"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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sábado, 14 de março de 2020

Dois anos depois, é preciso relembrar que a morte de Marielle Franco não foi em vão. Por Eliana Sousa Silva

Fica cada vez mais distante a busca de uma luta organizada para chegarmos à clarificação deste crime, que possivelmente exporia as relações entre governo, polícia e redes criminosas no Rio

No Rio de Janeiro, manifestantes cobram elucidação do assassinato de Marielle Franco, em 2 de novembro de 2019. PILAR OLIVARES (REUTERS)
Março evoca, além de suas águas que tudo levam — como uma vez escreveu o compositor Tom Jobim ― acontecimentos que não podem e não devem ser apagados ou esquecidos. São acontecimentos que nos convidam a refletir, a todo o momento, sobre como lidamos com processos históricos estruturantes no campo da política, dos direitos fundamentais e da existência em um mundo que nos desafia todos os dias.

No plano global, março demarca a importância de olharmos para as questões que estruturam a desigualdade de gênero mundo afora. Um momento que pode ser — embora não somente — relevante para visibilizar de forma positiva o conjunto de lutas e conquistas travadas diariamente pelas mulheres, em todas as suas potencias e possibilidades.

Há no Brasil, no entanto, um fato que marca este mês de forma dolorosa: foi em março de 1964 que aconteceu o golpe militar de Estado.

Um momento da nossa história que precisa ser fortemente lembrado e reconhecido, pelo grave atentado contra toda uma sociedade, que foi cerceada em seus direitos básicos como a liberdade de expressão. Além disso, milhares de indivíduos tiveram a própria vida ceifada por não concordar com atrocidades cometidas.

É um período nefasto da nossa história, onde a perseguição, prisão e tortura de muitos cidadãos deixou marcas profundas e eternas nos planos objetivos e subjetivos destas vidas e de seus familiares. Por esta e tantas outras razões, é inconcebível aceitarmos um momento de deteorização vertiginosa da democracia, pela qual tanto lutamos para estabelecer como regime. É vergonhoso observar o processo em curso — orquestrado por parte de certos grupos — de cerceamento dos direitos básicos conquistados no país, fatos que causam repugnância quando vislumbramos as consequências que atentam contra os direitos da população brasileira.

Rio de Janeiro — conhecido solo fértil para gerar e aprofundar vícios e práticas consideradas nocivas à vida pública — tem visto a preservação e a garantia dos direitos da população decair em uma espiral sem fim, no que tange o controle das violências e das redes criminosas que já ocupam diferentes instâncias de poder.

É nesse cenário que março derrama novamente suas águas pesadas quando, em 2018, as circunstâncias do assassinato da vereadora Marielle Franco rompem todos os limites éticos aos direitos humanos. A notícia expõe a gravidade das relações espúrias que vem sendo geridas, numa linha temporal, perpassando inúmeras gestões de governadores e prefeitos que fazem parte desse estado.

Dois anos após esse crime bárbaro, uma pergunta insistente e indigesta continua a desestabilizar o cotidiano: quem mandou matar a vereadora Marielle Franco e, como consequência, o motorista Anderson Gomes? Como olhar de forma passiva para governantes, parlamentares e gestores das políticas públicas depois de um assassinato que escancara a fragilidade e a profundidade de um país que não esclarece seus crimes, principalmente aqueles que atingem grupos de determinados extratos sociais.

Como uma das pessoas cujo o nome se encontrava nas possíveis listas de buscas na internet realizadas pelo acusado pelo assassinato da vereadora, o policial militar reformado Ronnie Lessa — divulgadas pelo Ministério Público em outro março, desta vez de 2019 — falo de um lugar completamente desprotegido e exposto. Desde então, são muitos os questionamentos e dúvidas sobre os resultados das investigações e para onde ela aponta.

É nesse hiato de tempo, dois anos inteiros sem a elucidação do brutal homicídio de Marielle Franco e Anderson Gomes, que uma profusão de especulações sobre a vida da vereadora e sua atuação política se fazem presentes; além de toda apropriação e uso indevido de sua memória e imagem por toda a sorte de grupos e pessoas. Nesse modo operante, fica evidente que está cada vez mais distante a busca de uma luta organizada para chegarmos à clarificação deste crime, que possivelmente exporia as relações entre governo, polícia e redes criminosas no Rio de Janeiro.

Algumas organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, têm cobrado de forma sistemática e incansável — bem como a família de Marielle Franco e o partido do qual ela fazia parte — a responsabilização dos mandantes desse assassinato. Por mais que pese esse esforço, há muitos labirintos e entrelinhas que desconhecemos para que a justiça se faça — neste e em muitos ouros crimes nesse país. A nós, neste março de 2020, resta relembrar à sociedade um pedido que não deve ser levado com as águas nem com o tempo: que a morte dessa parlamentar não seja em vão.

*É diretora da ONG Redes da Maré, pesquisadora em segurança pública e professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP



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