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Resgatados da escravidão aguardam pagamento em fazenda no Sul do Pará (Foto Leonardo Sakamoto) |
Do caso da fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul do Pará, que
pertencia à Volkswagen, durante a ditadura militar, até os das grandes
marcas de vestuário e da construção civil hoje, respeitáveis corporações
já foram envolvidas em denúncias relacionadas ao trabalho análogo ao de
escravo. Mais de 53 mil pessoas foram libertadas, desde 1995, em
operações de fiscalização do governo federal e um número maior do que
isso permaneceu nessas condições porque não conseguiu denunciar
sua situação.
Alguns dos que agora erguem a voz contra a
''escravidão'' de médicos cubanos nunca abriram a boca para dar um pio
sequer de solidariedade nesses casos supracitados. E sabe por quê?
Porque não dão e nunca deram a mínima se um trabalhador escravizado vive
ou morre, nos campos ou nas cidades. Querem apenas ganhar sua guerra
ideológica e política particular usando as ferramentas que têm em mãos,
dobrando as definições legais sobre esse crime se necessário.
Uma
investigação conduzida pela Procuradoria Regional do Trabalho da 10a
Região considerou que o modelo de remuneração do acordo entre Brasil e
Cuba para o Mais Médicos representa discriminação de trabalhadores
cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial e direitos
trabalhistas – o que venho defendendo desde 2013. Contudo, a mesma
investigação do Ministério Público do Trabalho afirmou também que, nem
de longe, a situação assemelha-se a trabalho escravo. O problema é que,
nesta era de pós-verdade, as opiniões calcadas em emoções são mais
importantes do que fatos apurados por órgãos competentes.
Ou
seja, se for para atacar Cuba e, com isso, constranger o programa Mais
Médicos vale a pena batizar qualquer coisa de trabalho escravo,
esgarçando seu conceito legal. Criam-se os maiores malabarismos a fim de
explicar que aquilo pode se enquadrar nessa forma de exploração – que,
de acordo com o artigo 149 do Código Penal, caracteriza-se por trabalho
forçado, servidão por dívida, condições de degradantes de trabalho ou
jornada exaustiva.
Façamos uma experiência: vamos ampliar o
conceito e considerar esses médicos como escravos. Mas com o compromisso
de que, assim que o último cubano for ''libertado'', passaremos a
resgatar todos os trabalhadores brasileiros em fazendas, indústrias,
comércio, serviços, vítimas de irregularidades trabalhistas, que
passariam a ser ''escravos'' também devido a essa forçação de barra. Ou
seja, se fossemos por esse devaneio, o problema sairia da casa de
dezenas de milhares para cerca de 17 milhões de pessoas – 8% do país –
em estimativas conservadoras de juízes e procuradores ouvidos por este
blog.
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Libertado da escravidão perdeu o dedo no serviço. Essa era a água que era obrigado a beber (Foto Leonardo Sakamoto) |
Uma luta tem sido travada junto aos Três Poderes, nos últimos anos,
envolvendo políticos, organizações sociais, juízes, procuradores,
defensores públicos, empresários, servidores públicos, entre outros,
para evitar que a definição legal de escravidão contemporânea seja
desidratada. Em outubro do ano passado, por exemplo, o governo Michel
Temer publicou uma portaria do Ministério do Trabalho mudando as regras
da fiscalização e tornando irrelevantes as condições em que os
trabalhadores se encontram para a caracterização de escravidão. A partir
dela, escravo seria apenas quem estivesse preso sob vigilância armada.
Após intensa pressão da sociedade e da imprensa, as mudanças
foram suspensas pelo Supremo Tribunal Federal. E, com isso, o governo
voltou atrás.
Mas o oposto também tem sido feito: há uma luta para
evitar que tudo seja chamado de trabalho escravo. Porque se tudo é
escravo, nada é de fato. Durante a campanha, Jair Bolsonaro criticou o
enfrentamento à escravidão contemporênea, citando dados equivocados
sobre a fiscalização. Falou do caso de uma mulher grávida que teria sido
considerada como submetida à escravidão porque foi exposta à aplicação
de agrotóxico. O que não procede. De acordo com a área de fiscalização
do Ministério do Trabalho, uma irregularidade como essa não configura o
crime. Esse tipo de declaração do presidente eleito, ao tentar ampliar o
escopo do que é trabalho escravo para ajudar sua argumentação, é um
desserviço ao setor empresarial brasileiro por levar à insegurança
jurídica.
Quando o Mais Médicos foi anunciado há cinco anos,
afirmei que uma coisa é a política pública em si, de levar médicos
estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver –
está correta. Outra, muito ruim, foi a ideia equivocada de não pagar a
totalidade do salário diretamente ao trabalhador.
Como já
expliquei aqui, o acordo com a instituição cubana responsável pelos
profissionais, firmado via Organização Panamericana de Saúde (Opas),
prevê que um ''imposto'' seja cobrado dos médicos que estiverem em
missão no Brasil. O valor líquido repassado é de R$ 3 mil, enquanto o
governo cubano fica com R$ 8,8 mil, pagos mensalmente – menos uma taxa
operacional que fica com a Opas. Além desse valor, os médicos também
recebem auxílio-moradia e auxílio-alimentação das prefeituras.
De
um lado, defensores desse modelo apontam que ele é correto por ser o
pagamento por uma missão médica contratada de outro país e que o valor
da dedução não é tão maior que os impostos sobre renda cobrados em
alguns países. De outro, críticos afirmam que o ideal seria que os
médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e,
caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelo serviço da empresa
cubana de saúde.
Como já dito acima, a Procuradoria Regional do
Trabalho da 10a Região considerou que há discriminação de trabalhadores
cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial. Mas que isso, nem de
longe, assemelha-se a trabalho escravo.
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Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo. Foto: MPT/Divulgação |
Entrevistei dois médicos cubanos que faziam parte do programa e
atuavam em um município na Grande São Paulo, como expliquei aqui no
texto de ontem. Bem quistos pelos moradores no posto de saúde,
rechaçaram as denúncias de que estariam submetidos a esse tipo de
exploração. ''Escravos não têm esses privilégios'', afirmou um deles,
Mario. Ele disse que como sua família tem à disposição um sistema
educacional e de saúde gratuitos em Cuba, que funcionam, e que fez
faculdade de medicina, residência e mestrado sem ter que pagar pelos
cursos, livros ou materiais, acha justo colaborar para que esse sistema
continue funcionando.
Nem todos acham justo, contudo. E, por conta
disso, o mais correto à luz da nossa legislação é a isonomia salarial
com os brasileiros e pessoas de outras nacionalidades.
Alguém
duvida que, quando todo esse furdúnculo desaparecer, se
auditores fiscais passarem a libertar trabalhadores considerando como
escravidão toda e qualquer irregularidade trabalhista do nível de
gravidade da verificada pelo MPT junto aos médicos cubanos, iremos ouvir
reclamações daqueles que chamarão os auditores fiscais de
''comunistas''?
Seria ótimo que esses que agora se preocupam com
escravização de pessoas cobrassem do presidente eleito a garantia
de que a área de fiscalização do trabalho seja protegida de influência
política e econômica, de preferência em um Ministério do Trabalho que
não seja rebaixado, desmembrado ou enfraquecido, e com recursos para que
possa verificar toda e qualquer denúncia de escravidão contemporânea
que chegue até ele. Ou exigissem que políticos parem de receber doações
eleitorais de pessoas físicas que se beneficiaram desse tipo de crime.
Quando defendi meu doutorado sobre trabalho escravo contemporâneo, em
2007, fiz um extenso levantamento envolvendo várias eleições e doadores,
o que apontava uma esbórnia. Os cruzamentos da ''lista suja'' do
trabalho escravo com os doadores de campanha mostram que ela
continua ainda hoje.
Em tempo: há quem fale da importância da
defesa da democracia ao reclamar do relacionamento com o autoritarismo
cubano, mas não se importa nem um pouco ao fazer um bom negócio com o
autoritarismo chinês.
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