'Foi nas sombras da ‘República dos
Corruptos’ (2015-2018) que os interesses financeiros internacionais teceram o
ultraliberalismo brasileiro. O espólio pela morte do projeto de país se
dividirá entre as finanças e o complexo industrial-militar-petrolífero estadunidense'
Daqui a apenas três anos sobrevirá na
mídia corporativa o centenário da independência brasileira. Independência política
de Portugal, sucedida por subordinação econômica à Inglaterra. Uma
independência sem soberania, sem graus rasteiros de autodeterminação.
Da mesma maneira, a República pode ser
celebrada como segundo momento histórico de transição entre dominadores externos
sobre o Brasil – a aristocracia Inglesa cedeu espaço para a burguesia
inovadora-gestora norte-americana.
Nos primórdios do século 20 cumpriu-se
refundar o Estado Nacional brasileiro, mais amplo, que compreendesse pactos
políticos progressivamente mais complexos. Os três poderes – Judiciário,
Legislativo e Executivo – abriram novos espaços políticos para defesa dos
interesses do dominador externo. Quase sempre através de prepostos brasileiros,
selecionados entre as principais famílias oligárquicas. Este é o ambiente no
qual surgiu o getulismo e,
mais tarde, o lulismo.
Facilitados, ambos, pela intenção do dominador norte-americano em transformar o
Brasil em entreposto industrial e financeiro para a América do Sul.
Assim feito, o país tornou-se ao longo
do século 20 base física para os oligopólios transnacionais na região. Somos
desde então território aberto aos interesses industriais estrangeiros. No
entanto, apenas em 1964 o dominador anglo-saxão obteve segurança contra perdas
cambiais no país. Com a criação do Banco Central, que passou a dar garantias de
saída para o capital estrangeiro. A transnacionalização industrial criou
condições para a entrada maciça de interesses financeiros no país.
De fato, os investimentos em indústria e
infraestrutura, promovidos pelos Governos militares entre 1964 e 1982,
alinharam-se integralmente com o “convite” [conforme C. Medeiros] realizado
pelos EUA. O endividamento externo foi aceito à época pelos formuladores
militares como recurso pacífico, empregado em tempos de elevada rivalidade
internacional. Pois foram exatamente as finanças dolarizadas, em 1979/80, que
colocaram termo ao projeto Brasil-Potência.
Desde então, os países centrais têm
experimentado dificuldades crescentes para criação de empregos de boa
qualidade. A principal explicação é trazida por Coutinho & Belluzo (1982),
segundo a qual o esgotamento dos mercados para produtos da “indústria velha”
produziu dificuldades para retomada de elevadas taxas de crescimento nos países
centrais já a partir dos anos 70.
Desta maneira, desde os anos 1980 o
sistema-mundo tem passado por transformações profundas na organização
industrial. A divisão internacional do trabalho que emergiu não parece incluir
o Brasil entre os “convidados”. A manutenção de políticas macroeconômicas
nocivas às iniciativas de industrialização, porém favoráveis à circulação
financeira, contribuiu para que a indústria brasileira fosse perdendo
importância nos últimos cerca de 40 anos. Até o limite de deixar de influir nas
estratégias nacionais.
Contudo, o “fim da indústria” no Brasil
pós-2014 contou com as mãos nada invisíveis dos órgãos de Estado
norte-americanos – Departamentos de Estado, de Justiça, CIA e NSA[1].
O breve período da “República dos Corruptos” (2015-2018) cumpriu função
histórica de destruir os pilares do projeto brasileiro, com a implementação de
técnicas de guerra híbrida contra empresas e Governo.
Foi, contudo, nas sombras da “República
dos Corruptos” (2015-2018) que os interesses financeiros internacionais teceram
o ultraliberalismo brasileiro. O bolsonarismo econômico pode ser compreendido
como esforço fiscal excessivo, porém calculado, que no agregado compensa, em
favor dos bancos, a imensidão do butim enterrado no pré-sal.
Trata-se de um contrapeso financeiro ao
salto de acumulação que o complexo industrial-militar experimentará com a
apropriação das reservas brasileiras. Ao cabo e ao termo, o espólio pela morte
do projeto brasileiro será distribuído entre os dois braços do dominador
estrangeiro – as finanças e o complexo industrial-militar-petrolífero dos EUA.
A convergência de interesses entre banca
internacional e petroleiras parece ainda tecer para o Brasil futuro nada
promissor. Aparentemente, há a constatação, pelo dominador externo, de que a
República brasileira tornou-se dispensável. A celebração de setores
agrominerais como “nova vocação” econômica resulta da centralidade política do
latifúndio e de sua contraparte financeira. Infelizmente, face ao desemprego
elevado ou crescente experimentado em países centrais, a “vocação brasileira”
após 100 anos de independência será retornar à condição de país-fazenda. Não há
mais espaço para a industrialização. Nem para 200 milhões de habitantes…
Foi neste contexto que o ciclo político
brasileiro entre 2019 e 2022 parece ter sido concebido pela inteligência do
dominador. Como mudança tão profunda quanto à afirmação de uma condição
neocolonial.
Conforme se procurará discutir no
presente trabalho, a desarticulação do Estado brasileiro e a perseguição
ideológica contra interesses privados têm como origem esforços dos Estados
Unidos para impedir no futuro qualquer possibilidade de novo projeto soberano
para o país.
Premissa primeira do dominador norte-americano:
não basta desindustrializar, é importante garantir que o país jamais volte a
ter um projeto industrial-tecnológico autônomo.
A destruição das firmas de construção
civil pesada, o enfraquecimento e mutilação da Petrobrás, a venda do controle
da Embraer, os percalços enfrentados pela Vale, a repatriação das automotivas
norte-americanas, em seu conjunto, têm contribuído para rápido decaimento da
indústria e da tecnologia no Brasil nos últimos 4 anos.
Sem indústria e sem tecnologia, o Brasil
financiará as necessidades de investimentos com excedentes agrominerais
produzidos mediante emprego de recursos crescentemente importados (pesticidas,
fertilizantes, sementes, comercialização e transporte). Não é difícil se
antecipar que a renda, mesmo das elites, diminuirá com o tempo.
Os Estados mais pobres, sem potencial de
internacionalização da produção agromineral, serão levados a experimentar
condições de desalento comparáveis à de países da África subsaariana.
As elites brasileiras voltarão a enviar
seus filhos para estudarem no exterior ou, no melhor cenário, em franquias de
universidades norte-americanas no Brasil. Neste jogo, as ciências sociais não
entram porque não são rentáveis, os alunos “não se preparam” para acesso a
empregos formais que paguem pelos financiamentos estudantis.
Já a Amazônia se oferecerá como
potencial para expansão da produção agromineral a limites ainda não
experimentados pelos latifundiários do Centro-Oeste/Norte. A ocupação humana e
econômica do território, hoje coberto por florestas, é percebida pelos
militares brasileiros no Governo como estratégia viável para preservação da
posse brasileira sobre o território. Esta tese não é inteiramente corroborada
pelas elites manauaras e belenenses, em parte ávidas pela internacionalização
do território.
Premissa segunda o dominador
norte-americano: não basta desarticular o Estado, deve-se erguer uma nova ordem
política no Brasil. Um estatuto neocolonial, em que ordens religiosas e
“coronéis” fornecem as bases políticas e morais de apoio ao recrudescimento do
uso da força policial-coercitiva. Uma força a ser aplicada ou sobre os críticos
ou sobre os excluídos do mundo dos mercados.
A aplicação de um ajuste fiscal sem
precedentes no país, o que inclui apropriação privada de massas de recursos
públicos, tem levado à corrosão dos poderes Republicanos – Judiciário,
Legislativo e Forças Armadas. Ainda que esta corrosão tenha se intensificado
com a “Lava Jato”, se estendeu para a segurança pública, onde ganhou dimensões
presidenciais. Nos próximos cinco anos cerca de 500 mil militares bem treinados
se retirarão para a reserva. Com isso, se reforça a convergência de interesses
entre o grupo político do presidente, o alto estamento militar e o dominador
estrangeiro, no que se refere a como tratar a esperada reação ao desemprego. A
milícia é um termo genérico, cunhado para designar a crescente importância de
grupos privados sobre a segurança dos territórios.
Concorre para o fortalecimento das
milícias a indústria de armas e equipamentos para homeland security, bem como
interesses empresariais, que poderão acessar territórios hoje dominados pelo
narcotráfico.
Neste quesito, o alto estamento militar
parece reconhecer que a entrada de grupos privados na segurança ameaça o papel
institucional das próprias Forças Armadas. O papel de última instância, como
garantia na defesa da soberania e da Carta Magna, encontra-se rivalizado por
grupos privados armados. Armados e articulados política e economicamente para
ameaçar o país com emprego da força.
O poder político das milícias em áreas
de desalento só rivaliza com aquele das igrejas evangélicas, cuja hierarquia
reversa nos leva de volta aos EUA. Neste caso, o conflito se dá contra a
representação política das oligarquias tradicionais. A disputa pelo voto entre
populistas conservadores e candidatos de Igrejas tem contribuído para afirmação
de um novo estilo de dominação dos mais pobres. Esta é uma disputa que tem como
principais interessados os banqueiros, que buscam conter emendas parlamentares
ao orçamento público.
Em síntese, a desarticulação dos poderes
republicanos, os recuos na indústria e na tecnologia, a expansão do latifúndio,
o enfraquecimento das Forças Armadas são movimentos sincronizados. Apontam para
uma relação de dominação mais próxima daquela observada em regimes coloniais do
que entre iguais, entre países soberanos.
[1] Tudo
documentado, incluindo-se equipamentos e tecnologia “doados”, bem como
treinamentos de juízes, policiais e promotores da “Lava Jato” nos EUA.
Lembra-se ainda da grave denúncia de espionagem sobre a Presidente eleita e,
recentemente, de visita do ex-juiz, agora Ministro Moro, às dependências da
CIA.
*É professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate
Fonte: Publicado no Brasil Debate
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