De fato, o pacto “responde” às ruas do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de escanteio.
Na manhã de ontem, os presidentes da
República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal
Federal se reuniram e decidiram firmar um “pacto” - que a imprensa
definiu, alternativamente, como pacto “pelas reformas”, “para retomar
o crescimento” ou “em resposta aos protestos”.
Os protestos a serem respondidos, logo
ficou claro, eram os do dia 26 de maio, convocados por apoiadores de Jair
Bolsonaro. Aqueles do dia 15 foram ignorados, embora tenham sido bem maiores.
Nada do que vazou sobre os termos do pacto se refere, ainda que de forma
remota, à garantia do financiamento da educação, à defesa da liberdade de
cátedra ou à permanência da autonomia universitária. Pelo contrário, o
carro-chefe era a aprovação da reforma da Previdência, em prejuízo de
trabalhadores e pensionistas.
Aparece também uma reforma tributária
indeterminada, que dificilmente aponta em boa direção - afinal, já durante a
campanha, Paulo Guedes propunha dar cabo de qualquer progressividade na
cobrança de impostos. E ainda a questão da “segurança pública”, o que deve
indicar o pacote de ampliação da violência do Estado de Sérgio Moro.
De fato, o pacto “responde” às ruas
do dia 26, na medida em que elas deram a dimensão da força de Bolsonaro: nem
tão forte que possa se impor sobre todos, nem tão fraco que possa ser posto de
escanteio. Assim, a coalizão golpista, que chegou ao poder em 2016 e que teve
seu sempre frágil equilíbrio interno desorganizado com as eleições de 2018,
senta-se para redefinir seu programa comum.
As linhas centrais do programa continuam
as mesmas: desmanche da Constituição de 1988, redução do espaço de vigência da
democracia, edificação de um modelo de dominação sem qualquer propósito de
conciliação com os dominados.
Parceira majoritária da coalizão, a burguesia
se fez presente na reunião por meio de Paulo Guedes, mas nem precisava. Seus
interesses dominam a agenda. O fim da previdência social promete lucros
colossais para o capital financeiro - e estamos falando de “colossais”
mesmo para os padrões dos bancos. O setor associado ao capital estrangeiro
vibra com a acelerada desnacionalização da economia. O
chamado “agronegócio”, com o fim das políticas de proteção ambiental, a
agressão aos povos indígenas e a permissão, para não dizer incentivo, à violência
contra o movimento camponês. Com o aumento da taxa de exploração do trabalho,
lucram todos, mas a verbalização desta agenda cabe hoje sobretudo ao comércio,
por meio de figuras tão bizarras quanto Flávio Rocha ou Luciano Hang (”o véio
da Havan”).
Chama a atenção o fato de que o STF
sente-se à mesa para negociar esse novo pacto - ele, cuja função seria a de
guardião do pacto já em vigor, que é a própria Constituição. Até jornalistas de
direita foram obrigados a apontar o absurdo que é uma corte participar de um
pacto em favor de medidas cuja constitucionalidade ela terá que analisar
depois.
Talvez um presidente mais preparado e
mais zeloso da imagem da instituição do que Toffoli evitasse tamanha exposição,
mas o comprometimento com o retrocesso não vem de hoje. Talvez simplesmente
tenha chegado o momento de formalizar o lendário “grande acordo nacional,
com o Supremo, com tudo”. E em termos ainda piores do que aqueles que Jucá
sugeria.
Coincidência ou não, logo após a reunião
do pacto houve outra, para Guedes e Maia avançarem na Câmara pautas que vão
desde a restrição do direito de greve até a possibilidade de redução dos
salários dos servidores públicos. De tarde, foi a vez do advogado geral da
União pedir ao STF autorização para que a polícia reprima discussões políticas
dentro das universidades.
De fato, o projeto de redução brutal de
direitos, ampliação das desigualdades e banimento político de todo o campo
popular precisa de uma escalada repressiva para se manter de pé. É o
complemento necessário.
Confirma-se o que escrevi em 2016: o
golpe iniciou um período de transição à ditadura.
O clã Bolsonaro, no entanto, tem uma
fatura a cobrar por sua aceitação do pacto. Está em julgamento mais um pedido
de Flávio para que sejam interrompidas as investigações sobre ele e Queiroz.
Não se espere de Jair o altruísmo de sacrificar a prole, os brothers de Rio das
Pedras e, no final, a si mesmo para garantir a unidade da classe dominante
brasileira.
Por falta de comunicação ou então por
sutil estratégia, enquanto os chefes dos poderes tomavam café da manhã, as
bancas de jornal vendiam a edição do Valor Econômico com uma
entrevista do general Augusto Heleno - o cérebro militar do governo - em que
ele praticamente bradava por uma ditadura aberta, sob o comando de Bolsonaro.
Em suma, enquanto o presidente contemporizava, seu mentor dobrava a aposta.
No fim do dia, levado uma vez mais por
sua masculinidade frágil e sua mentalidade de pré-adolescente no parquinho,
Bolsonaro não resistiu a tentar se afirmar diante de Rodrigo Maia: “minha
caneta é maior do que a sua”. Não se trata apenas de uma manifestação de despreparo
e imaturidade, mas de uma necessidade na relação que ele mantém com sua base
militante. O “mito” tem que se mostrar forte, inflexível, avesso à
negociação, “alfa”.
Sem essa base, Bolsonaro torna-se
descartável. Com ela, sua relação com os outros integrantes da coalizão
golpista sempre será tumultuosa.
A despeito destes problemas, eles estão
conseguindo levar adiante um ponto central de seu projeto: bloquear qualquer
possibilidade de que o campo popular seja aceito como interlocutor político.
Somos levados a crer que a política brasileira está resumida a três caminhos: a
insanidade prepotente do ex-capitão, o autoritarismo matreiro do vice ou o
republicanismo de araque de Rodrigo Maia.
O campo democrático é quase um
espectador destes embates. O centro do poder, com o apoio fundamental da mídia,
trabalha para transformá-lo - com seus sindicatos e associações, com suas
manifestações de rua, com suas bancadas parlamentares, governadores e
prefeitos, com seus 47 milhões de votos em 2018 - em pária da política
brasileira.
Não é possível aceitar que o único
obstáculo ao retrocesso seja a incapacidade de ação unida da coalizão golpista.
A bateção de cabeça entre eles permite ganhar tempo, mas esse tempo tem que ser
aproveitado para reorganizar forças e interromper o avanço autoritário. As
manifestações do 15M mostraram que isso é possível.
(29 de maio de 2018.)
Fonte: Publicado no blog do Demodê
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