia, com a clara hegemonia do capital
financeiro – frente às demais frações do capital. E é periférico porque o
neoliberalismo assume características específicas nos países capitalistas
dependentes, que o torna mais regressivo ainda quando comparado a sua agenda e
à forma como é operacionalizado nos países capitalistas centrais.
Do ponto de vista da dinâmica
macroeconômica, a característica fundamental desse padrão de desenvolvimento
capitalista, que aprofundou estruturalmente a dependência tecnológica e
financeira do país, se expressa na sua extrema instabilidade e grande
vulnerabilidade externa estrutural – que acompanham de perto as alterações
cíclicas da economia internacional (o aumento da liquidez a partir do início
dos anos 1990, a entrada da China na OMC no começo da década seguinte, a crise
mundial do capitalismo eclodida em 2007-08 e a desaceleração do crescimento global
pós-crise).
Os Distintos Momentos do Padrão de Desenvolvimento
Liberal-Periférico
Na sua constituição e
desenvolvimento o PLP passou por cinco momentos, desde o começo da década de
1990, quais sejam (Filgueiras, 2014):
1- Uma fase inicial de
transição, bastante turbulenta, de ruptura com o Padrão de Substituição de
Importações e implantação das primeiras ações concretas de natureza neoliberal
(abertura comercial e privatizações), com o começo da hegemonia do capital
financeiro (Governo Collor de Mello). Nessa fase, manifestou-se uma
resistência, de muitos setores industriais (bens de capital e bens de consumo
não durável), à abertura comercial – temerosos com a sua baixa capacidade
competitiva; o que gerou tensões que foram decisivas no processo de destituição
desse governo.
2- Uma fase de ampliação e
consolidação da nova ordem econômico-social, com a implementação do Plano Real
e aprofundamento das reformas neoliberais (abertura comercial-financeira,
privatizações e uma primeira reforma da previdência), na qual se amplia e
consolida-se a hegemonia dos interesses do capital financeiro no interior do
bloco no poder (1º Governo Fernando Henrique Cardoso) – com a ocupação dos
ministérios relacionados à economia (Fazenda, Planejamento) e o Banco Central.
Ainda nessa fase, fez-se uma Reforma Administrativa do aparelho do Estado, que
iniciou a introdução da perspectiva gerencialista privada no serviço público.
3- Uma fase iniciada em
janeiro de 1999, com o fim da âncora cambial (sobrevalorização do real) e a
adoção do tripé macroeconômico (metas de inflação, superávits fiscais primários
e câmbio flutuante), em razão de uma grave crise cambial. Nas novas
circunstâncias se fortalece o capital produtor-exportador de commodities (em
especial o agronegócio) – que amplia seu espaço no bloco no poder (Ministérios
da Agricultura, da Indústria e do Comércio Exterior) por ser vital para reduzir
a instabilidade do modelo (2º Governo Fernando Henrique Cardoso e primeira
metade do 1º Governo Lula da Silva).
4- Uma fase na qual se
flexibiliza o tripé macroeconômico e se amplia a presença da grande burguesia
interna [2] no interior do bloco no poder, em articulação com o Estado; com
este último voltando a ter um papel ativo e mais direto no processo econômico –
em especial na estruturação da cadeia produtiva do petróleo, na
internacionalização dos grandes grupos econômicos nacionais, no financiamento
da infraestrutura do país através do aumento do investimento público e na
arbitragem dos interesses das distintas frações do capital (segunda metade do
1º Governo e o 2º Governo Lula da Silva e Governo Dilma Rousseff).
5- O momento atual, iniciado
no Governo Temer, de recomposição da hegemonia do capital financeiro e da
burguesia cosmopolita, com uma nova onda de reformas e políticas neoliberais
(congelamento dos gastos correntes por 20 anos, privatizações, desarticulação
da cadeia produtiva do petróleo, mudança no regime de exploração do pré-sal,
destruição da engenharia pesada nacional, terceirização irrestrita e reforma
trabalhista) e a volta do tripé macroeconômico em sua versão rígida.
Do ponto de vista estrutural,
o conjunto dessa obra está implicando o aumento da dependência e da
vulnerabilidade externa da economia brasileira, o aprofundamento do processo de
desindustrialização e a redução do mercado interno (Filgueiras, 2013b). As
implicações conjunturais são evidentes: levou à estagnação da economia e
regressão social, à criação de um movimento neofascista e à eleição de
Bolsonaro.
A Conjuntura Político-Econômica
A crise mundial do
capitalismo desencadeada a partir de 2007-2008, iniciada no mercado imobiliário
dos EUA, teve repercussões profundas do ponto de vista econômico e político.
Além de se desdobrar na crise da Zona do Euro em 2010, implicou no aumento da
dívida pública dos Estados nacionais, na desaceleração do crescimento econômico
e, no limite, estagnação mundo afora.
Ela recrudesceu as tendências
já evidentes do processo de mundialização do capital: aumento do desemprego
estrutural e da pobreza, precarização do trabalho e redução real de
rendimentos, concentração de renda, redução do Estado de bem-estar social,
insegurança e mal-estar generalizado. A resposta à crise, dada pelos governos
dos países imperialistas e o capital financeiro, foi a radicalização das
políticas e reformas neoliberais. Do ponto de vista político, isso impulsionou
os movimentos de extrema-direita, em especial os neofascistas, mundo afora:
movimentos nacionalistas (alguns apenas na retórica), antidemocráticos,
racistas, xenófobos, contra a imigração, homofóbicos, avessos ao Estado e às
políticas públicas (Filgueiras, Druck, 2018a).
No Brasil a repercussão
econômica da crise mundial, se expressou em uma recessão em 2009 e implicou a
desaceleração do crescimento do PIB a partir de 2011 (início do Governo Dilma).
Associada a uma política equivocada de desoneração fiscal, essa desaceleração
provocou uma redução das receitas do Estado, criando um problema fiscal de
curto prazo. Essa dificuldade se agravou a partir do segundo Governo Dilma
(2015), quando se adotou uma política de ajuste fiscal brutal que jogou o país
numa recessão. Com o rápido aumento do desemprego e redução dos rendimentos, as
condições de governabilidade se deterioram rapidamente, facilitando às forças
político-sociais de oposição de direita desencadear um golpe que levou ao
impeachment da Presidente e permitiu o retorno do protagonismo da burguesia
cosmopolita e das políticas e reformas neoliberais.
Do ponto de vista político,
as repercussões da crise mundial começaram a se explicitar ainda no primeiro
Governo Dilma, quando das manifestações de 2013. Iniciadas como um protesto
local contra o aumento das passagens de ônibus, o movimento se transformou
rapidamente num protesto contra a corrupção, a má qualidade dos serviços
públicos e o desperdício do dinheiro público, redirecionando-se contra o
governo federal (Filgueiras, 2017). No segundo Governo Dilma, com a
deterioração da economia, e a ação política de diversos sujeitos, em uma
mistura bizarra de interesses e motivações, chegou-se ao golpe de 2016.
O sujeito fundamental de todo
o movimento foi, e está sendo, a grande burguesia cosmopolita, tendo a maioria
da classe média como a base social de massa que deu visibilidade e robustez às
manifestações. Os operadores (linha de frente) do Golpe foram a mídia
corporativa, o poder judiciário, MPF, a PF e o poder legislativo. Como
apoiadores ativos destacaram-se inúmeras organizações empresariais,
organizações político-ideológicas de direita e as Igrejas Evangélicas, em
especial as neopentecostais.
Nesse contexto começou a
constituir-se no Brasil um movimento neofascista, a semelhança de outros
países, construído através das redes sociais, com o uso intenso de robôs, numa
operação hoje conhecida como “guerra híbrida”. Cevado e alimentado pelas
manifestações do impeachment, esse movimento ficou robusto e, além de ter sido
sujeito fundamental do golpe, desembocou, posteriormente, na improvável eleição
de Jair Bolsonaro para a Presidente da República. Este não se constituía no
candidato original dos segmentos mais relevantes da grande burguesia, mas esta
acabou por “montá-lo” e defende-lo, assumindo-o como necessário para a
implantação de seu programa regressivo.
Bolsonaro e o seu Governo
neofascista-neoliberal, apesar de suas grosserias e ignorância que envergonham
e ferem as suscetibilidades dos segmentos supostamente mais ilustrados das
classes dominantes, é a melhor expressão dessa grande burguesia cosmopolita,
financeirizada e de negócios, completamente descompromissada com o Estado de
Direito e a democracia. A ação obsessiva desse fascista explicitamente
tresloucado, de destruir tudo que se conseguiu erigir de bom no país, apesar de
sua condição dependente, é observada passivamente, quando não apoiada, pelas
suas classes dominantes. Estas limitam suas críticas a aspectos específicos e
pontuais, apontando alguns excessos e impropriedades no comportamento do
fascista que dirige o país; tenta evitar dificuldades e constrangimentos para
aquilo que lhe é fundamental: a implantação das políticas e das reformas neoliberais.
O conjunto de sua obra,
iniciada ainda no Governo Temer, é assombroso: a Reforma da Previdência (em
andamento), ataques a Instituições científicas (IBGE, INPE, CNPq), defesa da
tortura e de torturadores, estímulo à violência armada contra os índios e
movimentos sociais, perseguição das minorias, defesa e estímulo ao desmatamento
da Amazônia, ataque a Instituições do Estado (STF, BNDES, INCRA). Nesse
conjunto, destaca-se o estrangulamento financeiro e a tentativa de
desmoralização das Universidades Públicas, com o uso de mentiras deslavadas,
sem o menor pejo, pelo próprio Bolsonaro e o Ministro da Educação de seu
Governo.
O Caráter da Grande Burguesia Brasileira, o Governo
Bolsonaro e a Universidade
A maior tragédia do Brasil é
o caráter de sua grande burguesia; constituída frágil e tardiamente no contexto
da expansão do capitalismo no plano mundial, não conseguiu fazer uma revolução
democrática nem se confrontar com o imperialismo e dele se distinguir
(Filgueiras, Druck, Uallace, 2018b). Mais recentemente, aderiu de corpo e alma
à lógica da financeirização difundida pela globalização, constituindo-se,
sobretudo, como uma burguesia rentista e de negócio[3]. O resultado final é
que, diferentemente das burguesias dos países imperialistas – que lideraram
projetos nacionais que incorporaram parcialmente “os de baixo” -, não conseguiu
construir e liderar uma nação em sua plenitude. De fato, o Brasil é uma nação
incompleta (Prado Jr, 1978), desarticulada e sem coesão e identidade entre os
seus diversos segmentos sociais – que não sejam as características superficiais
(a maior parte negativa) que supostamente definiria um brasileiro genérico.
A violência contra as
universidades públicas, assim como as demais iniciativas do Governo Temer e
Governo Bolsonaro, expressa um projeto-programa político de natureza
neoliberal; mas tal como efetivado nos países capitalistas periféricos e
dependentes, que ocupam uma posição subordinada na divisão internacional do
trabalho e cujas burguesias estão indissoluvelmente associadas, como sócias
menores, ao imperialismo. Países nos quais a superexploração do trabalho é
regra e cuja concentração de renda e da riqueza é indecente: no Brasil de hoje,
os cinco indivíduos mais ricos (cinco!) detêm um patrimônio equivalente ao da
metade mais pobre do país (mais de 100 milhões de pessoas!) [4].
Nesse projeto-programa,
comandado por uma burguesia cosmopolita com “complexo de vira-latas”,
subordinada e subserviente ao imperialismo, não existe uma nação nem interesses
nacionais; não há a pretensão de modificar a posição subalterna do país
(exportador de commodities) na divisão internacional do trabalho; não cabe a
defesa, a reserva e o uso dos recursos naturais do país em favor da maioria da
população; tudo é avaliado pela lógica e a métrica do capital financeiro; não
admite distribuição de renda e da propriedade, com a efetivação de uma reforma
agrária e a taxação da riqueza, da herança e dos mais ricos; não necessita de
grandes empresas nacionais e estatais que desenvolvam tecnologia própria, nem
Instituições Públicas de pesquisa e inovação; em suma, não necessita de
Universidades Públicas que pratiquem, de forma integrada, o ensino, a pesquisa
e a extensão – que ajudem a formar uma nação. Estas podem restringir sua
atuação apenas ao ensino (pago) e, assim mesmo, em posição minoritária, pois
atualmente as instituições privadas de ensino superior já absorvem 75% dos
estudantes universitários do país – embora, em geral, ofereçam um “serviço” de
péssima qualidade.
Por tudo isso, a finalização
da tarefa de constituição de uma nação brasileira completa, articulada e coesa,
e de uma Universidade Pública que expresse e sirva a essa urgência, não pode
mais ser realizada por suas classes dominantes alienadas. Resta saber se, no
contexto de uma (des)ordem mundializada, as classes subalternas ainda terão a
capacidade política de levar adiante essa tarefa histórica.
O Future-se
A proposta do Governo
Bolsonaro para as Universidades e Institutos Federais, o FUTURE-SE, pode e deve
ser analisada, avaliada e criticada no contexto das circunstâncias estruturais
e conjunturais acima evidenciadas – destacando-se, entre outros, os seguintes
aspectos:
– É uma proposta que surge
após sucessivas agressões às IFES por parte do Governo Bolsonaro e de seu
Ministro da Educação, no contexto da chamada guerra cultural-ideológica
deflagrada pelo movimento neofascista no Brasil, a semelhança de seus
congêneres em outros países. Uma tentativa grosseira de desmoralizar o ensino e
a pesquisa realizados nas IFES, que veio acompanhada, num segundo momento, de
cortes violentos e contingenciamentos dos seus orçamentos (em média, 30%),
criando-se uma situação dramática para o funcionamento dessas Instituições. Eis
que, colocando uma “faca no pescoço” das IFES, o Governo Bolsonaro apresenta a
“solução” para o problema de financiamento que ele próprio criou, propondo o
Future-se, de forma cínica, como um programa de adesão voluntária por parte das
IFES.
– É uma proposta elaborada
sem qualquer participação da comunidade universitária brasileira, quer sejam
Reitores, Pró-Reitores, docentes, pesquisadores e especialistas da área de
Educação aí presentes. Caracteriza-se, literalmente, como algo que “caiu de
paraquedas”, com a pretensão de se impor de “fora para dentro”; ignorando e
desprezando toda a experiência acumulada durante décadas pelas Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES).
– É uma proposta em cujo
cerne podem ser identificadas, sem muito esforço, as digitais do capital e dos
mercados financeiros, assim como das Corporações e Instituições Privadas de
Ensino Superior (a maioria delas de capital estrangeiro). A apropriação do
patrimônio e dos orçamentos das IFES, bem como do conhecimento nelas produzido,
pelas Organizações Sociais e o capital financeiro, sem qualquer contrapartida,
caracteriza um processo de acumulação por expropriação e espoliação, sem
qualquer produção anterior de riqueza material ou financeira. Uma espécie de
“acumulação primitiva” em pleno século XXI, tal como vem já sendo feito pelo
capital multinacional no que tange aos recursos naturais da Amazônia e ao
conhecimento de seus povos originários. Adicionalmente, a tentativa de
desresponsabilizar o Estado pelo financiamento das IFES, abre espaço para
direcionar mais recursos (além do FIES e do PROUNE) às Instituições privadas de
ensino superior.
– É uma proposta que ao mesmo
tempo em que esvazia o papel do Estado nas atividades de pesquisa e inovação
(na contramão dos países desenvolvidos), criará, supostamente, um Fundo
Soberano do Conhecimento, tentando mimetizar (falsamente) os Fundos Soberanos –
criados pelos Estados nacionais para direcionar suas reservas internacionais
para investimentos com rentabilidade maior do que os títulos do governo dos
EUA. Na verdade o fundo não será Soberano, pois não estará sob o controle do
Estado nem sob a sua direção e gestão. Ele será formado e gerido pelas OSs e
Fundações (ambas de direito privado) e as receitas não serão infinitas, como
afirma o Secretário de Ensino Superior do MEC: além de o patrimônio público ser
finito, a incerteza é intrínseca à pesquisa e desenvolvimento (P&D) e à
inovação. É por isso que nos países imperialistas, sobretudo nos EUA, os
recursos públicos para P&D a “fundo perdido” são a regra (a participação do
Estado direta ou indiretamente); o capital privado só entra quando as coisas já
estão mais ou menos definidas do ponto de vista dos riscos e da trajetória
tecnológica [5]. (Mazzucato, 2014).
– É uma proposta na qual o
suposto fundo soberano será um fundo de investimento multimercado (composto por
fundos de investimentos imobiliários e fundos de investimentos em
participações), que nada mais é do que um fundo que tem como política de
investimentos aplicações em vários mercados: renda fixa, ações da bolsa de
valores, câmbio (moedas como dólar), derivativos e até aplicações no exterior.
Portanto, apesar de sua diversificação, funciona com risco (o retorno para os
investidores não é nenhum um pouco certo), que pode ser maior (o mais comum) ou
menor a depender da política de aplicação do seu gestor. E mais, o acesso à
informação e ao conhecimento de sua forma de operar é muito complicado
(imagine: aplicações em derivativos com o uso do patrimônio público!). Os
fundos de investimentos imobiliários, por sua vez, serão constituídos a partir
da integralização de bens imobiliários da União: transferência do patrimônio
público para o controle privado para ser transformado em riqueza financeira
através da securitização. A história recente desses fundos na crise geral do
capitalismo de 2007-2008 não é nem um pouco confiável; eles estiveram no centro
do processo que levou à perda da aposentadoria e da moradia de milhares de
famílias americanas. No Brasil eles ainda estão começando. E, por fim, os
fundos de investimentos em participações serão constituídos por recursos que
serão destinados à aplicação em companhias abertas, fechadas ou sociedades
limitadas, em fase de desenvolvimento. Cabe ao administrador constituir o fundo
e realizar o processo de captação de recursos junto aos investidores através da
venda de cotas. A incerteza aqui é brutal, pois diz respeito a duas ordens:
incerteza tecnológica e da inovação e incerteza própria de qualquer mercado, em
especial os mercados financeiros.
– É uma proposta
completamente fantasiosa (ingênua ou maliciosa), que acredita que terá a
capacidade de fazer com que o capital financeiro que historicamente, e sem
risco, aplica seus recursos nos títulos da dívida pública brasileira, reoriente
sua estratégia para apoiar o conhecimento produzido nas IFES. Adicionalmente,
acena com uma velha esperança, ou o eterno “conto do vigário” da grande
burguesia e de seus prepostos: o capital estrangeiro está apenas esperando ser
chamado pelo Brasil, que deverá apresentar-lhe projetos lucrativos e facilidades
de todo tipo. Desde os anos 1990, essa política de atrair a “poupança externa”,
como se estivéssemos em meados dos anos 1950 (Governo JK), vem sendo
verbalizada e operacionalizada sem qualquer resultado que não seja: a) a
entrega de patrimônio público (privatizações) e b) a atração de capitais
especulativos de curto prazo. Desde então, o país só tem se distanciado da
fronteira tecnológica da 3ª e 4ª revoluções industriais; somos consumidores de
seus produtos, mas não os seus produtores, a dependência e a subordinação
tecnológica e financeira só tem crescido. A lógica do capital internacional
está aí todos os dias, para quem quiser ver: agora mesmo, nos últimos dias, o
Banco Central passou a vender dólar à vista (queimando as reservas acumuladas
pelo país antes do Golpe de 2016), para evitar a desvalorização do real em
razão da fuga de capitais especulativos aqui aplicados, temerosos pela
possibilidade de uma nova recessão mundial.
– É uma proposta que, ao
explicitar como um dos seus objetivos centrais a articulação entre as IFES e o
setor produtivo com o fim de alavancar a pesquisa e desenvolvimento e a criação
de inovações (P&D), evidencia a sua ignorância (falsa ou de fato) sobre o
que já ocorre há muito tempo, isto é, as IFES já estão articuladas com o setor
produtivo ou a sua parte que tem real interesse nessa articulação (basicamente
empresas estatais e outras Instituições públicas, como a Petrobrás, Eletrobrás,
a Embrapa, a Fiocruz e as Universidades Federais e Estaduais Públicas) [6].
Adicionalmente, a proposta também não demonstra compreensão sobre a distinção
básica (interesses, financiamento e dinâmica) entre pesquisa e desenvolvimento,
de um lado, e inovações tecnológicas de outro; assim como do papel fundamental
cumprido pelo Estado nesse âmbito (Mazzucato, 2014).
– É uma proposta que redefine
o conceito de autonomia financeira, administrativa e de gestão das IFES, tal
como inscrito na Constituição Federal, retirando a responsabilidade do Estado
pelo seu financiamento, substituindo-o pela busca, por parte das IFES, de
recursos incertos no setor privado. No entanto, prepostos do MEC têm afirmado
que as novas receitas serão complementares e não substitutas do orçamento
público; com o claro objetivo de reduzir a resistência a ela por parte da comunidade
universitária que, por experiência própria, já lida com a falta de recursos
públicos e a existência de uma incerteza absoluta na captação de recursos no
mercado (quantidade e qualidade). O grosseiro contingenciamento atual do
orçamento das IFES indica o que será a prática desse e de outros governos
reacionários, que se utilizarão dessa “alternativa” para chantagear com a
manipulação das verbas públicas.
– É uma proposta que, ao
estabelecer as Organizações Sociais (de direito privado e sem chamada pública!)
como os sujeitos fundamentais que a operacionalizarão, retira das IFES a gestão
de seus recursos e de seu patrimônio, e mesmo das atividades que lhes são
próprias: ensino, pesquisa e extensão. É o reino total da terceirização,
transformando os dirigentes das IFES em “rainhas da Inglaterra” de fato e
tornando os seus conselhos e colegiados inúteis e disfuncionais. E mais, é uma
proposta que se configura em uma antessala da Reforma Administrativa atualmente
em elaboração pelo Governo, que já anunciou que a IFES deixarão de ser
autarquias – resumidamente, pessoas jurídicas de direito público, com
patrimônio e receita própria, criadas para desenvolver atividades típicas de
Estado.
– É uma proposta que trás
para dentro da Instituição Pública e do Estado uma lógica que é própria do
setor privado, introduzindo dentro da comunidade universitária a disputa e a
competição, no curto prazo, por recursos privados; assim como adotando
mecanismos de aferição e avaliação de metas e produtividade de organizações
que, tipicamente, têm como objetivo primeiro, e último, a obtenção de lucro.
Nessa perspectiva o docente-pesquisador deve se transformar num micro/pequeno
empresário, se tornar um empreendedor que buscará, acima de tudo, benefícios e
lucros privados individualizados.
– É uma proposta que afronta
o Regime Jurídico Único que rege as IFES e desmonta a carreira de docente de
ensino superior unificada nacionalmente, ao longo de várias décadas. Introduz a
possibilidade de contratação de docentes e servidores sem concurso público e de
diferenciação de remuneração entre eles para além dos salários previstos nos
vários níveis da carreira. Indica a tendência de diferenciação entre as IFES,
de acordo com a região em que se localizam, entre as que terão uma “vocação”
para a pesquisa, ensino e extensão (uma pequena minoria) e as que deverão se
restringir ao ensino ou, no máximo, à extensão (a maioria). Essa mesma
disjunção se manifestará no interior de cada IFES, conforme a área de
conhecimento e pesquisa.
Em suma, como é próprio da
conjuntura econômico-política que o país está vivendo, desde o golpe de Estado
de novo tipo efetivado com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, os
interesses da aliança entre a burguesia cosmopolita e o imperialismo se
expressam e tentam impor-se em todas as esferas da sociedade. A miopia de
amplos segmentos da classe média, embalada pelo combate à “corrupção dos tolos”
(Souza, 2017) e seu histórico preconceito contra “os de baixo”, num contexto de
grave crise econômica, fez dela massa de manobra dessa aliança.
O Future-se caso seja
efetivado, além de atender aos interesses dessa aliança, será também,
ironicamente, uma violência histórica contra a classe média, que tem no ensino
superior de qualidade, sobretudo o que é ministrado nas IFES e nas Universidades
Públicas Estaduais, o meio fundamental de sua condição e reprodução social.
Além disso, a desorganização desse sistema presente em todo o país, proposta
pelo Future-se, é antinacional, pois enfraquecerá a soberania do país; romperá
o pacto federativo regional e destruirá o patrimônio científico-cultural do
Brasil; expulsará das IFES os segmentos mais frágeis que passaram, mais
recentemente, a ter acesso a elas; e penalizará mais ainda “os de baixo” que
perderão os serviços gratuitos ofertados pelas IFES.
Conclusão
Como se vê, o Future-se do
Governo Bolsonaro é a cara da grande burguesia cosmopolita brasileira, do
capital financeiro e do imperialismo; ele “mata dois coelhos numa só cajadada”:
1- desestrutura, privatizando e desorganizando, o sistema público de ensino,
pesquisa e extensão; e, 2- transfere o patrimônio e o orçamento públicos para
esses sujeitos, em uma aliança antinacional e antipopular, que tem avançado,
cada vez mais, sobre os fundos públicos – apropriando-os sem cerimônia e sem
qualquer contrapartida, num processo perverso de acumulação por espoliação.
A aceitação do Future-se, com
eventual adesão ao mesmo pela comunidade universitária, seria uma completa
insensatez, “um tiro no próprio pé”; não se pode jogar no lixo, da noite para o
dia, uma estrutura pública científica e democrática de ensino, pesquisa e
extensão, que tem o seu financiamento público garantido pela Constituição e que
foi construída ao longo de várias décadas. O caminho é o da luta e da
resistência. Em particular, no caso específico aqui tratado, resistência e luta
contra os cortes e contingenciamentos dos orçamentos das IFES, com a volta
imediata da plena normalidade de seu financiamento pelo Estado, assim como pela
ampla liberdade de pesquisa, ensino e extensão.
Mas não se pode ter ilusão e
nem tampouco ser corporativista; a resistência e luta da comunidade
universitária e seus aliados só terá êxito como parte da resistência e luta
mais ampla contra o neofascismo e suas milícias; contra a corrupção do Estado
brasileiro (evidenciada de forma clara e factual pela “Vaza Jato”) por parte de
setores do Judiciário, Ministério Público federal e Polícia Federal que, tendo
por álibi o combate à “corrupção dos tolos”, vem atingindo por dentro o Estado
Democrático de Direito – transformando-o em um Estado de Exceção permanente. E
a chave para isso, de forma análoga ao combate ao terrorismo nos países
imperialistas, foi erigir a corrupção, no Brasil e nos demais países da
periferia, como o principal problema – num combate sem tréguas e sem fim, que
desvia permanentemente a atenção da população dos seus problemas econômicos e
sociais substantivos e essenciais.
Em suma, a luta em defesa da
Universidade Pública faz parte, objetivamente, da resistência e luta contra o
arbítrio, a violência, a ignorância, o preconceito e a estupidez que são a cara
desse governo; contra o fundamentalismo religioso incrustado no Estado definido
como laico pela Constituição do Brasil (Artigo 19); contra a Reforma da
Previdência e a destruição do SUS e da assistência social; contra a destruição
da Amazônia e de suas populações originais; contra a censura, o racismo, o
falso moralismo e as agressões dirigidas às minorias. Enfim, uma luta em defesa
da soberania nacional e pelo controle do fundo público pela grande maioria do
povo brasileiro.
Notas
1 -A fração da burguesia
cosmopolita tem presença e pode ser reconhecida no Brasil, principalmente, nos
seguintes setores: atividades e mercados financeiros (bancos, fundos de
investimento e de pensão, empresas de consultoria e assessoria financeira,
seguradoras, corretoras, planos de saúde); empresas brasileiras fornecedoras e
prestadoras de serviços, articuladas ou associadas às multinacionais em vários
tipos de negócio; alta gerência das empresas multinacionais na indústria e no
agronegócio; grandes grupos de marketing e comunicação; grandes escritórios de
advocacia e auditoria; e, mais recentemente, grandes universidades privadas, a
maioria já de propriedade do capital estrangeiro.
2-A grande burguesia interna,
conceito cunhado por Nicolas Poulantzas (1974; 1977), não é sinônimo de
burguesia nacional; diferentemente desta última, que já não existe no Brasil há
décadas, não possui contradições incontornáveis com os capitais estrangeiros e
o imperialismo, não é nacionalista; mas possui um espaço próprio de reprodução
do capital que não passa necessariamente pela aliança com estes últimos –
portanto, diferencia-se também da burguesia cosmopolita associada, política e
objetivamente, ao imperialismo. Essa fração da burguesia brasileira está
presente, e pode ser identificada, em vários ramos da indústria de
transformação (têxtil, alimentos, bebidas, bens de capital, entre outros), na
cadeia produtiva do petróleo, na construção civil pesada, na produção de
commodities agrícolas e minerais, em segmentos do grande comércio varejista e
do agronegócio.
3-Segundo a colunista social
Hildergard Angel, em texto publicado pela Revista Fórum, “o rico brasileiro de
verdade já desistiu do Brasil. Está pouco se lixando se tem gente pobre,
vivendo e defecando nas ruas. Não é que ele seja insensível, é que ele não vive
aqui. Ele está por aqui. Tem seu apartamento à beira mar, frequenta seu clube,
onde joga tênis, convive com seu reduzido círculo de amigos e ponto. Depois,
embarca no seu jato para a residência lá fora. O Brasil é para ganhar dinheiro
e remeter dinheiro. Este rico não tem mais o embaraço da língua, como alguns
ricos de gerações anteriores, pois os filhos e netos já dominam o inglês desde
que nascem e sequer conhecem a nossa História. O rico brasileiro é globalizado,
não tem brio patriótico, ao contrário, sente bastante preconceito e desprezo em
relação ao nosso país, onde lamenta ter nascido.”.
4-Segundo a Oxfam,
confederação de ONGs, presente em 94 países e que trabalha para a redução da
desigualdade. Relatório de 2018.
5-Nos EUA e na Europa os
recursos que financiam a pesquisa nas Universidades e outras instituições são
públicos: respectivamente, 60% e 77% do total. As empresas participam apenas,
em ambos os casos, com 6%. O restante do financiamento vem de recursos das
próprias universidades e de organizações sem fins lucrativos. (Jornal da USP,
24/05/2019). Por outro lado, nos EUA, segundo a National Science Foundation, o
que as universidades arrecadam com contratos de pesquisa com as empresas
representam, em média, apenas 1% do que precisam para se manter. Há exceções,
sendo a mais destacada o MIT, com mais de 15%. (Dagnino, Romão, Bezerra, 2019).
6-Como exemplo pode-se citar
o documento da UNB, já mencionado, que analisa o Future-se. Em 2018, essa
Universidade assinou “diversos instrumentos para a execução de projetos de
pesquisa, totalizando cerca de 78,5 milhões”: 72% deste total com órgãos
públicos federais, 20% com órgãos públicos estaduais e autarquias, apenas 7%
com a iniciativa privada.
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preliminar do Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras –
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Reitoria n. 1.701.
*Professor
Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia
Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.
(O autor se beneficiou das críticas e contribuições de Graça Druck, Professora Titular da FFCH da UFBA)
Fonte: Publicado no Outras Palavras
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