Descobri que é muito difícil escrever
sobre algo que permanece confuso, desorganizado dentro de mim
*Por Luana Tolentino
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Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio De Janeiro. (Foto: Mário Vasconcellos/CMRJ)
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Belo Horizonte, 14 de março de 2020
Querida Marielle,
Há tempos desejo lhe enviar essa carta,
mas somente agora consegui redigi-la. Descobri que é muito difícil escrever
sobre algo que permanece confuso, desorganizado dentro de mim. Passados dois
anos daquela terrível noite de 14 de março de 2018, ainda não consigo entender
o que realmente ocorreu. É como se eu estivesse em meio a um pesadelo. Talvez
em razão da violência, da desfaçatez, da falta de pudor com que tudo aconteceu.
Você não vai acreditar. Três dias antes
do seu assassinato (não queria usar essa palavra…), enviei uma mensagem para
Priscilla, uma amiga que trabalhava no seu gabinete. Perguntei como estava
sendo a experiência de trabalhar com você. Demonstrei preocupação, pois naquele
momento, o ódio às mulheres, aos negros e aos pobres, pilares da nossa
sociedade, ganhava ares institucionais. A Pri respondeu da seguinte maneira:
– Marielle é a melhor pessoa com quem
trabalhei em toda a minha vida! – Em seguida, ela enviou uma mensagem dizendo
que realmente as coisas não estavam fáceis.
Jamais poderia imaginar que 72 horas
após a nossa conversa, sua vida seria ceifada em uma emboscada, sem qualquer
chance de defesa. Nunca havia chorado a morte de uma pessoa pública, mas com
você foi diferente. Chorei ao me perguntar como puderam tirar sua vida e,
consequentemente, a do Anderson também. Chorei por terem roubado de forma
violenta toda esperança que depositávamos em você. Chorei pelos mais de 45 mil
eleitores e eleitoras que votaram em você. Chorei pelos seus pais, pela sua
filha, pela sua irmã, pela Mônica. Chorei por me dar conta dos rumos que o
nosso país estava tomando. Ainda hoje, penso nos ferimentos que lhe causaram.
Temos nos esforçado para que sua luta
não seja em vão. Em toda cidade que vou, encontro seu nome, seu rosto nos
muros, nas escolas, nos coletivos, nos centros acadêmicos. No último 8 de
março, vi você em várias faixas e cartazes. Na minha escola, homenageamos você
no Dia da Consciência Negra. Preciso te contar! Quando eu disse que você seria
a homenageada, um aluno questionou: “Mas, professora! Ela era sapatão!” Antes
que eu interviesse, uma aluna respondeu: “Se ela era sapatão, não importa! Cada
um é livre para amar quem quiser! Temos que respeitar!” Jennifer, a autora da
resposta, na época, tinha apenas 11 anos. Me emociono só de lembrar.
É bem verdade que eu gostaria que essas
homenagens não fossem decorrentes da brutalidade que fizeram com você, mas
ainda assim, fico orgulhosa quando vejo o mundo inteiro lembrando de ti,
exigindo justiça. Há quem sinta inveja. Nelson Motta estava certo ao dizer que
“a inveja e o ressentimento são armas que os brasileiros manejam com
excepcional destreza e virulência”.
Por outro lado, vejo pessoas que nada
têm a ver com a sua história se apropriando dela. Tenho certeza que você não
concordaria com o fato do José Padilha dirigir uma série a seu respeito. Para
justificar a ausência de profissionais negros e negras atuando nos bastidores,
Antônia Pellegrino, uma das diretoras da produção, disse que não há um Spike
Lee e uma Ava DuVernay no Brasil. Como bem sabemos, o “pacto narcísico da
branquitude” não tem limites. Não sei se você teve oportunidade de conhecer a
pesquisadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, mas ela escreveu: “Somos as
fontes mais genuínas de conhecimento sobre nós; exigimos que estudos que nos
tomem por temática tenham como centralidade nossos pontos de vista de mulheres
negras”. Obviamente, a Antônia e o Padilha em momento algum levaram isso em
consideração.
Infelizmente, vejo também tentativas
incessantes de assassinar sua honra, o que você representa, principalmente para
cada uma de nós. Isso tem dificultado nossa luta. É muito difícil lutar contra
o absurdo, contra o escárnio, contra o fascismo. Uma coisa é estabelecer
diálogo com quem discorda de suas posições políticas, das ações da legenda
partidária a qual você era filiada. Outra coisa é esboçar uma reação quando
alguém comemora sua morte, quebra uma placa em sua homenagem, sorri diante de
tamanha falta de respeito e humanidade. Quando isso acontece, é como se eu
levasse um soco no estômago, que me paralisa por completo. Querida, tudo está
muito pior do que quando você nos deixou…
No ano passado, estive com a Anielle,
sua irmã. Foi um encontro rápido. Ela foi muito generosa comigo. Depois de um
abraço apertado, disse a ela que tudo iria se resolver, o que não aconteceu até
agora. Ao que tudo indica, não resolver, não dar respostas a nossas perguntas,
têm sido uma escolha.
Também no ano passado, participei de uma
reunião na Maré. Chegando lá, fiquei imaginando o que você, a sua voz, o seu
cargo representavam para aquelas pessoas. Pude vê-la caminhando por aquelas
ruas. Como sua mãe disse durante entrevista a uma amiga jornalista, que negona
linda você era!
Sabemos que o racismo estrutural tem
impedido o surgimento de mais Marielles nas Marés espalhadas pelo Brasil, mas
prometo a você que, enquanto eu estiver nesse mundo, lutarei para que nossas
meninas possam sonhar, possam ser o que bem quiserem. Apesar das dificuldades,
de tantas incertezas, seguirei lutando para que nenhuma mulher seja
interrompida, tal qual você exigiu em seu último discurso na Câmara de
Vereadores do Rio.
Imagino que você esteja muito feliz com
a gravidez da Anielle, com a abertura do instituto que leva o seu nome. Que a
Eloah venha com muita saúde e traga a esperança de dias melhores. Imagino sua
felicidade ao saber que a Mônica está refazendo a vida. Penso que um amor como
o de vocês jamais morre, muito pelo contrário: transforma, expande, multiplica,
floresce.
Em outubro teremos novas eleições. Assim
como em 2018, torço para que seu exemplo, seu legado, sua força, inspire e
ajude a eleger mais mulheres negras. Precisamos delas para mudar a estrutura
escravocrata desse país, para fortalecer nossa democracia, tão incipiente e
fragilizada.
Você é farol, é semente, e nada nem
ninguém roubará isso de nós.
Obrigada, querida Marielle. Por tudo.
Deixo um abraço. Vejo o seu sorriso.
Sonho com justiça.
Até um dia.
Luana Tolentino
*Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como
professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região
metropolitana. Atualmente é professora universitária. É autora do livro Outra
educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula,
lançado em 2018 pela Mazza Edições.
(Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital)
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