"Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados." ― Vladimir Herzog

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Painel Paulo Freire, obra de Luiz Carlos Cappellano.

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segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Sobre cavalos e homens


Um dos textos mais impactantes que já pude ler é um que foi publicado em 1999 por Marcos Frenete na revista Caros Amigos. Sobre cavalos e homens narra a história de um camponês de sangue espanhol muito embrutecido pelas circunstâncias da vida na roça que certo dia, ao arar a terra junto com a companheira e o seu cavalo, teve uma profunda experiência transformadora.

O sangue de um nariz de cavalo jorrando sobre a terra fez com que aquele homem emocionalmente desestruturado e que não levava desaforo para casa, passasse a ser um paciente e educado homem. O cavalo, após horas puxando o arado com fome e sede estancou. O homem então, com uma ira incontrolável, desferiu um chute nas narinas do equino que, após erguer a cabeça depois da pancada, aguou a terra com sangue e lágrimas.

O olhar de incompreensão da mulher e o monumento vivo à sua própria estupidez feito de sangue e lágrimas parado bem na sua frente, fez com que se desse conta do que acabara de fazer. O camponês permaneceu semanas mudo, sorumbático e introspectivo até que retornasse como um outro homem.

A humanidade tem sido como esse camponês da primeira versão. A insanidade da II Guerra Mundial resultou no estabelecimento de alguns pactos que expressaram parâmetros éticos mínimos para a relação entre os povos e de afirmação dos direitos do ser humano. Foi como se, por um tempo, depois dos desgraçados anos em que a racionalidade inexistiu, tivéssemos uns poucos dias de alento e reflexão.

Na atualidade, é como se a cada segundo desferíssemos um chute nas narinas daquele cavalo e, de tanto fazê-lo, vai se introjetando a certeza inconsciente de que isto é normal. Talvez neste ponto esteja a principal diferença destes tempos. Há quem considere dentro da normalidade defender a prática da tortura, construir muros separando povos e proibir a entrada de pessoas de forma indiscriminada. Trump verbaliza parte do pensamento dos americanos e de muitos brasileiros.

A humanidade, justamente no dia em se recordava as atrocidades do Holocausto, assistiu o líder da maior potência mundial assinar atos que não ficam nada a dever a Hitler. E, infelizmente, não se trata apenas de Trump. Obama manteve Guantánamo que nada fica a dever a Auschwitz e se permitiu filmar assistindo, como se estive vendo um filme de Spielberg, ao assassinato de uma pessoa sem qualquer possibilidade de defesa. Depois, determinou que desaparecessem com o seu corpo.

Por aqui, depois de centenas de brasileiros terem perdido a vida em depósitos humanos chamados de prisão, nada mais se falou a respeito. Foi como se nada tivesse acontecido. Médicos vazam exames particulares pelo simples gozo sádico e há quem comemore a tragédia de um acidente vascular cerebral.

E assim seguimos, desferindo chutes em cavalos e vendo o sangue e a lágrima jorrar sobre a terra. Alguns desses chutes nos aturdem, chocam e nos dão a exata medida da nossa própria estupidez. Enquanto outros, de tão repetidos e comuns, levam a que se comece não somente duvidar do seu impacto enquanto força motriz de uma transformação, mas à desconfiança se eles já não estão a despertar certo gozo ou aquilo que temos de mais perverso e desumanizante.

*Patrick Mariano é escritor, advogado popular e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.
  

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