*Por Laurez Cerqueira
Florestan Fernandes |
Darcy Ribeiro |
Certa vez presenciei uma divertida
conversa entre o senador Darcy Ribeiro, recém-chegado ao Senado, e o
então deputado constituinte Florestan Fernandes.
Darcy dizia em tom de brincadeira a
Florestan que na eleição seguinte ele devia deixar a câmara baixa (Câmara dos
Deputados) e se candidatar à câmara alta (Senado Federal).
“Venha pra cá, Florestan! Isso aqui é
um pedaço da corte! No Brasil, o lugar mais próximo do céu é o Senado da
República. Aqui a gente tem tudo que quer. Basta desejar alguma coisa que
aparece um funcionário para lhe servir. Os dois estavam impressionados com os
ares monárquicos da Praça dos Três Poderes.
O professor Florestan dizia que,
apesar de tudo, um dos pontos mais interessantes para se observar o Brasil era
o Congresso Nacional e que no Plenário chegavam fragmentos políticos, sociais e
culturais do país trazidos por cada parlamentar.
Disciplinado, cumpria rigorosamente
os horários das sessões. Sentava-se na mesma cadeira e prestava atenção nos
discursos de cada um com o devido respeito, apesar da grande maioria das
intervenções serem de baixíssimo nível. Às vezes pedia aparte e debatia os
assuntos com a erudição do cientista social que era, cumprindo sua função
parlamentar. O burburinho do Plenário abrandava para ouvir o mestre.
Ao mesmo tempo era um homem
despojado, almoçava todos os dias no restaurante dos funcionários. Não
costumava ir ao mais frequentado pelos parlamentares.
Ele era tão cuidadoso com a própria
conduta que certo dia, em São Paulo, passou mal em casa à noite, chamou um táxi
e foi para o hospital do servidor. Dona Myriam, mulher dele, preocupada, ligou
para Florestan Fernandes Júnior, que estava na TV e pediu para que ele fosse ao
hospital acompanhar o pai.
Quando o filho chegou, o professor
Florestan estava numa fila enorme para ser atendido. Ele sofria de hepatite C,
doença que havia se agravado e lhe causava crises muito fortes.
Florestan Júnior perguntou por que
ele, como deputado, não procurou o hospital Albert Einstein, o Sírio Libanês,
ou outro que pudesse atendê-lo com rapidez e em melhores condições. Ele
respondeu que era servidor público e que aquele era o hospital que teria que
cuidar dele.
Perguntou também por que ele estava
na fila, em vez de procurar diretamente o atendimento de emergência. Ele disse
que estava na fila porque tinha fila e que todas as pessoas estavam ali em
situação semelhante à dele, com algum problema de saúde, e que ele não tinha
direito de ser atendido na frente de ninguém.
Percebendo a gravidade da situação, o
filho foi ao plantonista. O professor Florestan só saiu da fila depois que o
médico insistiu para que ele entrasse, deitasse numa maca e fosse medicado.
Na parede onde a maca estava
encostada havia um quadro de avisos. Enquanto tomava soro na veia, olhando ao
redor, viu afixado no canto do quadro um recorte de jornal amarelado pelo
tempo. Apontou o dedo e disse ao filho:
– Olha, é um artigo meu, publicado no
jornal Folha de S. Paulo. Nesse eu defendo a saúde pública.
Como nos meses seguintes as crises
tornaram-se cada vez mais fortes e frequentes, os médicos que cuidavam dele
decidiram fazer transplante do fígado.
Na época, Fernando Henrique Cardoso,
seu ex-aluno na USP e amigo pessoal de muitos anos, era presidente da República
e ficou sabendo que o professor Florestan faria a cirurgia.
Imediatamente ligou para ele,
ofereceu traslado e a realização do transplante no melhor hospital de
Cleveland, nos Estados Unidos. Florestan tinha alta comenda do país, a Ordem de
Rio Branco, que lhe facultava certas prerrogativas.
Florestan agradeceu a gentileza de
Fernando Henrique e disse que não poderia aceitar o privilégio. Que aceitaria
se ele fizesse o mesmo com todos os brasileiros em situação mais grave do que a
dele.
Em seguida ele fez o transplante em
São Paulo e morreu no hospital por complicações pós-operatórias provocadas por
erro humano.
Nesse momento de indigência moral e
de decadência institucional do país, em que autoridades como magistrados,
procuradores, parlamentares, ministros, o presidente da República, posam com
exuberantes imposturas, usam e abusam dos cargos e funções públicas que ocupam
para tirar proveitos próprios, lembrar de homens públicos e intelectuais de
grandeza ética como o professor Florestan Fernandes e o professor Darcy Ribeiro
talvez ajude a arejar o ambiente degradado da sociedade brasileira pelo golpe
de Estado.
*Laurez Cerqueira nasceu em Mortugaba/BA, é autor, entre outros trabalhos, de Florestan Fernandes – vida e obra; Florestan Fernandes – um mestre radical; e O Outro Lado do Real. Escreve regularmente artigos de opinião e livros temáticos, como ghost writer.
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