Fica cada vez mais distante a busca de
uma luta organizada para chegarmos à clarificação deste crime, que
possivelmente exporia as relações entre governo, polícia e redes criminosas no
Rio
*Por Eliana Sousa Silva
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No Rio de Janeiro, manifestantes cobram elucidação do
assassinato de Marielle Franco, em 2 de novembro de 2019. PILAR
OLIVARES (REUTERS)
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Março evoca, além de suas águas que tudo
levam — como uma vez escreveu o compositor Tom Jobim ― acontecimentos que não podem e não devem ser apagados ou esquecidos.
São acontecimentos que nos convidam a refletir, a todo o momento, sobre como lidamos com processos históricos estruturantes no
campo da política, dos direitos fundamentais e da existência em um mundo que
nos desafia todos os dias.
No plano global, março demarca a
importância de olharmos para as questões que estruturam a desigualdade de gênero mundo afora. Um momento que pode ser
— embora não somente — relevante para visibilizar de forma positiva o conjunto
de lutas e conquistas travadas diariamente pelas mulheres, em todas as suas
potencias e possibilidades.
Há no Brasil, no entanto, um fato que
marca este mês de forma dolorosa: foi em março de 1964 que aconteceu o
golpe militar de Estado.
Um momento da nossa história que precisa
ser fortemente lembrado e reconhecido, pelo grave atentado contra toda uma
sociedade, que foi cerceada em seus direitos básicos como a liberdade de expressão.
Além disso, milhares de indivíduos tiveram a própria vida ceifada por não concordar com atrocidades cometidas.
É um período nefasto da nossa história,
onde a perseguição, prisão e tortura de muitos cidadãos deixou marcas profundas
e eternas nos planos objetivos e subjetivos destas vidas e de seus familiares.
Por esta e tantas outras razões, é inconcebível aceitarmos um momento de deteorização vertiginosa da democracia, pela
qual tanto lutamos para estabelecer como regime. É vergonhoso observar o
processo em curso — orquestrado por parte de certos grupos — de cerceamento dos
direitos básicos conquistados no país, fatos que causam repugnância quando
vislumbramos as consequências que atentam contra os direitos da população
brasileira.
O Rio de
Janeiro — conhecido solo fértil para gerar e aprofundar vícios
e práticas consideradas nocivas à vida pública — tem visto a preservação e a
garantia dos direitos da população decair em uma espiral sem fim, no que tange o controle das
violências e das redes criminosas que já ocupam diferentes instâncias de poder.
É nesse cenário que março derrama
novamente suas águas pesadas quando, em 2018, as circunstâncias do assassinato
da vereadora Marielle Franco rompem todos os limites éticos aos
direitos humanos. A notícia expõe a gravidade das relações espúrias que vem
sendo geridas, numa linha temporal, perpassando inúmeras gestões de
governadores e prefeitos que fazem parte desse estado.
Dois anos após esse crime bárbaro, uma
pergunta insistente e indigesta continua a desestabilizar o cotidiano: quem
mandou matar a vereadora Marielle Franco e, como consequência, o motorista
Anderson Gomes? Como olhar de forma passiva para governantes, parlamentares e
gestores das políticas públicas depois de um assassinato que escancara a fragilidade e a profundidade de um país que não esclarece
seus crimes, principalmente aqueles que atingem grupos de
determinados extratos sociais.
Como uma das pessoas cujo o nome se
encontrava nas possíveis listas de buscas na internet realizadas pelo acusado
pelo assassinato da vereadora, o policial militar reformado Ronnie Lessa — divulgadas pelo
Ministério Público em outro março, desta vez de 2019 — falo de um lugar
completamente desprotegido e exposto. Desde então, são muitos os
questionamentos e dúvidas sobre os resultados das investigações e para onde ela
aponta.
É nesse hiato de tempo, dois anos
inteiros sem a elucidação do brutal homicídio de Marielle Franco e Anderson
Gomes, que uma profusão de especulações sobre a vida da vereadora e sua atuação política se fazem
presentes; além de toda apropriação e uso indevido de sua memória e imagem por
toda a sorte de grupos e pessoas. Nesse modo operante, fica evidente que está
cada vez mais distante a busca de uma luta organizada para chegarmos à
clarificação deste crime, que possivelmente exporia as relações entre governo,
polícia e redes criminosas no Rio de Janeiro.
Algumas organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional,
têm cobrado de forma sistemática e incansável — bem como a família de Marielle Franco e o partido do qual
ela fazia parte — a responsabilização dos mandantes desse assassinato. Por mais
que pese esse esforço, há muitos labirintos e entrelinhas que desconhecemos
para que a justiça se faça — neste e em muitos ouros crimes nesse país. A nós,
neste março de 2020, resta relembrar à sociedade um pedido que não deve ser
levado com as águas nem com o tempo: que a morte dessa parlamentar não seja em
vão.
*É diretora da ONG Redes da Maré,
pesquisadora em segurança pública e professora visitante do Instituto de
Estudos Avançados da USP
Fonte: Publicado no El País Brasil
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