'Pelo menos em um ponto o
país de hoje imita o país da ditadura: nas medidas impostas que concentram
ainda mais o poder econômico, político e social na mão de poucos. Entre elas, a
emenda do teto de gastos, as reformas trabalhista e previdenciária, e a MP da
grilagem.'
Por que um continente com tantas riquezas
como a América Latina tem tanta pobreza? Bernardo Kliksberg em seu livro “Como
enfrentar a pobreza e a desigualdade? Uma perspectiva internacional”, publicado
pela Editora Fundação Perseu Abramo, tenta recolocar no debate essa questão. A
resposta do autor é que os índices de pobreza estão ligados à desigualdade, ou
melhor, existe pobreza porque existe desigualdade. Inclusive, o
autor aponta que se as ditaduras militares na América Latina não tivessem
promovido um modelo de desenvolvimento que propiciasse o crescimento da
desigualdade, ao fim destas ditaduras a quantidade de pessoas que padeciam da
pobreza teria sido a metade na região.
Obviamente, a desigualdade de renda (ou a
pobreza em termos de renda) é apenas um aspecto da desigualdade (da pobreza).
Para muitos brasileiros, o artigo 6º da Constituição Federal, em que se lê que
“são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, ainda ficou só no
papel. Outras expressões da desigualdade são, por exemplo:
– o acesso desigual à terra, cuja
concentração, na América Latina, é pior que a concentração de renda;
– o acesso desigual à educação: índices de
escolaridade variam muito se observada a renda dos pais ou a renda familiar;
– o acesso desigual ao crédito, mais
concentrado nas empresas grandes e não nas pequenas e médias, que inclusive
geram mais empregos na América Latina;
– o acesso desigual às tecnologias, que cria
“analfabetos cibernéticos”;
– as desigualdades dos indicadores básicos
quanto a fatores étnico-raciais.
Todas essas desigualdades, além da
desigualdade de renda e muitas mais que se poderiam somar à lista, interagem
diariamente, reforçando-se mutuamente.
E o que tem sido feito hoje, na América
Latina – ou no Brasil – para reduzir essa desigualdade?
O Brasil, por exemplo, vinha em uma
trajetória da queda da desigualdade da renda do trabalho, queda da pobreza e
até tinha saído do mapa da fome, segundo a FAO. Pensávamos que diversos dos
problemas estruturais da sociedade brasileira estavam sendo resolvidos, ainda
que lentamente e com muitas debilidades. No entanto, a partir de 2015, com o
ajuste fiscal e mais ainda com a ascensão de Michel Temer ao poder, o quadro
mudou e os poucos avanços obtidos até então estão sendo rapidamente
desconstruídos.
Diversos analistas apontam que o Brasil hoje
dá sinais de estar em uma ditadura ou caminha para uma ditadura, seja pelo
golpe de Estado sofrido em 2016, seja pela aprovação de medidas contrárias à
vontade popular (como a reforma trabalhista, liderada por um presidente com
impopularidade recorde), seja pelo cerceamento de discussões consideradas
“comunistas” ou “subversivas” até dentro das universidades (que deveriam ser um
espaço para o livre pensar), seja por medidas mais institucionalizadas como a
Emenda Constitucional (EC) 95, o chamado “teto de gastos”, que na prática
desvincula os gastos com educação das receitas do Estado (e isso ocorreu
somente em períodos ditatoriais na história recente brasileira – como o Estado
Novo e a Ditadura Militar).
Mas no mínimo em um aspecto,
inequivocamente, o Brasil de hoje imita o Brasil da ditadura: no que se trata
de medidas que concentram ainda mais o poder econômico, político e social na
mão de poucos, o que, claro, aumenta a desigualdade na prática. Tais medidas
são, por exemplo, as reformas que estão sendo impostas (como o próprio teto de
gastos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência), a MP da grilagem,
entre outros acenos à bancada do boi, da bala e da bíblia (BBB). A lista é tão
grande que fica até difícil acompanhar.
Dizem que tais medidas, que acabam como
consequência gerando desigualdade, são “necessárias para o crescimento”, para a
“estabilidade econômica”, para “restaurar a confiança”, para “garantir
investimentos”, mas, na verdade, estão baseadas em mitos. Mitos que Kliksberg,
novamente, retoma em seu livro.
– A desigualdade não atinge o
crescimento! Na verdade,
ao reduzir os mercados nacionais, limitar as taxas de formação de poupança,
baixar a produtividade, afetar o sistema educativo, gerar evasão escolar e
enfraquecer a coesão social, a desigualdade atinge sim o crescimento econômico.
– A desigualdade é inevitável! Na verdade, as desigualdades são fruto das
prioridades e políticas que uma sociedade escolhe adotar: podemos sim investir
em políticas públicas que promovam a igualdade ou podemos investir em políticas
que privilegiem as camadas mais abastadas da sociedade. Tais escolhas
demonstram quais as prioridades da sociedade.
– A desigualdade não pode ser vencida! Na verdade, a desigualdade pode sim ser
vencida se isso se torna uma prioridade para a sociedade e são construídas em
conjunto com a sociedade medidas para garantir que todos os cidadãos tenham
condições semelhantes de se desenvolverem.
É um escândalo ético viver em uma região tão
rica em recursos e com tantas possibilidades para o desenvolvimento, mas com
tanta desigualdade. É preciso retomar no debate público a discussão das
reformas, mas não as “deles” e nos moldes “deles”, como a trabalhista e a da previdência,
que buscam retirar direitos dos trabalhadores e agravar a desigualdade.
Precisamos retomar a necessidade de discutir
a reforma tributária (que retire o peso do Estado brasileiro dos trabalhadores
mais pobres, que arcam relativamente com maior peso dos impostos indiretos), a
reforma agrária (que corrija a desigualdade no campo e estimule a produção de
alimentos mais saudáveis) e a reforma política (que garanta maior
representatividade do povo brasileiro, pois sem isso é difícil que o sistema político
esteja atento aos desejos da população e não atue em causa própria).
Ou seja, é preciso defender as reformas que
efetivamente combatam a desigualdade e a pobreza no Brasil em suas diversas
formas.
*Ana Luíza Matos de Oliveira é economista (UFMG), mestra e doutoranda em
Desenvolvimento Econômico (Unicamp), integrante do GT sobre Reforma Trabalhista
IE/Cesit/Unicamp e colaboradora do Brasil Debate
Fonte: Publicado no Brasil Debate
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