Um dos textos mais impactantes que já
pude ler é um que foi publicado em 1999 por Marcos Frenete na revista Caros
Amigos. Sobre cavalos e homens narra a história de um camponês de
sangue espanhol muito embrutecido pelas circunstâncias da vida na roça que
certo dia, ao arar a terra junto com a companheira e o seu cavalo, teve uma
profunda experiência transformadora.
O sangue de um nariz de cavalo
jorrando sobre a terra fez com que aquele homem emocionalmente desestruturado e
que não levava desaforo para casa, passasse a ser um paciente e educado homem.
O cavalo, após horas puxando o arado com fome e sede estancou. O homem então,
com uma ira incontrolável, desferiu um chute nas narinas do equino que, após
erguer a cabeça depois da pancada, aguou a terra com sangue e lágrimas.
O olhar de incompreensão da mulher e o
monumento vivo à sua própria estupidez feito de sangue e lágrimas parado bem na
sua frente, fez com que se desse conta do que acabara de fazer. O camponês
permaneceu semanas mudo, sorumbático e introspectivo até que retornasse como um
outro homem.
A humanidade tem sido como esse
camponês da primeira versão. A insanidade da II Guerra Mundial resultou no
estabelecimento de alguns pactos que expressaram parâmetros éticos mínimos para
a relação entre os povos e de afirmação dos direitos do ser humano. Foi como
se, por um tempo, depois dos desgraçados anos em que a racionalidade inexistiu,
tivéssemos uns poucos dias de alento e reflexão.
Na atualidade, é como se a cada
segundo desferíssemos um chute nas narinas daquele cavalo e, de tanto fazê-lo,
vai se introjetando a certeza inconsciente de que isto é normal. Talvez neste
ponto esteja a principal diferença destes tempos. Há quem considere dentro da
normalidade defender a prática da tortura, construir muros separando povos e
proibir a entrada de pessoas de forma indiscriminada. Trump verbaliza parte do
pensamento dos americanos e de muitos brasileiros.
A humanidade, justamente no dia em se
recordava as atrocidades do Holocausto, assistiu o líder da maior potência
mundial assinar atos que não ficam nada a dever a Hitler. E, infelizmente, não
se trata apenas de Trump. Obama manteve Guantánamo que nada fica a dever a
Auschwitz e se permitiu filmar assistindo, como se estive vendo um filme de
Spielberg, ao assassinato de uma pessoa sem qualquer possibilidade de defesa.
Depois, determinou que desaparecessem com o seu corpo.
Por aqui, depois de centenas de
brasileiros terem perdido a vida em depósitos humanos chamados de prisão, nada
mais se falou a respeito. Foi como se nada tivesse acontecido. Médicos vazam
exames particulares pelo simples gozo sádico e há quem comemore a tragédia de
um acidente vascular cerebral.
E assim seguimos, desferindo chutes em
cavalos e vendo o sangue e a lágrima jorrar sobre a terra. Alguns desses chutes
nos aturdem, chocam e nos dão a exata medida da nossa própria estupidez.
Enquanto outros, de tão repetidos e comuns, levam a que se comece não somente
duvidar do seu impacto enquanto força motriz de uma transformação, mas à
desconfiança se eles já não estão a despertar certo gozo ou aquilo que temos de
mais perverso e desumanizante.
*Patrick Mariano é escritor,
advogado popular e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade
de Brasília. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e
Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado
no Justificando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário