Que utilizemos o coronavírus como
reflexão sobre os danos que nós, como humanos, estamos causando à Terra
*Por Magali Cunha
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Destruição do meio ambiente. (Foto: ASCOM/SEMAS)
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Ninguém quer uma pandemia! Claro! Apesar
de alguns tentarem lucrar com ela, no fim, ninguém quer doença nem o medo dela,
muito menos morte e sofrimento. Porém, já que o caso está dado e temos que, não
apenas conviver com ele, mas sobreviver a ele, é cada vez mais necessária a
reflexão sobre estes tempos terríveis que nos leve a atitudes de superação com
vistas não apenas a resolver o presente mas a construir um futuro sustentável.
Há um texto belíssimo do apóstolo Paulo,
no Novo Testamento da Bíblia cristã, uma das últimas cartas que escreveu,
dirigida aos cristãos que estavam em Roma, que diz:
Porque sabemos que toda a criação, a um
só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também
nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo,
aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. Porque, na esperança,
fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê,
como o espera? (Carta aos Romanos 8.22-24).
Paulo refere-se à criação de Deus, a
terra habitada, dizendo que ela geme, sofre angústias, e com ela todas as
pessoas que a habitam. Naquele tempo, vivia-se a opressão e a exploração do
Império Romano. Hoje, é o império do capital e dos que dele se alimentam que
oprime e explora a criação.
Teólogas e teólogos têm alertado há
muito tempo sobre os gemidos da terra explorada. Alertam que os seres humanos,
apesar de serem portadores de um chamado divino para cuidarem e guardarem o
Eden, símbolo maior da integridade da Criação de Deus, desprezaram e
negligenciaram essa tarefa. Os homens se tornaram a própria ameaça da Terra, nossa
Casa Comum, por meio da exploração abusiva dos seus recursos, do maltrato ao
seres não-humanos e do descaso com os seus iguais. Isto representou a
consolidação de um modelo de vida baseado na cobiça, na competição e no consumo
sem medida, no lucro gerador de injustiça e ausência de paz.
Cientistas explicam que as pandemias
estão conectadas a estas questões ecológicas. Epidemias virais sempre surgem na
relação da sociedade humana com a vida selvagem, de uma dominação de humanos
sobre animais.
O coronavírus é o centro das discussões
sobre a vida, o presente e o futuro. São centenas de milhares de casos com um
número expressivo de seres humanos que já perderam a vida. Além de ser uma
questão de saúde pública, o coronavírus traz dimensões sociais grandes: levanta
o problema da xenofobia contra asiáticos; da discriminação social contra pobres
e moradores das periferias, dependentes do trabalho informal e do transporte
público, vulneráveis à contaminação e carentes da assistência pública; da
estupidez daqueles que se sentem imunes frente às demandas coletivas por
solidariedade, e afirmam: “Se eu me contaminei, isso é responsabilidade minha.
Ninguém tem nada a ver com isso”.
Em artigo para o Instituto pela Ecologia
Social, intitulado “Coronavírus
e a necessidade de uma ecologia social” , o sociólogo da saúde
canadense E. G. Smith recorre a um texto
recente publicado pela revista The Nation que afirma que
cientistas atribuem a morcegos e pangolins as origens potenciais do vírus, mas
a verdadeira fonte seriam os ataques humanos ao meio ambiente. O artigo explica
como, desde 1940, centenas de germes surgiram em novas áreas onde nunca tinham
sido vistos antes. A maioria deles tem origem em animais. Alguns vêm de animais
de estimação e gado, mas a maioria deles vem de animais selvagens incomodados
por humanos.
A partir disto, Smith explica que os coronavírus
são zoonóticos, ou seja, são transmitidos entre animais e pessoas. Ele recorda
que o surto atual teria origem na cidade chinesa de Wuhan, com ligação com o
Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, e que não está claro exatamente
de qual criatura selvagem o vírus pode ter se originado. Porém, o sociólogo
apresenta uma crítica: esta questão esconde uma das raízes da nossa crescente
vulnerabilidade a pandemias, que é a perda de habitat de certos animais.
E. G. Smith reflete que a nossa atual
sociedade de mercado está baseada na necessidade capitalista de um crescimento
do lucro sem fim. É esta lógica que leva empresas e empreendedores a se
confrontarem com a vida selvagem na busca do lucro, forçando animais a entrarem
no habitat remanescente em declínio ou no próprio mercado. E é exatamente este
contato próximo e repetido que permite que os micróbios que vivem nos corpos
dos animais atravessem para o nosso próprio habitat. Quando isso acontece,
esses micróbios podem se transformar em patógenos (organismos causadores de
doenças) humanos mortais.
Tomar conhecimento e refletir sobre este
processo é fundamental não só para o presente mas para o futuro. Por que
chegamos a estas crises? Por que somos submetidos coletivamente a riscos de
morte?
O que estamos vivendo não é, portanto,
uma obra sobrenatural de Satanás ou castigo de Deus, como alguns religiosos
querem fazer crer, mas uma ação maligna (por que não satânica?) dos nossos
iguais que promovem domínio em vez de cuidado, exploração em vez de preservação.
Por isso, este precisa ser um tempo de oportunidade, de redenção e esperança,
como escreve o apóstolo Paulo.
Oportunidade de se pensar um mundo
ecológico e justo organizado em torno do cuidado, não centrado nos humanos, mas
que busque a harmonia de todos os seres que habitam a mesma Terra, Casa Comum.
Oportunidade de se retomar a dimensão da coletividade e do cuidado de uns com
os outros, superando-se o individualismo e o egoísmo de uma sociedade centrada
na competição e no lucro.
Se partirmos destes princípios básicos
de coexistência, dá para ter esperança de que sobreviveremos a mais esta
adversidade para fazermos o mundo melhor possível.
*Jornalista e doutora em Ciências da
Comunicação. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas. Escreve às quartas-feiras na coluna Diálogos da Fé do
site da revista CartaCapital.
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