Os resultados obtidos no avanço do
movimento fascista são caóticos e de destruição: desestruturação de uma
institucionalidade mínima, superpoderes a pequenos grupos e perseguição à
oposição ou a dissidentes.
Durante os anos de 1920, o peruano José
Carlos Mariátegui estava na Itália e acompanhava a ascensão de Mussolini com
suas brigadas fascistas ao poder. Escreve uma série de artigos em jornais de
sindicatos operários italianos e artigos para revistas peruanas descrevendo o
que ocorria na Europa entre guerras. Em português temos uma coletânea desses
textos sob o título As origens do fascismo, organizada por Luiz Bernardo Pericá
e publicada pela editora Alameda, em 2010. São textos detalhados e que nos
apresentam uma narrativa de eventos cotidianos, grandes acontecimentos
políticos e, sempre, acompanhada por uma crítica reflexiva aguda de uma personagem
formada em solo ameríndio analisando um território da “antiga” Metrópole.
Em um de seus artigos, intitulado “Novos
aspectos da batalha fascista”, de 1925, Mariátegui apresenta uma face peculiar
do movimento liderado por Mussolini: “o fascismo quer ser uma religião”. Com
isso, o intelectual latino-americano indicava que não se tratava de um
movimento organizado, com programa político-econômico claro e objetivos
minimamente visavam atender a maior parcela da população organizada sob o
Estado italiano. Era, na verdade, um movimento sem pauta, sem programa, que
funcionava apenas como movimento. Tratava-se, isso sim, de uma
organização imediata (sem outra mediação que não sua própria atuação)
reacionária, que apelava à massa correligionária um “misticismo reacionário
nacionalista”, que “pretendia ser, mais que um fenômeno político: um fenômeno
espiritual”.
Esse movimento era ritualizado, sem
dogmatismo claro a não ser a convocação para reagir contra os inimigos, sempre
à espreita, e o culto à “nação”, uma abstração que circulava em torno de
valores morais também imprecisos. Na verdade, “a bandeira da pátria cobria
todos os contrabandos e todos os equívocos doutrinários e programáticos. Os
fascistas se atribuíam a representação exclusiva da italianidade. Ambicionavam
o monopólio do patriotismo”, como comenta Mariátegui. Desse modo, o movimento
se legitimava e instituía em torno de uma espiritualidade reacionária, que
apenas tem função enquanto vê a ameaça inimiga e se apoia nos valores nacionais
(seja lá o que isso signifique). A aniquilação do inimigo, objetivo
fundamental, poria fim a esse misticismo. O problema é que ele nunca é
derrotado ou nunca pode ser derrotado para que o movimento seja reanimado e o
misticismo reacionário nacionalista convocado para um passo a mais rumo à paz
perpétua.
Emmanuel Lévinas, um filósofo judeu que
foi preso no campo de concentração nazista Stalag B durante a Segunda
Guerra, comentou que a paz perpétua é, na verdade, a paz dos cemitérios. E ao
que parece, esse é o resultado último do fascismo como religião. Essa face
fascista precisa ser explicitada para ser criticada. Não se trata de atacar a
religião por ser religião, mas o fascismo quando funciona como tal. O ovo da
serpente quando chocado precisa de uma legitimação moral que não vem apenas com
resultados políticos que agradam a massa. Ao contrário: os resultados obtidos
no avanço do movimento fascista são caóticos e de destruição: desestruturação
de uma institucionalidade mínima, superpoderes a pequenos grupos e perseguição
à oposição ou a dissidentes. A legitimação não vem pelo sucesso, mas pela
mística que azeita um grupo sedento por vingança ou de esperança. Como pode uma
massa inteira aceitar violência contra si mesma se não pela aceitação de que é
necessário o martírio ou sacrifício para se receber uma dádiva futura?
Também no início da década de 1920,
Walter Benjamin escreve um pequeno texto intitulado “Capitalismo como religião”
(publicado em português em uma coletânea de mesmo título pela Boitempo, em
2017, organizada por Michael Löwy), no qual pretende superar a compreensão weberiana
vulgar de que o mundo foi dessacralizado, e que o avanço da modernidade supera
relações mágicas ou espiritualistas, substituídas por uma racionalidade
purificada. Benjamin afirma que o próprio capitalismo é e funciona como
religião; uma religião também sem dogma e com culto constante, sempre em
movimento, incansável. Aqui há algo de semelhante na estrutura utilizada por
Mariátegui para destacar o papel religioso do fascismo ou do fascismo que se
pretende uma religião. O culto deve ser constante, estar sempre em movimento.
No culto, o papel do sacrifício é
central para a manutenção da ordem social. O antropólogo francês René Girard
desenvolve o tema em A violência e o Sagrado, no qual apresenta o papel do
sacrifício tanto como apaziguador, ou seja, que soluciona uma disputa para
garantir a paz e a coesão social com o assassinato de um bode expiatório,
quanto o papel da promessa de um bom futuro mediante a morte de uma vítima. Os
teólogos da libertação desenvolvem o tema do sacrifício pensando nas exigências
do Mercado de sacrifício aparentemente temporário das massas pobres em nome de
um futuro próspero e da aceitação da violência como medida historicamente
necessária para que seja implantado um reino de bonança, por meio do Mercado
total. Seja, portanto, tanto com o capitalismo como religião, quanto com o
fascismo como religião, não são necessários dogmas ou programas claros, mas o
culto constante e a necessidade permanente de sacrifícios. Em um, a aceitação
da morte das pessoas empobrecidas e socialmente excluídas, e no outro a
aniquilação dos inimigos (opositores e dissidentes).
Esse caráter de movimento constante
destacado por Mariátegui ao tomar o fascismo como religião, como o misticismo
reacionário nacionalista, sem pausa, sem mediações que não sejam a própria
atuação do movimento, é o que me permitiu desenvolver o que chamei de “rebelião
das elites”, no livro Fetichização do poder como fundamento da corrupção,
publicado em 2018 pela editora Fi, fruto da minha dissertação de mestrado.
Nele, desafiado por uma provocação do filósofo e pedagogo Alípio Casalli, em
contraposição ao que Enrique Dussel chamou de “rebelião das vítimas” (quando
grupos organizados em processo de libertação conseguem transformar ou mesmo
romper a ordem dominante vigente), propus a “rebelião das elites”, que não
precisam criar nenhuma mediação nova para reforçar sua posição de domínio, a
não ser potencializar as já existentes. Ou seja: é uma ação imediata. Puramente
reacionária, a rebelião das elites visa a criação de uma nova ordem, que por
sua vez é conservadora: mantendo as estruturas de dominação, procura torná-las
mais potentes. Uma sociedade já racista, será institucionalmente mais racista.
Se machista, ainda mais machista. Se sociedade de classes, com abismo e
opressão ainda piores.
Mas as elites não atuam e nem podem
atuar solitariamente contra o povo. As massas são gigantescas e incontroláveis,
se não houver algo que legitime a ordem de exploração. Precisam funcionar como
religião. Se ainda encontrarem no campo religioso lideranças, símbolos e ritos
que reforcem esse processo, abarcam com maior facilidade parcelas da massa
popular. Situações de exploração precisam ser aceitáveis, introjetadas e mesmo
replicadas pelos sujeitos – sejam os explorados ou os exploradores.
Há um papel de legitimação moral da
violência e da exclusão que precisa estar claro. Pois desde já, precisamos
trazer à consciência que nem a aniquilação do opositor e nem o sacrifício do
inocente (seja o auto-sacrifício ou o sacrifício de uma vítima) garantem a
prosperidade ou a paz perpétua. São os programas populares, planejamentos
comunitários, desenvolvimento de organizações sociais que criem instituições e
tornem realizáveis projetos político-econômicos que trazem dentro do possível
melhorias para as vidas da população. Contudo, essa disputa não se dá
primeiramente no convencimento de que o “segundo caminho é o melhor”, mas na
crítica do primeiro, ou melhor, na crítica da religião. E nesse ponto, não
há como não ser marxista: “a crítica da religião é o pressuposto de toda
crítica”.
Referências citadas no texto:
BENJAMIN, Walter. Capitalismo como
religião. São Paulo: Boitempo, 2017.
GIRARD, René. A violência e o
sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
LIMA, Bruno Reikdal. Fetichização
do poder como fundamento da corrupção: uma proposta a partir da filosofia
latino-americana de Enrique Dussel. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
MARIÁTEGUI, José Carlos. As origens
do fascismo. São Paulo: Editora Alameda, 2010.
Fonte: Publicado no Jornal GGN
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