'A alfabetização científica, por outro lado, é importante para o pleno exercício da cidadania.'
Por Francisco Caruso
O sociólogo italiano Domenico de Masi, com muita propriedade, afirma que o desenvolvimento de um país não deve ser medido pelo seu PIB ou por outros indicadores econômicos, mas sim pelo número de pessoas graduadas de sua população. Por outro lado, nos ensina também ser impossível uma adequação aos novos mercados de trabalho daqueles que são analfabetos científicos, em uma sociedade cada vez mais dependente da tecnologia e da ciência.
Nesse sentido, mesmo os mais otimistas em relação ao futuro do Brasil, percebem que há duas sérias barreiras a se vencer com urgência: o ingresso na universidade e o analfabetismo científico. Entretanto, caminhando exatamente na contramão do que deveria ser a solução para esses dois sérios problemas, o Senado da República acaba de aprovar a reforma do Ensino Médio. Nela está previsto um núcleo de conteúdo comum em todo o território nacional, correspondente a 60% do total programático. Os restantes 40% seriam de livre escolha dos alunos que teriam, assim, o direito de escolher disciplinas afins com a da carreira que pretendem seguir no nível superior de ensino. Quatro são as grandes áreas: ciências humanas, ciências da natureza, linguagens e matemática.
Talvez alguns defensores dessa proposta vejam nisso uma vantagem que acabaria facilitando o ingresso na universidade. Entretanto, vejo mais desvantagens e algumas ponderações devem ser feitas. Em primeiro lugar, quem é professor universitário vê com muita clareza que é bastante significativo o número de jovens que passam no vestibular e se dão conta de que escolheram a carreira errada. Ora, imagine o que vai acontecer se tal escolha foi antecipada de três anos. Muitos cursos universitários têm exatamente o básico comum de dois anos exatamente para dar tempo ao jovem de refletir, com mais maturidade, sobre seu futuro profissional. Resta ainda saber se essa pretensa facilitação no ingresso não contribuirá para o abandono do curso, por falta de uma educação mais sólida e mais generalista. Ou ainda, não se pode prever como esse aluno assim formado no ensino médio estará preparado para ter uma sólida formação. Isso tudo sem falar nos problemas inerentes à situação atual das universidades.
O problema da alfabetização científica, por sua vez, deve ser considerado uma parte integrante essencial da problemática geral da Educação. Lamentavelmente, há muito tempo, a educação deixou de ser entendida como instrumento indispensável na formação do cidadão e vem sendo praticada como mero treinamento. Agora, com essa proposta aprovada pelo Senado, um treinamento ainda mais direcionado.
A alfabetização científica, por outro lado, é importante para o pleno exercício da cidadania. Para que essa afirmativa não parece simplesmente como mais um daqueles chavões comuns por aqui, podemos dar alguns exemplos do quotidiano em que o analfabeto científico tende a ter sérias dificuldades. Por exemplo, é difícil (e às vezes quase impossível) fazer com que um anticoncepcional (ou um medicamento) seja utilizado corretamente. Muitas mulheres e seus parceiros não conseguem ver qualquer tipo de relação de causa e efeito que efetivamente justifique o uso da pílula com regularidade, mesmo nos dias em que eles não têm relação sexual. É aceita, quando muito, uma relação de causalidade estrita, muito imediata: se a gravidez pode vir da relação sexual, “então” é preciso tomar a pílula quando se tem uma relação, e é só. Além disso, os medicamentos em geral são receitados esperando-se que o paciente tenha a noção de ciclo, de continuidade e de intervalo de tempo. Poderíamos dar uma lista enorme de exemplos, mas preferimos ressaltar que a importância da alfabetização científica não deve se restringir a melhorar pontualmente o quotidiano das pessoas; ela deve mudar as próprias pessoas.
Espera-se que do estudo de Ciências o cidadão possa constatar a relevância de valores tais como: curiosidade, humildade, honestidade, verdade, razão e ética. O cientista, assim como o velho alquimista ao mexer com a Natureza tentando compreendê-la e transformá-la, está, sobretudo, mudando a si mesmo, crescendo como ser humano. Esse processo contribui para tornar o ser humano mais crítico, mais sonhador e, muitas vezes, importa tanto ou mais do que o próprio resultado alcançado. É esse tipo de processo criativo que prepara o individuo para enfrentar os desafios do novo, a não temê-lo.
Dito isso, imaginemos que a escolha entre os quatro grandes grupos do saber seja uniforme (em uma primeira aproximação), ou seja, admitamos que apenas 25% dos alunos optem por ciências da natureza. Isso quer dizer que há uma enorme chance dos demais 75%, a partir da implantação do novo Ensino Médio, sejam analfabetos científicos. É assim que pretendemos formar mais gente? É essa a Escola que vai mudar o país?
Quem dera vivêssemos em uma sociedade na qual a escola ensinasse que se cria assim como o artesão trabalha o barro: transformando a matéria e, ao mesmo tempo, transformando a ele próprio. Essa é uma atitude que deveria ser o fulcro de todo projeto de alfabetização científica. Só assim, o país poderia enfrentar os desafios do terceiro milênio (que já começou, lembre-se) de cabeça erguida, pois, como afirma ainda Domenico de Masi, a sobrevivência na sociedade pós-moderna, eminentemente científica, reside fundamentalmente na criatividade e, acrescentaríamos, no sonho. Sendo assim, com que futuro se pode acenar a quem não for alfabetizado em Ciências?
*Francisco Caruso é físico, escritor e bibliófilo, pesquisador titular do CBPF e professor associado da Uerj. Co-autor do livro Física Moderna: Origens Clássicas e Fundamentos Quânticos, que recebeu o Prêmio Jabuti em 2007. Membro do Pen Club do Brasil e agraciado com a Ordem do Mérito Científico da Academia Roraimense de Ciências.
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