*Por Jessé Souza
Em seu blog O Brasil no
Espelho
A eleição de
Jair Bolsonaro foi um protesto da população brasileira. Um protesto financiado
e produzido pela elite colonizada e sua imprensa venal, mas, ainda assim, um
“protesto”. Uma sociedade empobrecida – cheia de desempregados, de miseráveis e
violência endêmica, cujas causas, segundo a elite e a grande imprensa que a
mantém, é apenas a “corrupção política” – elege o mais nefasto político que os
500 anos de história brasileira já produziu. Segundo a imprensa comprada, a
corrupção é, inclusive, culpa do PT e de Lula manipulando a informação e
criando uma guerra entre os pobres. Sem compreender o que acontece, a sociedade
como um todo é manipulada e passa a agir contra seus melhores interesses.
A única classe
social que entra no jogo sabendo o que quer é a elite de proprietários. Para a
elite, o que conta é a captura do orçamento público via “dívida pública” e
juros extorsivos, e ter o Estado como seu “banco particular” para encher o
próprio bolso. A reforma da previdência é apenas a última máscara desta compulsão
à repetição. Mas as outras classes sociais, manipuladas pela elite e sua
imprensa, também participaram do esquema, sempre “contra” seus melhores
interesses.
A classe média
real entrou em peso no jogo, como sempre, contra os pobres para mantê-los servis,
humilhados e sem chances de concorrer aos privilégios educacionais de que
desfruta. Os pobres entraram no jogo parcialmente, o que se revelou decisivo do
ponto de vista eleitoral, pela manipulação de sua fragilidade e pela sua
divisão proposital entre pobres decentes e pobres “delinquentes”. Esses dois
fatores juntos, a guerra social contra os pobres e entre os pobres, elegeram
Bolsonaro e sua claque.
Foi um protesto
contra o progresso material e moral da sociedade brasileira desde 1988 e que
foi aprofundado a partir de 2002. Estava em curso um processo de aprendizado
coletivo raro na história da sociedade brasileira. Como ninguém em sã
consciência pode ser contra o progresso material e moral de todos, o pretexto
construído, para produzir o atraso e mascará-lo como avanço, foi o pretexto, já
velho de cem anos, da suposta luta contra a corrupção. Sérgio Moro incorporou
esta farsa canalha como ninguém.
A “corrupção
política”, como tenho defendido em todas as oportunidades, é a única
legitimação da elite brasileira para manipular a sociedade e tornar o Estado
seu banco particular. A captura do Estado pelos proprietários, obviamente, é a
verdadeira corrupção que, inclusive, a “esquerda” até hoje, ainda sem
contradiscurso e sem narrativa própria, parece não ter compreendido.
Agora, eleição
ganha e Bolsonaro no poder, começam as brigas intestinas entre interesses muito
contraditórios que haviam se unido conjunturalmente na guerra contra os pobres
e seus representantes. Bolsonaro é um representante típico da baixa classe
média raivosa, cuja face militarizada é a milícia, que teme a proletarização e,
portanto, constrói distinções morais contra os pobres tornados “delinquentes”
(supostos bandidos, prostitutas, homossexuais, etc.) e seus representantes, os
“comunistas”, para legitimar seu ódio e fabricar uma distância segura em
relação a eles.
Toda a
sexualidade reprimida e todo o ressentimento de classe sem expressão racional
cabem nesse vaso. O seu anticomunismo radical e seu anti-intelectualismo
significam a sua ambivalente identificação com o opressor, um mecanismo de
defesa e uma fantasia que o livra de ser assimilado à classe dos oprimidos.
Olavo de Carvalho é o profeta que deu um sentido e uma orientação a essa turma
de desvalidos de espírito.
É claro que
Bolsonaro é um mero fantoche ocasional das elites brasileira e americana.
Quando ele volta de mãos vazias dos Estados Unidos, depois de dar sem qualquer
contrapartida o que os americanos nem sequer tinham pedido, a única explicação
é que ele estava lá como sujeito privado e não como presidente de um país. Como
sujeito privado, é bem possível que ele estivesse pagando, com dinheiro e
recursos públicos, os gastos de campanha até hoje secretos e sem explicação.
Mas é óbvio que sua campanha foi feita e muito provavelmente financiada pelos
mesmos que fizeram e bancaram a campanha de Trump.
O seu discurso
de ódio era o único remédio contra a volta do PT ao poder. E como a elite e sua
imprensa querem o saque do povo, e para isso se aliam até ao diabo, ou pior,
até a Bolsonaro, sua escolha teve este sentido. O ódio, por sua vez, é
produzido pela revolta de quem não entende por que fica mais pobre e a única
explicação oferecida pela imprensa venal é o eterno “bode expiatório” da
corrupção política. Mas a corrupção política era a forma, até então, como se
manipulava a falsa moralidade da classe média real. Como se chega com esse
discurso manipulador também nas classes baixas? O voto da elite e da classe
média no Brasil não ganha eleição nenhuma. Este é um país de pobres.
A questão
interessante passa a ser como e por que setores das classes populares passaram
a seguir Bolsonaro e permitiram sua eleição. Para quem Bolsonaro fala quando
diz suas maluquices e suas agressões grosseiras? Ele fala, antes de tudo, para
a baixa classe média iletrada dos setores mais conservadores do público
evangélico. Este público que ganha entre dois e cinco salários mínimos é um
pobre remediado que odeia o mais pobre e idealiza o rico. O anticomunismo, por
exemplo, tem o efeito de irmanar este pobre remediado com o rico, já que é uma
oportunidade de se solidarizar com o inimigo de classe que o explora e não com
seu vizinho mais pobre com quem não quer ter nada em comum. Isso o faz pensar
que ele, em alguma medida, também é rico – ou em vias de ser –, já que pensa
como ele.
O
anti-intelectualismo também está em casa na baixa classe média. Isso é
importante quando queremos saber a quem Bolsonaro fala quando ataca, por
exemplo, as universidades e o conhecimento. A relação da baixa classe média com
o conhecimento é ambivalente: ela inveja e odeia o conhecimento que não possui,
daí o ódio aos intelectuais, à universidade, à sociologia ou à filosofia. Este é
o público verdadeiramente cativo de Bolsonaro e sua pregação. É onde ele está
em casa, é de onde ele também vem. Obviamente esta classe é indefesa contra a
mentira institucionalizada da elite e de sua imprensa. Ela é vítima tanto do
ódio de classe contra ela própria, que cria uma raiva que não se compreende de
onde vem, e da manipulação de seu medo de se proletarizar. Quando essas duas
coisas se juntam, o pobre remediado passa a ser mais pró-rico que o Dória.
A escolha de
Sérgio Moro foi uma ponte para cima com a classe média tradicional que também
odeia os pobres, inveja os ricos e se imagina moralmente perfeita porque se
escandaliza com a corrupção seletiva dos tolos. Mas, apesar de socialmente
conservadora, ela não se identifica com a moralidade rígida nos costumes dos
bolsonaristas de raiz, que estão mais perto dos pobres. Paulo Guedes, por sua
vez, é o lacaio dos ricos que fica com o quinhão destinado a todos aqueles que
sujam as mãos de sangue para aumentar a riqueza dos já poderosos.
Os primeiros
meses de Bolsonaro mostram que a convivência desses aliados de ocasião não é
fácil. A elite não quer o barulho e a baixaria de Bolsonaro e sua claque, que
só prejudicam os negócios. Também a classe média tradicional se envergonha
crescentemente do “capitão pateta”. Ao mesmo tempo, sem barulho nem baixaria
Bolsonaro não existe. Bolsonaro “é” a baixaria. Sérgio Moro, tão tolo,
superficial e narcísico como a classe que representa, é queimado em fogo
brando, já que o Estado policial que almeja, para matar pobres e controlar
seletivamente a política, em favor dos interesses corporativos do aparelho
jurídico-policial do Estado, não interessa de verdade nem à elite nem a seus
políticos. Sem a mídia a blindá-lo, Sérgio Moro é um fantoche patético em busca
de uma voz.
O resumo da
ópera mostra a dificuldade de se dominar uma sociedade marginalizando, ainda
que em graus variáveis, cerca de 80% dela. Bolsonaro e sua penetração na banda
podre das classes populares foi útil para vencer o PT, mas é tão grotesco,
asqueroso e primitivo que governar com ele é literalmente impossível. A
idiotice dele e de sua claque no governo é literal no sentido da patologia que
o termo define. Eles vivem em um mundo à parte, comandado pelo
anti-intelectualismo militante, o qual não envolve apenas uma percepção
distorcida do mundo. O idiota é também levado a agir segundo pulsões e afetos
que não respeitam o controle da realidade externa. Um idiota de verdade no
comando da nação é um preço muito alto até para uma elite e uma classe média
sem compromisso com a população nem com a sociedade como um todo. Esse é
o dilema do idiota Jair Bolsonaro no poder.
*JESSÉ SOUZA é
graduado em direito e mestre em sociologia pela Universidade de Brasília, a
UnB, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e fez
pós-doutorado em psicanálise e filosofia na New School for Social Research, em
Nova York. É autor de mais de 20 livros e de artigos e ensaios em vários
idiomas. Entre seus maiores sucessos, se destacam A tolice da inteligência
brasileira, A radiogra a do golpe, Subcidadania brasileira e A elite do atraso
(LeYa); A ralé brasileira (Contracorrente); e Os batalhadores brasileiros
(Editora UFMG). Atualmente é professor titular de sociologia da Universidade
Federal do ABC.
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